quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Pronto pra morrer de novo

Toda nossa estupidez estava reunida ali. Em cima da mesa um pouco de pó, um cinzeiro lotado, uma Flaunt antiga, copos com bebidas coloridas, papéis rabiscados, minha fisheye e os lindos pés de Emanuelle. Falávamos como se fosse necessário essa exposição, como se fosse necessário retirar nossos intestinos cheios de merda e esticá-los como a rede da sala. Um protocolo era praticamente seguido por cada um: 1) uma história triste 2) uma aventura sexual 3) um desastre familiar 4) um plano alternativo. Pra onde corria nosso sangue morno e químico, após dar com a fuça no final de nossas extremidades, veias, pele, limites? Esta continuidade obssessiva nos levaria a algum lugar?
Alheia a tudo, alheia a sua vida, distraída de nascimento, Marie propôs um brinde. Me recusei e fui fumar um cigarro na cozinha. Chiara me beijou assim, sem motivo, com sua boca exalando novidade. Da pequena janela ao lado de um quadro espelhado antigo, rachado e cheio de rococós, pudemos assistir toda a bela covardia laranjoroseada do sol saindo de cena pelos fundos de um apartamento virado pra uma rua triste. Depois era domingo, depois seria terça e seria quarta e seria a chuva que traria nossa consagrada tristeza ao cair de um novo dia. Depois tudo ficaria a sorte do tédio e de nossa vontade contínua de deitar no colo de nossos pais. Mas quem nasceu com pés tão perfeitos como Emanuelle, com a distração tão inocente de Marie ou com a leveza de fazer qualquer chuva parar, como Chiara, jamais poderia chorar seus desesperos por assisistir o tempo passar tão rápido. Nossa estupidez estava reunida numa foto instantânea. Nossa estupidez era o que nos mantinha vivos, livre dos aparelhos. Celebrei minha fuga. Celebrei cada um de meus fracassos. Celebrei tudo isso colorindo o que me deram de presente sem prazo de validade. Meus valores eram ainda minha grande arma. Meus discos estavam a salvo. Minha poesia carregava aquele ridículo gostoso, aquela vergonha alheia que enrubesce a face, aquela preguiça de sair pra comprar gelo.
Bebi um pouco de água e levei meu corpo rabiscado pra caminhar. Era preciso um pouco de fôlego para continuar perdendo o ar. Chiara soava perfeita ao meu lado. Bastava me olhar pro mundo aceitar esperar um pouco mais. Resolvi sem pensar muito dedicar tudo o que havia escrito até hoje, pra ela, com Third do Portishead como testemunha, no máximo. Mais uma prova de superação. Era possível avançar em nossa própria estupidez todos os dias. Éramos eu e meu sorriso mais apaixonado, ali, prontos pra morrer um pouquinho de novo.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Um buraco no teto

I.Ficávamos a tarde inteira naquele sofá. O cheiro das mangueiras entrava adocicando o quarto por uma grande janela que vivia aberta na varanda, com cadeiras antigas e confortáveis. Com o rifle apontado para cima, nos divertíamos mirando a lâmpada apagada. Nossos rostos chegavam muito mais perto do que poderíamos em qualquer outra situação. Acho que isso criava inocentemente uma atmosfera proibida, que transformava minha testa em uma espécie de caminho para gotas rolantes de suor. Em certos dias sentia-me tão excitada que a vontade era de apertar aquele gatilho e atirar. Atirar pro alto, no teto, em um galho ou até em algum pequeno animal. Sentia-me bandida ao seu lado. Sentia-me nua perto de seu corpo coberto de tatuagens.


II.Aquela garota era realmente especial. Não tinha medo de mim, de meu sobrenome raso e de meus poucos dias fora da prisão. Gostava realmente de ficar comigo naquele sofá velho aprendendo a montar e desmontar aquele antigo rifle. Enquanto mirávamos para alvos inventados por nosso tédio, seu cheiro de sabão e leve colônia elevavam meu espírito e transformavam minhas narinas em dois escravos daquela menina. Meus pensamentos vagueavam entre o sacro e o profano com ela ao meu lado. Sentia-me puro ao seu lado. Sentia-me puro e longe de meus infernos perto de sua pele rosada em inocência.


III.Um tiro é disparado e um pouco de reboco cai do buraco feito no teto da antiga casa. Um cachorro late ao longe até o forte calor convencer sua cabeça animal que não vale a pena tanto esforço. Um rádio gorduroso toca uma música espanhola cheia de ritmo e cordas, enquanto duas pessoas transformam seus corpos em alguma coisa parecida com a Disneylândia. O rifle assiste tudo ainda quente, largado ao chão, exalando cheiro de pólvora e munição velha.