segunda-feira, 3 de junho de 2013

Fabulário sobre nuvem preta


É um trem lotado, uma fila imensa, um prazo estourado, uma crise de consciência. É um copo derramado, uma conta roubada, uma amizade desfeita, um coração estilhaçado. É um pouco a mais de sal, um pouco menos de tempo, uma saudade que não bateu, um emaranhado de frases começando com eu. É o breve que deveria durar, é a cor que não deveria sangrar, é o sorriso que não deveria transbordar, é o acaso que nunca aconteceu. É aquela carta que você nunca enviou, aquele sonho que você nunca sonhou, aquela porta que você nunca bateu, aquele e-mail que você nunca leu. É quando deveria não sei. Se quando deveria ser. Nós quando deveria eu. E tudo o mais que deixa o estômago assim embrulhado feito nuvem cheia de chuva. Feito católico querendo virar ateu.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

quotidianu


Dentro de seus olhos tristes em que cada segundo persiste e se permite ficar. Esperando o que já nem se sabe se poderá vir, nascer ou voltar. Sentado como um Rei que come e boceja e se masturba. Verá surgir um novo cenário de filme. Verá. Verá uma nova história. Um novo disco. Uma nova música velha ouvida pela primeira vez. Um novo espaço dentro de todo o cerco que o laço fechado desfaz, perspicaz. Desfilará toda a sorte de fotos e filtros e botões de compartilhar. Rasgará essa apostila escrota que te prende dentro do lugar que todos querem sair. Pra mergulhar no mar. E sair. Sair nadando em outro lugar.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Engano

-Alô? 
-Alô, Valente?
- ...não, Bento, quer falar com quem?
-Fala sério, é você Valente!
-Não. Meu nome é Bento.
-Ok...
-Ok.

Desligo o telefone. Mas logo aquela voz grave e feminina, de uma desconhecida, volta a ligar.

-Oi, Alô? Por favor o Valente?
-Já disse que não mora nenhum Valente aqui...
-Sabia que você tem a maior voz de Valente?
- ...
-Sério. Ah...e adorei sua voz. Você pode ficar falando um pouco? 
- ...
- ... Assim, qualquer coisa...só pra eu te ouvir...

Uma hora depois estava parado numa praça próxima esperando aquela ilustre desconhecida pra tomar um chope. Apesar da minha voz grave, não passava de um moleque de vinte e poucos anos excitado pelo encontro às escuras. Quando vi aquele vulto do outro lado da calçada tinha certeza que era ela. Andava meio se arrastando, meio que se controlando para não cair. Mas não parecia uma bêbada ou deficiente, era tudo muito sóbrio e natural. Ao chegar perto de mim, sua pele e algumas rugas denunciavam seus quarenta e poucos. Quanto mais deprimente, mais aquilo consumia a minha curiosidade. Ao beijar meu rosto, dizendo qualquer coisa, atacou minhas narinas com um moderado aroma de cigarro. Sem muito o que dizer, caminhamos para um bar de esquina. Após três diferentes assuntos já entendia completamente o sentido de toda a sua comiseração. Não foi difícil esquematizar aquela equação coroa-recem-separada-querendo-aventura na minha cabeça suja. Sua jaqueta preta, sua maquiagem mal feita, seu cheiro de cigarro e sua voz grave tinham lá qualquer coisa que me excitava. Aquilo tudo cheirava mal como nossos piores segredos. Todos os requisitos para uma grande catástrofe estavam presente naquela mesa: minha perdição, dois chopes mal tirados e um cinzeiro rachado e cheio. Balbuciei uma pergunta em tom de afirmação.

-Vamos fumar um na sua casa.

Ela sorriu e eu levantei a mão para pedir a conta. Fomos andando lentamente por ruas arborizadas e já escuras, encobertas por uma noite úmida e quente. Após alguns quarteirões entramos na sua rua. Era uma vila mal cuidada, sem nenhuma alma viva se esgueirando pelas janelas. Parecia uma cidade cenográfica vazia. Dentro de sua casa, um não comprometedor cheiro de mofo se embolava com o cheiro de seu novo cigarro. Enquanto eu passeava com meus olhos pelo ambiente tentando entender aquilo tudo, ela buscava duas cervejas na geladeira. Um mural de fotos chamou minha atenção. Afora alguns espaços em branco daqueles que deixam um desenho mais claro no formato de um retangulo, ilustrando algo que existiu ali até pouco tempo, todas as outras fotos tinham algo em comum: outra mulher. Uma amiga? Uma flatmate? Irmã talvez? Me abraçando por trás ela ofereceu uma cerveja com uma das mãos. Mesmo percebendo minha curiosidade, nada falou sobre as fotos. Eu não quis perguntar e me sentei numa mesinha pra apertar um cigarro enquanto ela pedia licença e entrava em seu quarto, deixando a porta aberta. Um antigo som rock-farofa-americano invadia a sala vindo de dentro do seu quarto, enquanto o fogo consumia a ponta do baseado. O set list trouxe com ele, ela, estranha e belamente feia dentro de uma camisola preta. Entramos em um consenso: eu, a música, seus lábios secos e a fumaça. Logo estávamos nus e deixamos o cigarro agonizando pela metade no cinzeiro hippie feito de durepox. Apesar de um sexozinho bem meia boca feito por nós, acabou me chamando atenção suas caras e caretas. Parecia fingir de forma quase verdadeira. Resgatei o beck, peguei novas cervejas e iniciamos um daqueles papos pós-foda na cama. Ela então falou sobre as fotos. Era sua ex-mulher. Apesar da cara de quarenta e poucos, tinha trinta e três anos. Só fizera sexo com um homem uma vez, seu primeiro namorado, treze anos atrás. Foi o suficiente para descobrir que não gostava da coisa e logo em seguida, conheceu Malu. Transamos novamente. Acendemos novos cigarros e ela levou seus cabelos sebosos até o banho. A casa agora cheirava a sexo e morte. Era a morte de Malu. E depois de me despedir dela e caminhar na chuva até o Metrô, morria também aquela história. Ao chegar em casa tomei outro banho. Tenho a mania de fazer isso quando volto de cemitérios ou hospitais. Ao deitar para dormir, lentamente retirei o telefone do gancho.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sobre fezes, poesia e contas a pagar.

Mais uma música de mentira é escrita e penso em estourar os meus miolos. São todos tão criativos hoje em dia. Ando por ruas onde mendigos recusam comida fresca e gênios nascem em escala industrial. Qualquer um pode ser artista enquanto existir um filtro pra melhorar qualquer merda que sair da nossa bunda. Ninguém sofre mais por amor. Agora escolhe-se um canvas e vomita-se alguma coisa pasteurizada que faz brilhar os olhos de meia dúzia de neo-hippies. Acabaram-se as brigas de bar, ninguém mais bate em mulher, joga prato na parede, lincha alguém na praça. Até os ditadores mais cruéis andam morrendo de velhice. Sem cólera a poesia é moribunda. Sem fel a arte passeia cheirosinha demais e passa vergonha sempre que aparece muito lá em cima do pódio. Salvem as derrotas incomensuráveis. Salvem os pulhas de plantão. Salvem os doentes patológicos que nunca sentaram-se num divã. Salvem os heróis de verdade. Sem dor não existiria literatura. Sem esgoto não nos embebedaríamos com as paixões. Quando vão entender que é preciso parar de escrever, pintar ou se expressar por nada. Cambada de chatos. Há sempre um clássico dando sopa em alguma biblioteca pública imunda. Vá ler, vá se arriscar, vá tomar um banho. Mergulhe na imensidão proletariada que é trabalhar por horas e se espremer num transporte público pra chegar em casa. Compre algo e sofra pra pagar em mil vezes. Busque a beleza na quitação de um carnê. A vida de verdade, meu caro, é muito feia pra bombar no instagram.