quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Enquanto não estamos nus


Tira logo essa roupa pra gente ficar séculos dentro desse quarto. Você sabe bem que depois vamos parar em algum canto arriscado do país, em alguma praça, só pra dar chance ao flagra em pleno surto. Olha pro espelho, olha pra mim, me dá sua calcinha. Olha o que a gente já aprontou só por essa noite. Seu corpo é a coisa mais importante da minha vida, até a gente gozar. Nossas fotos, nossos livros, nossos vídeos comprometedores, tudo deveria ser cuidadosamente envelopado e deixado no capacho de algum museu fodón metido a besta. Você topa? Vamos entronizar todo esse nosso talento (??) sob os lençóis aos cadernos de história. Criar uma nova seita que dure apenas uma única sexta. Encher a casa de mamíferos. Compartilhar manifestos ridículos como afirmar que desajustados de merda com suas carreiras brilhantes e seus terminhos em inglês deveriam deixar seus celulares caríssimos despencar no fundo de vasos sanitários todo final de semana. Ou que todos os branquelos com narrativa de comerciais de varejo na tevê por lei tivessem que tatuar alguma-coisa-vírgula-99 na bunda. Quem os levaria a sério? Quem nos levaria a sério? Quem se leva a sério? Monte esse quebra cabeça com peças como o meu nariz que, de tão branco, respira aliviado. É momento de ser franco. Pare de gritar. Porque enquanto seu choque é apaziguante, meu discurso segue eficientemente anafilático. Ignoro qualquer uma das metáforas bordadas ou coloridas ou pacifistas e trocaria todas as últimas frases desse tipo de discurso utópico por uma cerveja gelada. Tô com paciência pra regionalismos não. Você tá cansada de saber que as meninas malvadas são como anjos pra mim. Sacras. Meu porto seguro é saber que terei sempre uma manhã inteira pela frente pra acabar com a minha vida e o resto da minha biografia pra te fazer o bem. Quero um sítio onde o cheiro de chuva me ligue e o gelo jamais ouse acabar. Quero me livrar desse bando de verdades particulares que parecem ter vindo de um caderno sem linhas. Vem. Deixa eu embrulhar sua boceta para presente com a minha língua e, quem sabe, te explicar um pouco sobre o amor enquanto não estamos nus.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O casamento

Casamento marcado, festa paga, convites entregues, tensão e nervosismo. Na véspera Rogério falava pelos cantos para quem quisesse ouvir, em tom de confidência pública, que a cerimônia reservaria uma grande surpresa. Falava e sorria com seu olhar claudicante. O emaranhado de tias suadas vacilava entre fofocas e otimismo desenfreado. Casar é como um batismo onde uma nova vida apaga seus pecados e transforma um menino, num homem e uma menina, numa respeitada senhora. Casar é um corredor da morte disfarçado de inebriante caminho dos sonhos. Casar é o maior ato revolucionário que alguém pode se autocometer.
Sob as veias inchadas de um retumbante sol nordestino em plena primavera, os convidados seguiam seus destinos de testemunha. Amaciavam suas bundas chatas em madeira nobre, numa simpática igreja católica degustada pelas intempéries desse senhor canalha chamado tempo. Senhoras gordas com seus braços de merendeira seguravam terços e lenços, apoiando-se sobre os bancos da frente. Uma quantidade avassaladora de pele e gordura pendia por baixo de seus ossos e balançava num ritmo próprio e frenético. Senhores com antitranspirantes vencidos e olhares de lobo, observavam pedófilicamente curvas de sobrinhas de pouca idade que corriam como gazelas, além de ancas de balzaquianas que, ano após ano, confirmavam seus desígnios de titias.
Foi apenas o padre terminar seu protocolo para o noivo retirar o trabuco de dentro de seu paletó. O calor estapafúrdio, o ineditismo daquela cena, o olhar incrédulo do chefe e padrinho do casamento de Rogério, a doce e calma certeza de que tudo terminaria ali da noiva. Tudo foi cenário. Tudo foi lampejo. Tudo foi pouco, muito pouco pra conter a fúria daquele homem em desonra que, sem vacilar, lascou chumbo no próprio chefe, em sua agora mulher e em sua própria têmpora. Os três caíram inertes ali mesmo. O corno ainda resistiria até o dia seguinte, indo ter com o diabo somente no hospital. Seu casamento não teve chuva de arroz. Não deu nem tempo de beijar a mulher que, impassível, morreu sorrindo deitada no chão e assim ficou até a perícia chegar, observada pela imagem de um santo. Seu sonho sempre fora casar-se na igreja. Ao seu lado, o marido e seu chefe, sua grande paixão, jaziam com ela. Seus fluídos uniam-se numa grande poça de sangue que, lentamente misturada, era quase um deboche a tudo que nunca poderia ter ficado junto.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Aclive


Dançou em si,
feito valsa só,
que de lá sorri.
Parei pra ver enfim,
seu colo marfim,
seu desejo de querer
ser em mim.
Pronto,
somos todos pranto,
pontos.
Correndo e querendo
mais velocidade.
Mais alarde.
Mais partes
que sejam assim.
Que pulsem vida,
que liguem o foda-se
e salvem meu dia
como você,
tão tola,
sabe direitinho
como fazer.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Poema rouco

Tô aqui livre
com tudo que ser livre
quer dizer.
Tô aqui solto
e Santo
como sei que posso
ser.
Tudo que nem sempre
pode ser visto de perto
é tudo o que preciso
fazer.
São mais claras
as idéias raras,
as pessoas que de cara
são tão fodidas como antes
ninguém parecia
ser.
Assim posso
sentir meu trajeto
mais real,
sem essa
falsa espiral
que me afogava em vergonha
por ser tão louco
quanto pareço
ser.
Minhas idéias
valem muito mais
do que você pode
pagar.
Sua angústia é saber
que sou uma doce bomba
prestes a explodir esse seu mundo
cheio de paz e ordem.
Quem te ensinou a ser assim
não te ensinou a ser são.
Quem nos ensinou isso?
Pode chorar,
porque faz parte
da minha loucura
comemorar
minhas derrotas
como as maiores vitórias
desse mundo.
Cheira um pouco
de mim,
mas não suga
meu pescoço.
Essas cervejas geladas,
já sabem bem,
no mangue,
são tudo o que se pode querer
antes do almoço.
Se ainda te quero
bem.

domingo, 7 de novembro de 2010

Nós

Minhas palavras saindo feito vento pra dentro de seus ouvidos. Sorrisos. Éramos nós, sós, no meio de milhares de pessoas banais. Ninguém mais faria sentido, ninguém ousaria nos atrapalhar, ninguém poderia. Seu rosto secando meu suor, encostando-se em mim de um jeito tão suave. Minha conexão, meu presente tão presente, tão vivo, tudo fazendo tanto sentido. E a música alta trazendo sua boca até meus ouvidos de bandeja, meus sentidos todos vestidos em sua alma, tirando sua roupa, deixando-a nua. Éramos nós, sós, no meio de milhares de pessoas banais. Sua emoção trazendo nosso futuro pra perto, abraçando aquela espécie de brincadeira, respondendo ironicamente todas as minhas expectativas. Sua pele morena tranquila, agindo como a moldura perfeita para seus dois olhos elétricos, cheios de sede e intenso brilho d’água. Olhos de saias que dançavam enquanto minha boca falava, falava e falava, tentando não beijá-la. Pelo menos agora, não agora. Porque àquela hora, tão nova, consumia-me de motivos para ouvir sua voz. Porque logo mais estaríamos a sós. E pela primeira vez seríamos nós, enfim, no meio de milhares de sonhos a mais.

domingo, 24 de outubro de 2010

Duas frases num esparadrapo preso no espelho

Libertário ou indecente? Libertário ou indecente? Minha cabeça insiste em pensar sozinha, engasgada, enquanto meus olhos vidram o chão que treme em movimento. Estou meio adormecido, numa cadeira de rodas, com um esparadrapo no antebraço que delata a recente volta de um coma alcoólico e tento em vão, classificar meus originais enquanto um enfermeiro guia aquele veículo tosco de metal pra fora da festa de uma gravadora. Não consigo ficar de pé. Apago novamente.
. . .
Acordo com alguém batendo na porta. Já é dia. Estou num sofá, sem camisa e com a parte superior da calça jeans úmida. Não sinto cheiro de urina. Relembro flashes de uma bolsa de gelo sendo aplicada na região da minha barriga. Encontro uma luva cirúrgica dentro da minha cueca. Isso não pode ser coisa boa. Murmuro um palavrão e a escondo no bolso. Mais batidas na porta. Uma linda garota com maquiagem borrada surge coçando os olhos e me puxa pro quarto. Eu apago mais uma vez.
. . .
Desperto com uma voz grave, rouca e feminina, saindo por uma fresta da porta. Acho que estou sonhando. Sinto frio. Puxo um lençol amarrotado no pé da cama e cubro metade do meu corpo. A voz continua a vir da porta. Tento fazer aquele barulho parar com o poder da mente. Sou ridículo. Não consigo. Puxo o lençol até o pescoço pra não assustar quem quer que seja com minhas tatuagens. É a faxineira. Deve trabalhar pro meu anjo da guarda. A senhora pergunta se eu estou morto e diz que o quarto está fedendo. Digo que estou vivo e peço pra ela me deixar ali. Escuto algo incompreensível e ela vai embora do apartamento. Volto a dormir.
. . .
Acordo com beijos em minhas pálpebras. Reconheço o disco de Claudia Dorei tocando suave, vindo da sala. Meu corpo dói. Ela beija minhas orelhas, meu pescoço e começa a dar mordidas em meu peito. Meu Deus, um homem deveria ser acordado assim todos os dias. Ela deixa um copo de Club Soda no criado mudo e vai andando pra porta. Some. Olho a marca de agulha em meu braço. É indecente. Alcanço uma caneta e escrevo duas frases no esparadrapo que acabei de arrancar do meu corpo. Aproveito sua cola pra prendê-lo num espelho, tiro minha calça e lembro-me de alguém que preciso esquecer urgente. Enquanto dou um gole faminto no copo gelado, minhas urgências continuam querendo me sabotar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Degustação

Acordei com frio. Corpo tenso, dentro da geladeira, num copo de uísque vazio. “Meu Deus, como vim parar aqui?”. Tentei não entrar em desespero. Desci pro andar de baixo, outra prateleira, até conseguir alcançar a porta. Fiquei por quase duas horas ali, enrolado num pedaço de plástico de embalagem de pão, tentando me aquecer. Alternava momentos sonolentos e certa vertigem, torcia pra tudo não passar de um sonho. De repente um estampido. Uma luz branca atingiu-me como uma bomba. Mesmo com pálpebras fechadas jamais sentira algo igual. Uma tentativa frustrada de avistar algo cegou-me completamente. Senti-me indefeso, vulnerável, pulei e corri trôpego como um rato bêbado por entre as pernas de um insone ladrão de geladeira, o salvador de minha existência. Reconheci a sala do meu próprio apartamento. Duas mulheres gigantes dormiam nuas como anjos enroscados no sofá. Pelo chão cheio de revistas espalhadas, uma mancha gigantesca de vinho desenhava-se como uma lagoa. Sua fonte era uma taça caída, virada em cima de um jornal. Abaixei-me com sede como quem bebe num espelho d'agua e logo estava entorpecido. Deitado e misturado, mexia e brincava infantilmente com meus pés e braços dentro daquela piscina rasa etílica. Masturbei-me fitando o par de bundas imóveis. Eram grandiosas e perfeitas, voluptuosas, do tamanho de um prédio de quatro andares. Sequei meu corpo roxo num pedaço de guardanapo sujo e continuei andando pelo apê. Ao chegar a meu quarto estranhei minha própria versão em grande escala dormindo, só e de cuecas. O ambiente carregava a mistura de um cheiro enjoado e agridoce de álcool, cigarros e suor, que inundava meu pequeno nariz. Fiquei olhando aquele corpo grotesco, confuso, tentando entender tudo aquilo, tentando entender como poderia ter ido parar na geladeira dentro de um copo vazio. Pela primeira vez senti medo, uma espécie de solidão e algum calafrio. Imaginava como agir se topasse com algum inseto. Tentei fazer algumas flexões, cantei desafinado, corri de um lado pro outro e mijei no canto da cama, pra matar o tempo. De repente meu eu gigante acordou, coçou os olhos, esticou as mãos como quem se espreguiça e sem piscar, veio diretamente em minha busca. Paralizado, apenas assisti. Meus dedos gigantes seguravam-me com cuidado, levantaram-me até a altura dos meus olhos e logo um som ensurdecedor tentou dizer algo sem sucesso. Era uma pressão sonora densa, tão alta como graves estourando as caixas de um soundsystem jamaicano. Gritei, tentei conversar, mas nada adiantou, minha voz provavelmente valia menos que os decibéis de um zunido de mosquito. De carona na palma de minha própria mão fui levado até a sala e depositado com cuidado dentro da taça de vinho vazia que estava largada pelo chão. Observei enquanto meu Big-me acordava as duas moças com cuidado, beijo nas testas, gesticulando e apontando pra mim. Lá estava eu como uma atração freak de circo: nu, do tamanho de um cigarro, vulnerável e preso numa vitrine. As duas gostosas sorriam enquanto andavam lentamente em minha direção. Meu corpo arrepiava-se. Pensei em alertá-las sobre a minha porra no chão da sala, mas desisti. Olharam-me como duas gatas fitam um peixe dando sopa. Confabularam por instantes e com um ar sexy e malicioso, abraçaram com seus dedos finos uma garrafa ao meu lado, apontando seu gargalo pra mim. Era uma sensação indescritível tomar uma ducha de Rivalta, que despejado, lambia meu corpo até o nível do vinho ultrapassar minha cabeça. Poderia partir assim, pensei, num mar tinto, sob o poder de duas lindas mulheres nuas. Todos os meus dias de sofrimento, minhas desilusões, empregos de merda, desamores, originais rejeitados, derrotas...tudo isso teria valido mais a pena. De repente a taça começou a rodar. Estava realmente feliz. Em instantes seria degustado por uma puta sem nome, ávida por sentir o gosto do meu corpo em sua língua feminina.

sábado, 2 de outubro de 2010

Mulheres que escrevem

Elas têm uma segurança que ameaça. Uma inteligência que intimida. Geralmente sabem se vestir muito bem de um jeito que não acompanha a moda cafona das vitrines. Esse alvoroço não combina com elas. Confesso que todas mexem comigo. Sinto-me indefeso, meio deslumbrado, acho que vou ser desmascarado a qualquer minuto. Minhas convicções em sentir-me uma farsa são baseadas integralmente nelas. As danadas me emocionam. Esse lado quase negro da vida surge como um segredo entre nós. Não acreditamos no mundinho perfeito, nas famílias da TV com casais de filhos e suas medalhas de judô. A gente até quer acreditar nisso (elas um pouco mais). A gente até pode acabar assim. Mas é mais divertido e lógico esse nosso costume de enxergar a beleza da vida sem filtros. A gente curte essa escrotidão. Mesmo porque achamos o belo em si realisticamente encantador. Os desvios de caráter, as atitudes intempestivas ou movidas pela pressão, as maldições do amor, a marginalidade intelectual. Tudo isso é real, é visceral, é dia a dia, e em alguns casos, pasmem, até status quo. Acredito nesse clichê bunda-mole que prega não existir personagens de papel único por aí. Seria tedioso demais. É de uma inocência grotesca achar que as pessoas podem fazer parte de algum script. Por isso em nosso sangue corre essa coragem besta que nos afasta do medo. Por isso elas me conquistam como um manifesto mal escrito, como jovens seios duros, como dezenas de primeiros discos, como um corpo nu nos segundos que precedem um esporro. Prefiro as sarcásticas, as despudoradas, as loucas, as de passado duvidoso. Prefiro as putas, as neuróticas, as mimadas, as que já não têm esperança. São somente elas que podem me divertir enquanto sigo deixando claro pro mundo o quanto posso fazê-lo sorrir. São elas que me deixam de pau duro, cabelos arrepiados e mudos, com a boca seca de tanto querer. Elas são toda essa lama viva que invade minha cabeça quando busco alguma compreensão. Elas são a mãe que nunca tive e a família perfeita que o mundo inteiro jamais vai ter. São minha fonte, meu desejo, toda essa nossa vontade de foder. São elas, malditas, as mulheres que escrevem. Responsáveis pelo pouco sentido que os bares têm, em motivar conversas ridículas, aos doces momentos que, pródigos, podem bicar pra longe o infame medo de errar. Nosso hábito de discordar em conluio me liberta. E elas seguem tolerando minha farsa por acreditar que todos os meus eu te amo etílicos, nasceram sonhando em ser ditos no altar.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Sem título II

Vem chegando a manhã em que vamos pagar todos os nossos pecados. Doando brinquedos, rasgando trapos em pensamentos vazios e sem direção. Foi anunciada sua derrota e o poder vai trocar finalmente de mãos. E ele está comigo, nos balcões de bar, nos poetas magros, nos andrógenos e bizarros. Agora é hora de rasgar todas as suas telas presunçosas com paisagens perfeitas, cuspir em quem anda dizendo por aí que a arte é uma grife, como tudo que leva assinatura fácil. Dá pra escutar seus gritos, seus pedidos de perdão e clemência. Mas eles vêm vindo. Eles estão determinados. São como caçadores, justiceiros, mercenários. Em nada absurda ternura carregam flores, palavras de amor, garrafas de vodka, bandeiras sem brasão e induzem quem passa ao ópio que vai inverter suas formas de pensar. Os de alma pequena, os embustes, as prostitutas intelectuais, os calhamaços falastrões, aqueles que sabem que sua farsa será descoberta. Todos estes choram, correm pros seus ursos de pelúcia, pra sua infância perfeita, pra suas lembranças da Disney. Agora não temos mais tempo pra temer as rédeas. Elas simplesmente não existem mais. Não, não fuja. Não seja ridículo, sua depressão faz parte dessa história. Seu trunfo pode ser justamente saber que também pode estar errado. Seu trunfo é rir de toda essa sua insegurança patológica, de todos esses seus remédios incríveis. Suas partes mais sujas foram abençoadas e transformaram seu mundo injusto em realidade divina. Você está livre, não tenha pena de si, ninguém vai te odiar nem cobrar nada. Mas ninguém o perdoará se continuar agindo como um peão sem direção aparente. Pode sorrir, eles estão por vir. Será fácil reconhecê-los. E suas mãos estarão sempre extendidas a quem nunca entendeu muito bem como ainda se pode cair na armadilha de preferir uma vida medíocre.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

De mãos dadas ninguém pensa em morrer

Você enche meu copo e a gente descobre um jeito de ficar assim, sem fazer nada, mais tempo juntos. Sábado passa a ser nosso dia oficial de mandar o mundo inteiro tomar no cu. Um pouco de pó transforma seu desfile de calcinhas novas no evento mais importante de todos os tempos. A gente vai se matando aos poucos, sem glamour, mas sabe que morrer é apenas uma bela certeza que nos dá ainda mais vontade de fazer amor. Então a gente brinca com nossos corpos como dois adolescentes de trinta e troca nossa estrada asfaltada por um pouco mais de graça. Não é seguro, mas a noite passa e vira sol. Domingo é dia de caminhada, suco de frutas da praça, boca cheia, saúde e aquela deprê que não me larga. Nossas desgraças são absolvidas a cada nova boa notícia, a cada novo amigo de fé que se casa, faz um filho e feliz, fica menos babaca. Seu sorriso é raio de um brilho esguio que se espelha, se encaixa em nossa festa, disfarça em meu peito o que resta de nós, que só passa a ter graça em você. Parei de contar meu tempo livre desde tua ligação crua, voz madrugada nua, me chamando pra te assistir escrever. Seguimos brincando como dois são um, em caça níqueis, cheios de erros infalíveis. De saídas à francesa. Cheios de todo esse povo chato posto à mesa, que aponta demais porque não pode entender. Não quer perceber. Se já não temos rumo, abandonamos nossos planos, assuntos, andando por aí. E se a gente fica junto, é porque de mãos dadas ninguém pensa em morrer.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

De tudo

De tudo o que foi feito

só pra mim,

você passou e resisti.

Ficou o gosto, seu corpo

todo se escreveu

de novo em mim.

Estendeu-se em novo

um abraço,

um novo jeito meu

meio nosso jeito de criar

um velho jeito de lembrar

de tudo.

Se o que foi feito já acabou

fica assim

fica bem

vá andando

tô te olhando

não vou deixar você cair.

De tudo o que prometo

sei menos hoje

sou menos hoje

sei mais de mim.

Assim disfarço em riso.

Sorrindo

de todo grande defeito.

Se de todo jeito

de tudo o que foi feito

o que se fez

bem feito,

ficou.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Noites tropicais

Ficava sentada em cima da mesa da cozinha, pernas cruzadas, cigarro na boca e queixo quase apontando pro teto. Aquele seu mesmo jeito estranho e sexy de me desafiar. Queria porque queria tatuar logo a perna direita, adorava aqueles desenhos old school. Mas mal tinha terminado de cicatrizar o último, já reclamava sem parar daquele peso assimétrico atrás de si. Sua boca dançava entre palavras vulgares, entre fortes e densas baforadas pra baixo. Concentrava-me no barulho alto da geladeira ligada. Funcionava como um mantra. Com a temperatura quente e úmida, tornava-me burro, lento e defensivo. Era como vertigem sua voz misturada ao zunido do motor, fumaça, luzes fortes refletidas desenhando um rastro pelo azulejo e cerâmica. Apesar de rara, acidentalmente surgia uma brisa, circulando por entre nossos corpos como um espírito amigo refrescando alguns instantes de pensamentos vazios. Ficava ali deitado no chão com pena do mundo, no mesmo lugar de sempre, estupidamente distraído. Solenemente despreocupado com sua voz aguda após a quinta ou sexta palavra mais alta. Deixava a doida ferver como uma panela prestes a explodir, para levantar de repente e, sem avisar, levá-la pelo colo até nossa banheira. Depositava seu corpo escultural e nu em água quase fria, que se comportava como peixe voltando ao rio. Ensaiava protestos em sussurros, em palavrões, antes de refugar, trôpega e sem relutar, seguir minhas ordens como uma cadelinha. Meus passos molhados riscavam um mapa de volta à cozinha. Agora sozinho preparava como um rei sob um chão de tabuleiro outra dose generosa de uísque com bastante gelo. Não precisaria nem tornar a pisar no tapete surrado do banheiro para prever o futuro. O castanho dos meus olhos veria suas mãos em sexo, seu rosto perdido e suas pernas balançando em gotas, como um convite de dedo indicador. Hora de jogar minhas roupas longe e reescrever outra noite como se fosse a última vez que faríamos amor.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Interlúdio

O sol na cara cria um filtro meio Grains de beauté nos primeiros segundos do dia. Seu sorriso sincero afasta as nuvens do corredor. Afasta o mal. Afasta a dor. Passo a reconhecer os feirantes. Dou bom dia com os olhos, caminhando por um asfalto cheio de aromas. Já não brigo mais com meu despertador. De repente você me traz essa vontade de cuidar da minha saúde. Absurdo. Acho graça dos tapas que recebo na pele rabiscada. Acho graça da nossa vida. Nos meus braços, sem espaço, a tinta fica mais forte. Minha cor torna-se rubra e invade meu branco de sangue. Minha língua invade e traduz-se dentro de seu corpo. Ela fala sozinha. Você geme. O tempo corre lento: anda zombando da gente. E me pego falando sozinho. Desenhando corpos nus. Eles correm, tatuados, debochados. Sigo escrevendo. Protestando. Deixando meus livros caídos pelo quarto. Deixando a janela aberta. Tudo com esse filtro meio Grains de beauté. Tudo com essa música tocando pela milésima vez. Respiro forte. Fica fácil fazer poesia assim, com sua perna em cima da minha, louça suja na pia e aquele quadro triste e inacabado, pedindo atenção no outro canto do nosso quarto.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Um catarro na poltrona da sala ou Johnny Rotten crisis parte II

Não deu nem tempo de achar que foi um sonho. Foi só tomar coragem pra sair e jogar o lixo fora que aconteceu. Porta entreaberta, passos de bêbado que não quer acordar a mulher e voilá: meu cuspe sentado na poltrona da sala, impassível. Não sei se o álcool remanescente em meu sangue (ou vice versa) tranquilizou-me, mas agi com uma naturalidade quase blasé. Peguei o caderno de esportes do jornal, sentei no sofá bem a sua frente e dobrei calmamente o calhamaço de folhas em quatro, depois de acender um cigarro. Ameacei começar a ler a matéria sobre o jogo do dia anterior, mas achei demais iniciar um mise-en-scéne tosco. Porra, não dava pra negar a realidade: o caralho do meu catarro estava vivo, na minha frente, sentado na minha sala. O tipo de situação que me fazia repensar meu ateísmo. Queria pelo menos poder fechar os olhos e crer em alguma coisa, sei lá, pedir pra alguém vestido de branco resolver as coisas por mim. Mas não, nem isso. Pelo menos o infeliz viscoso parecia menor do que ontem. Pelo menos ele não falava encostando, mas que diabos, apesar de redundância, o infeliz cuspia. Um perdigoto por vogal. As vezes a cada consoante. Cuspia como um ator em sua primeira fila. Como um cachorro secando seus pêlos. Fazer o que. Já passei por coisas piores. Pelo menos não me pedia dinheiro emprestado. Ficamos conversando até a noite cair. Depois de algumas garrafas de vinho cheguei até a achar o cara legal. Não podia ser diferente. Impossível não cair nessa armadilha. Aquele troço tinha saído de mim. Talvez fosse meu lado punk. Meu lado mais primata, mais inadestrável. Suas palavras eram objetivas, sagazes, de uma personalidade dilacerante. Acordei no meio da madrugada, dentes roxos, mesma roupa de dois dias atrás, o catarro esparramado no corredor. Cheguei a confundi-lo com minha bile, mas o danado respirava: estava dormindo. Abri uma cerveja e me dei conta que tinha furado com Cíntia. No celular, três ligações perdidas. Orgulhosa, jamais ligaria trezentas vezes. Gosto de mulheres assim. Mas ela não gostaria de saber que furei porque fiquei bebâdo conversando com meu próprio catarro. Fazendo a barba com um cuidado adolescente, inventei umas cinco desculpas diferentes pra não ter atendido suas ligações. Mas já sabia: ela não acreditaria em nenhuma delas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Duas ou três poesias e o vento

E bate a mesma sensação de tempo perdido. Macaco velho, fico dando voltas dentro de minha própria cabeça. Recuperando arquivos. Checando novas possibilidades para buscar algum sentido em todo esse nosso fracasso. Até derramar tudo. Até me sentir vazio. Aí bate a onda. Porque é estranho não me sentir leve desse jeito. Tá foda não admitir que tô feliz. Já não me assusto ao perceber as risadas que andam freqüentando a rádio do meu peito. Não tô mais pagando jabá pra entrar nessa vibe. Bate até uma pena por esquecer você tão rápido, mas esse papo de sofrer por sofrer ficou perdido entre os meus vinte e poucos anos. A boa do dia? Já não quero mais te mandar pro inferno. Porque minhas manhãs agora têm outros cheiros, outros ventos, outros planos. Tô legal de motivos. Deixo você colecionar sozinha todos os que te fizeram sentir raiva de mim. Se já não tenho a menor pretensão de achar que vou fazer falta na sua vida, é porque cansei de abdicar da minha.

. . .

Lindo, ela diz. A preguiça de falar me reduz a um aceno, contraindo meu rosto até formar uma espécie de agradecimento com minhas expressões. Mas acabo sussurrando algo. Digo que ainda o acho meio frágil. Que preciso pedalar um ou outro tom nesse novo texto. Ela caga um balde pra isso e pula em cima de mim. Começamos a nos beijar. Deixo meu caderno deslizar e cair como se naquele momento reduzisse nosso compromisso ao nada. O vento levanta duas ou três poesias inacabadas que, sortudas, testemunham um casal com vontade quase literal de se comer.

sábado, 5 de junho de 2010

Três putinhas e uma Bic

Priscila era a mais porca das três. Só não a expulsava daquele chiqueiro porque a danada tinha uma dicção sensacional. Até hoje me pergunto como uma pessoa que sabe ler tão bem pode ter tido uma vida tão fracassada. Ela vivia em minha cozinha. Dormia por ali mesmo em cima dos restos, migalhas e jornais velhos. De vez em quando adorava sentar ao seu lado e observar a bagunça que as formigas faziam ao seu redor. Quando estava bêbado o bastante de gim ficava ali, rente a seu corpo morto e flácido, vendo a farra dos insetinhos insolentes. Acho que até essas criaturas ridículas tinham nojo dela. Passavam desenhando sua anatomia, como aquelas pinturas policiais de cadáveres no chão. Contornavam a puta, mas não encostavam nela. Jamais encostavam nela. Vivia com minha aposentadoria, mais uma gorda bufunfa recebida por um acidente sofrido numa loja de departamentos. Uma bela quantia acrescida de juros e correção monetária, por causa de uma bola perdida na sessão de caça e pesca. A bola, no caso, era uma de minhas duas mesmo. Tomei um tiro bem no meio do meu caralho. Não exatamente no centro a ponto desse texto ser assinado por um eunuco. Foi mais pra esquerda. Certeiro na minha bola esquerda. O filha da puta engomadinho do meu advogado era ganancioso e sabia das coisas. Me disse que aquele rifle jamais poderia estar carregado. Perdi uma bola, mas meu pau ainda podia levantar. Com o dinheiro que ganhei, pude viver por uns trinta anos tomando minha cerveja barata e comendo os cozidos que Karina preparava. Karina, Karina, a viciadinha. Ficava um porre quando a abstinência batia pesado. Uma vez bateu uma fissura daquelas na pobre coitada, no meio de uma final de campeonato. Lembro de seu corpo pesado, sua expressão como a de um gorila, espumando. Tive que trancá-la dentro de casa e assistir o jogo no boteco da rua. Foi quando conheci e tomei um porre com Laura. Nossa certidão de casamento foi feita em um pedaço do cardápio. Tudo muito romântico. Dali em diante, acabamos formando o que seria uma das famílias mais estranhas do apartamento 401 do 59: eu e minhas três putinhas. Pri, Karina e Laurinha não se importavam em me dividir. E eu não era lá o que se pode chamar de um ótimo partido. Mas deixava as três viverem ali sem pagar o aluguel, fazia vista grossa para as suas escapulidas e contentava-me com o que realmente me fazia feliz: ouvir meus textos lidos em voz alta. Sentia-me melhor que Bandini. Sentia-me vivo. Sentia-me lido. Todo escritor, do mais fajuto carinha que joga uma vergonha alheia num guardanapo e pede pro garçom entregar à uma bela senhorita no outro lado do bar, até o cara que recebe um pomposo cheque pelo adiantamento de um virtual novo best seller. Todo escritor, todos, sem a menor sombra de dúvidas: querem ser lidos. E ser lido em voz alta, meu camarada, não é ter o guardanapo dobrado e colocado no bolso ou um novo livro comprado e jogado na estante. Ser lido em voz alta é ter realmente seu texto saboreado, fodido, esquartejado, cagado, dispersado ou, quando se consegue chegar a mais suprema consagração: ser lido em voz alta para você, que o escreveu. É como o paraíso. O cumprimento de uma missão terrena. Os segundos após você tirar a calcinha da mulher de seus sonhos e que antecedem a melhor foda da sua vida. É mais ou menos isso.

Foi difícil deixar aquele lugar e ter que fugir da polícia depois dos sessenta. Sempre achei que essa idade me traria juízo. Que estaria na Itália criando cabras ou sei lá, com dígitos de sobra no banco, morrendo em alguma espelunca de overdose por misturar ecstasy, pó e remédio pra impotência. Mas encrenquei com um imbecil que deixava bilhetes anônimos por baixo da minha porta, falando mal dos textos que minhas putinhas liam em voz alta. No começo achei até simpático o cara me elogiar em meio a palavrões e xingamentos. Depois encheu o saco. Foi fácil demais achar o desgraçado, devia existir algum tipo de sadismo no cara pro otário deixar tantas pistas sobre como chegar até ele. Fora a ridícula idéia de ter ido pessoalmente deixar os bilhetes um a um debaixo de minha porta. Matei-o com uma caneta Bic no pescoço. Aprendi isso num daqueles filmes horríveis que passam de madrugada. É impressionante o que a televisão pode ensinar pras pessoas hoje em dia.

domingo, 23 de maio de 2010

Roland Garros

Saibro. Não me dava bem no saibro. Meu pai e toda aquela merda de bons modos e escolas caras e etiqueta no jantar me empurraram pra porra do tênis. Só serviu pra comer uma ou duas gatinhas com o cuzinho recheado de grana que, pra variar um pouquinho, desistiram de mim quando não me adaptei ao modus operandi de ser tratado como uma de suas novas bolsas de grife. Mas uma delas até que era bem gostosa. Cretina da pele cor de leite desnatado.

Saibro. Nunca me dei bem no saibro. Escorregava demais. Chegava em casa com canelas vermelhas, arranhões e a risada do meu instrutor martelando na cabeça. Deitado naquele buraco com as mãos amarradas foi exatamente nisso que uma espécie de Google mental localizou quando aquele filho da puta escorregou. Saibro. Alguns podem chamar isso de milagre. Eu chamo isso de um dia bom. A bala disparada por ele na queda deve ter passado ao lado da minha costela, pude sentir o calor da desgraçada. A cabeça do cretino não teve o que podemos chamar de sorte. Uma das pedras daquele buraco, meu portal para o inferno, era do tamanho de uma manga e abriu uma boceta maior que a de uma puta velha em cima de seu olho esquerdo. Após isso tudo seguiu em paz em uma longa noite de espera. Era quase romântico. Seu sangue quente jorrando em meu peito, enquanto eu ficava lembrando da porra das aulas de tênis. Da porra do saibro. Do cu de uma daquelas patricinhas. E foi assim que livrei meu traseiro daquela maldita cova rasa. De manhã cedo um viciado achou estranho quando viu aquele negão em cima de mim. Ainda em estado de choque me tirou debaixo daquele monte de carne podre. É impressionante como a gente fede. É impressionante como quando nossa alma resolve tirar umas férias, nosso corpo vira um monte de fezes. É isso que nós somos sem alma. Fezes.

Lá no serviço até hoje todo mundo me considera um cara de sorte. Ninguém entende como me livrei dessa. E sempre quando tiram uma bala nova do meu corpo, geralmente na manhã seguinte a uma noite daquelas, dá pra ouvir de longe o pessoal sussurrando. Os urubus mal sabem falar sua língua mãe, mas me chamam de “Roland Garros”. Falam que eu tenho o corpo fechado. Tô cagando pra isso.

domingo, 9 de maio de 2010

Saideira

Abriu os olhos após um micro cochilo no balcão de seu boteco preferido. Demorou certo tempo para cair a ficha de que toda a população da Terra havia sido dizimada. Acordou com uma baita vontade de tomar um grau e se divertiu por alguns dias saqueando garrafas de cachaça dali mesmo e da mercearia na esquina, até se dar conta do tamanho da encrenca. O pique esconde sem precedentes garantiu o sumiço inclusive dos pobres animais. Nem o sarnento sem nome, aquele vira lata que sempre mijava na árvore de natal da loja de departamentos da rua, tinha sido poupado. Pra ele, animais, mesmo os do tipo que mijam em presentes cenográficos, mereciam uma espécie de clemência.

Foram meses se masturbando, bebendo e apreciando uma dieta especial: exatamente tudo o que uma nutricionista indicaria ao contrário. Morrendo de tédio e abstinência pelo fim do estoque de cana em seu quarteirão, resolveu se aventurar pelo bairro. Já havia desenvolvido certa habilidade para lidar com esse monte de dias iguais e até com a falta de luz, gás e água encanada. Diferente de todos os filmes e histórias de fim do mundo, ali as pessoas pareciam ter se desintegrado num estalo de dedos. Não existia um panorama de caos, guerra ou luta pela sobrevivência. Ninguém precisou se digladiar ou comer um bife da bunda de seu vizinho. As pessoas pareciam ter simplesmente sumido. Coisa de um peido. Baita peido, aliás.

Um ano após o dia que o planeta despachou todos os seres humanos como um adolescente se livra de suas obrigações, seu, até ali, único condômino, avistou uma grande porta brilhante. Ao seu lado: um homem de terno. Pensou em correr pra lá. Tinha tanta coisa pra perguntar, pra conversar, pra compartilhar. Mas paranóico por todo aquele tempo sozinho, resolveu chegar mais perto e apenas estudar o terreno. O homem de terno fazia as honras como uma espécie de porteiro ou leão de chácara. Impassível, seguia guardando a tal entrada. Obviamente para ninguém, pois não havia alma viva no planeta para aparecer de pulseira vip no braço e adentrar o recinto.

Alguns dias depois, com a barba gigantesca, a mesma camisa do Flamengo de um ano antes, mas com uma confiança nova e contundente transbordando em seus olhos, resolveu dirigir-se até a porta. Não pôde deixar de notar a surpresa do homem de terno, que parecia conhecê-lo. Ao chegar até sua frente, disparou:

“Como é que eu faço para entrar aí, meu camarada?”

Mermão, acho que agora tu se fodeu. Mas vá lá, pode entrar”

Finalmente voltou para casa. Ficou sem a mulher, mas até hoje ela jura que o canalha contou essa história sem gaguejar, nem piscar uma só vez.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Restart

No corpo dela, quase todo coberto por tatuagens, ainda sobrava espaço pra muita pele vermelha. Daquele tipo rubro pós tapa. Distante da poesia, simplificara seu ímpeto criativo tomando vodka. Escolhia muito bem quem tolerar ao seu lado, era preciso passar no teste: não ser sacal. Impossível impressioná-la com um carro ou uma conta bancária generosa, já que a umidade em sua boceta não costumava ter ligação direta com medalhas sociais. Isso pelo menos não me tirava do jogo. Ainda não a conhecia quando esbofetei seu drink e quase joguei seu corpo frágil pro outro lado do balcão. Naquele ponto duas únicas coisas chamaram minha atenção. 1) A pin up na pele branca de uma de suas lindas pernas. 2) Os cacos de vidro da caneca quebrada em meu queixo, pousados na madeira podre do chão do Saloon. Prazer. Lá estava eu conhecendo uma nova mulher com ótimas credenciais pra começar uma conversa: nocauteado, bêbado e, talvez a única coisa mais próxima de um leve romantismo, jogado aos seus pés.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Por todo esse barulho que o silêncio faz

O silêncio faz um barulho danado quando a gente insiste em não pensar mais naquilo que, tá na cara, não vai sair da cabeça tão cedo. Cada parágrafo, cada poro e toda referência seguem impregnados. Desassociar sentimentos soa tão patético como separar a cola de um Jack após preparar a porra do drink. É impressionante como é impossível estar pronto pra um momento que, não importa como, vai te machucar. São socos no queixo em seqüência, murros no nariz entortando uma zona de conforto, num desconforto que te tira de órbita. Aí você fica vagando pelo espaço à procura de um cheiro, de alguns adoráveis defeitos e de cada um dos planos que insistiu em fazer. De que adianta saber que é preciso viver o hoje? Pra que essa merda de cagação de regra? Todo mundo no fundo sabe que a maioria dos planos nunca chega a ser cumprido. São quadros de cores belíssimas, com pinturas esquecidas em porões que ninguém vai conseguir admirar jamais. Sonhos que flertam com uma inocência bendita. De um romantismo quase ultrajante. E suas desvantagens insistem em se fantasiar de vantagens. E outra vez o chão treme. Outro barulho seco. Outra vez você está na lona. Posso sentir o aroma de minha sina. Ele é acre, abafado, me causa asma. Mas é entrecortado por uma série de perigosos flashes. São nocautes magníficos onde ganho fama, aplausos de merda, um pouco de dinheiro, bocetas e algumas fotos de jornal. Contudo, o que ainda segue me atraindo é a droga desse chão, que se assume tão mais infinito que o céu. Não me ensinaram a olhar pra cima, então fico andando por aí cabisbaixo. Sigo revestido por uma coragem falsa, dentro desse meu medo de tropeçar de novo. Tenho tanta fé que tudo vai acabar bem, que meu peito deixa de morrer um pouco mais hoje, só pra escrever sobre a falta que me faz o seu amor.

terça-feira, 16 de março de 2010

Jacira e a italianada

Sua roupa fedia a cachorro molhado e não era lá uma das coisas mais recomendáveis chegar próximo a ele. Estava tudo escuro dentro daquele porta-malas fechado. Depois de milhares de dias comuns em sua vida, com pequenas variações de rotina, uma ou outra promessa não cumprida e um emprego mais sem sentido que o outro, estava ele ali. A cabeça doía. Não sabia se ela estava molhada ou sangrando. Não sabia muito bem o que estava acontecendo. Deixou o batente e foi até a esquina como de costume, pra tomar um aperitivo antes de jantar mais um congelado em casa. Agora era aquela escuridão total e um cheiro de chuva com mato, que começava a preocupá-lo. Estava claro que o perímetro urbano ficara pra trás. O tédio era desafiado a cada tranco ou pulo que uma suspensão de merda mais algumas ruelas de terra, proporcionavam ao seu corpo ridículo. Em suas idéias vagamente surgia a lembrança de um cu. Logo a cabeça voltaria a funcionar. Era uma bunda que sorria pra quem sabe exatamente como identificar o sorriso de uma. Sua dona escrevia em um caderno algumas anotações a esmo. Chegou a pensar se tratar de uma dessas escritoras que dão pra qualquer cara que as faça chorar. Ficou tentando imaginar o que traria até aquele lugar uma bunda como aquela. Algumas disfarçadas varizes em suas pernas maduras, conseguiam excitá-lo ainda mais. Planetazinho triste o nosso, cheio de depravados parecendo gente normal. Preso dentro daquela máquina enferrujada que corria feito um cavalo selvagem, parecia mais calmo só pela ligeira lembrança da ultima boceta capaz de virar seu mundo do avesso. Tentou voltar mais no tempo. Lembrou de sair pela manhã e esquecer a roupa na máquina de lavar por outro dia. Depois de repetir a mesma camisa no trabalho por toda a semana. Depois lembrou de Jacira e de seu papo desconexo sobre sequestrá-lo se o visse com outra vadia na esquina do trabalho. Ela disse que o mataria. Depois lembrou do que pensou ao tirar a calcinha daquela bunda-do-par-de-pernas-com-varizes-do-bar. Subitamente um barulho chamaria sua atenção para logo em seguida, seus olhos serem banhados e maltratados pela luz de um poste amarelo. Do porta-malas aberto dava pra enxergar com seus olhos tímidos e semicerrados, a italianada disciplinada. Estavam formados como jogadores de rugby, só que portando armas, trabucos e pistolas. Pareciam felizes e o som do Crystal Method vazava pelo fone sofrível do ipod de um deles. Os irmãos de Jacira eram difíceis de engolir, mas até que se vestiam bem. Depois de perceber o que estava pra acontecer, relaxou. Achou de forma até comovente e sincera, que valia a pena morrer por aquele cu.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Loop

As decepcões continuam as mesmas de sempre. Quanto mais expectativas, quanto maiores os planos, quanto mais você fica olhando aquela foto recortada na carteira que faz todo o seu discurso trendy cair por terra. Quanto mais isso acontece, maior será a vaca da decepção. Não dá pra lutar contra ela. Aí você olha pra sua barriga e pensa em comprar o aparelho que um freak na TV anuncia. Ele dá choques. Mas você não quer ficar em forma. Quer acordar. Quer tomar choques como um paciente numa maca, na emergência de um hospital público. Afinal tudo de novo cansa. Dá trabalho demais se apaixonar novamente. E você escreve seus piores textos. Volta a sentir azia e a ligar pras mesmas vadias que vão dar pra você com um brilho quase vingativo no olhar. Dá pra ler o balãozinho fofo de seus pensamentos, como em uma história em quadrinhos, ele diz "eu já sabia". E você goza. E você ri. E você se droga. E você bebe. Bebe mais. E você entra dentro de seu próprio quarto escuro de novo. Aí a merda da luz chega. Bate no seu ombro e explica tudo. Aquele mesmo blá-blá-blá sobre você ser o cara, ser muito melhor que isso, sobre encontrar alguem melhor que ela. Afinal ela era uma mimada mesmo. Era uma egoísta. Não era boa suficiente para você. E tolo, você acredita. E já não come mais qualquer uma que chama você iluminando o quarto pela tela de um celular vibrando. E volta a ler. Volta a assistir aquela mostra de cinema que mudou até de patrocinador. Volta a escrever alguma coisa digna. E passa a beber menos. E tem muito mais tempo para si, pra organizar seus pensamentos. Começa a produzir mais. Vira novamente um cara bem interessante. Mas um belo dia um par de olhos cruza seu caminho num bar, numa calçada, numa rede social brega ou no meio de uma festa de quinta categoria. E papo vai, papo vem e ela curte vinil e você adora Crumb e ela te beija com os olhos fechados e você anota um novo número na agenda. Mas em pouco tempo ela vai achar infantil curtir Crumb. E você vai achar muito wannabe curtir vinil. E você vai sentir falta de sua ex. E as decepcões, vão continuar as mesmas de sempre.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Croix Faubin

Na Croix Faubin, longe de tudo. Bebendo vinho como remédio. Certo de tudo que não quero mais. Salvo pelo jazz na sala. Salvo pela coragem vira-lata que corre em minhas veias. Já nem me importo mais. Se sei que sempre vou estragar tudo no final me concentro no começo de minhas verdades. E tenho grandes começos. Tenho alguns dignos de cadeado na ponte. Dignos de Paris. Dignos de meus melhores textos. Não preciso de ninguém pra colocar meus planos pra baixo porque já me basto. Fica difícil competir com quem se torna o próprio algoz e maior admirador.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Pronto pra morrer de novo

Toda nossa estupidez estava reunida ali. Em cima da mesa um pouco de pó, um cinzeiro lotado, uma Flaunt antiga, copos com bebidas coloridas, papéis rabiscados, minha fisheye e os lindos pés de Emanuelle. Falávamos como se fosse necessário essa exposição, como se fosse necessário retirar nossos intestinos cheios de merda e esticá-los como a rede da sala. Um protocolo era praticamente seguido por cada um: 1) uma história triste 2) uma aventura sexual 3) um desastre familiar 4) um plano alternativo. Pra onde corria nosso sangue morno e químico, após dar com a fuça no final de nossas extremidades, veias, pele, limites? Esta continuidade obssessiva nos levaria a algum lugar?
Alheia a tudo, alheia a sua vida, distraída de nascimento, Marie propôs um brinde. Me recusei e fui fumar um cigarro na cozinha. Chiara me beijou assim, sem motivo, com sua boca exalando novidade. Da pequena janela ao lado de um quadro espelhado antigo, rachado e cheio de rococós, pudemos assistir toda a bela covardia laranjoroseada do sol saindo de cena pelos fundos de um apartamento virado pra uma rua triste. Depois era domingo, depois seria terça e seria quarta e seria a chuva que traria nossa consagrada tristeza ao cair de um novo dia. Depois tudo ficaria a sorte do tédio e de nossa vontade contínua de deitar no colo de nossos pais. Mas quem nasceu com pés tão perfeitos como Emanuelle, com a distração tão inocente de Marie ou com a leveza de fazer qualquer chuva parar, como Chiara, jamais poderia chorar seus desesperos por assisistir o tempo passar tão rápido. Nossa estupidez estava reunida numa foto instantânea. Nossa estupidez era o que nos mantinha vivos, livre dos aparelhos. Celebrei minha fuga. Celebrei cada um de meus fracassos. Celebrei tudo isso colorindo o que me deram de presente sem prazo de validade. Meus valores eram ainda minha grande arma. Meus discos estavam a salvo. Minha poesia carregava aquele ridículo gostoso, aquela vergonha alheia que enrubesce a face, aquela preguiça de sair pra comprar gelo.
Bebi um pouco de água e levei meu corpo rabiscado pra caminhar. Era preciso um pouco de fôlego para continuar perdendo o ar. Chiara soava perfeita ao meu lado. Bastava me olhar pro mundo aceitar esperar um pouco mais. Resolvi sem pensar muito dedicar tudo o que havia escrito até hoje, pra ela, com Third do Portishead como testemunha, no máximo. Mais uma prova de superação. Era possível avançar em nossa própria estupidez todos os dias. Éramos eu e meu sorriso mais apaixonado, ali, prontos pra morrer um pouquinho de novo.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Um buraco no teto

I.Ficávamos a tarde inteira naquele sofá. O cheiro das mangueiras entrava adocicando o quarto por uma grande janela que vivia aberta na varanda, com cadeiras antigas e confortáveis. Com o rifle apontado para cima, nos divertíamos mirando a lâmpada apagada. Nossos rostos chegavam muito mais perto do que poderíamos em qualquer outra situação. Acho que isso criava inocentemente uma atmosfera proibida, que transformava minha testa em uma espécie de caminho para gotas rolantes de suor. Em certos dias sentia-me tão excitada que a vontade era de apertar aquele gatilho e atirar. Atirar pro alto, no teto, em um galho ou até em algum pequeno animal. Sentia-me bandida ao seu lado. Sentia-me nua perto de seu corpo coberto de tatuagens.


II.Aquela garota era realmente especial. Não tinha medo de mim, de meu sobrenome raso e de meus poucos dias fora da prisão. Gostava realmente de ficar comigo naquele sofá velho aprendendo a montar e desmontar aquele antigo rifle. Enquanto mirávamos para alvos inventados por nosso tédio, seu cheiro de sabão e leve colônia elevavam meu espírito e transformavam minhas narinas em dois escravos daquela menina. Meus pensamentos vagueavam entre o sacro e o profano com ela ao meu lado. Sentia-me puro ao seu lado. Sentia-me puro e longe de meus infernos perto de sua pele rosada em inocência.


III.Um tiro é disparado e um pouco de reboco cai do buraco feito no teto da antiga casa. Um cachorro late ao longe até o forte calor convencer sua cabeça animal que não vale a pena tanto esforço. Um rádio gorduroso toca uma música espanhola cheia de ritmo e cordas, enquanto duas pessoas transformam seus corpos em alguma coisa parecida com a Disneylândia. O rifle assiste tudo ainda quente, largado ao chão, exalando cheiro de pólvora e munição velha.