terça-feira, 27 de março de 2007

Rum nº2

A gente se conheceu meio por acaso. Numa feira que armam aos sábados perto do meu prédio. Dá pra ver da janela. Geralmente quando acordo com aquelas vontades de me tornar um cara mais saudável de novo, acabo passando por lá a procura de frutas. Pareço um ecologista tarado. Compro quilos de coisas coloridas que depois ficam pretas na fruteira. Uma vez até me deprimiu ver um cacho de bananas podre, cheio de moscas voando por cima, ao chegar em casa com o dia já claro de uma noitada. Enfim, perguntei o nome dela enquanto provava um pedaço de abacaxi numa das muitas tendas enfileiradas pela rua. Estava de óculos e tinha uma bunda que chamou minha atenção de cara. Esses tecidos finos que algumas mulheres usam conseguem me tirar do sério. Vestia uma camisa branca com a logomarca de uma academia ou tipo de luta israelense, sei lá. Esse lance até me intimidou um pouco, mas depois só lembrava disso com certa graça. Principalmente quando estava colocando nela de quatro. Apesar dos óculos darem uma aparência mais séria, algo intelectual ou coisa parecida, ela só lia coisas sobre mulheres. Para colar o velcro faltava pouco. Eram desde heroínas da revolução sexual até a história das mulheres no evangelho. Não me pergunte por que, nem como, mas depois da tal feira e de algumas tentativas completamente fracassadas de conseguir tirar um sorriso dela, estávamos tomando um suco numa lanchonete dessas que só de ficar no balcão você já se sente mais saudável, perto dali. Ela com sua sacola hippie cheia de coisas verdes saltando pra fora e eu com meus quilos coloridos de frutas. Deve ter sido a única vez que dividimos um copo de suco na vida. Não que ela não tivesse esse hábito, mas eu geralmente misturava rum a qualquer coisa. Fica muito melhor.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Cenouras

-Vou ter que viajar. Cê sabe, trabalho...
-Mas você trabalha aqui.
-Uma proposta. Uma proposta irrecusável.
-Então você não vai viajar, vai se mudar.
-Mais ou menos.
-Como mais ou menos, isso tá me parecendo um fato!
-Tem cerveja na geladeira?
-Não, estavam ocupando o espaço inteiro. Joguei fora pra colocar minhas cenouras.
-Elas estavam em promoção de novo?
-Sim.
-Depois que você comprou esse processador, tá um saco sabia?
-(pausa longa)...São Paulo?
-Não, nordeste.
-Lá tem cenoura?
-Acho que sim, no mundo todo devem existir cenouras.
-Mas será que lá são daquele tipo “importado”, que chegam congeladas?
-Tô cagando pra isso.
-Te amo.
-Tô com sede.
-Quer suco?

segunda-feira, 5 de março de 2007

Assim

Quero-te simples como esta janela.
Dela dá pra ver a praça, as folhas no chão.
O sol do céu parece sem graça.
Pra ele qualquer um pode estender a mão.


Celebro toda a paz das vontades fúteis. Toda a liberdade fajuta desses belos fins de tarde.Todos meus gostos e vícios massificados. Tudo o que não é glamourizado. Minhas vitórias fáceis e absurdas. Meus mais brilhantes fracassos. Aquelas vontades de beira de estrada. Uma música de rádio amarelada. Tudo o que corre o risco de ser burro e unânime. Hoje quero esse tipo de sensação. Talvez por estar realmente cansado de dar qualquer tipo de satisfação. Urro de felicidade a cada simples conversa em que podemos chegar além. A cada frase em forma de sussurro, aberta em um espaço coletivo que joga fora a dor. Ou troca ela por algo maior. Essa cumplicidade que o acaso incita. Quilos de incertezas do fundo de nossas entranhas, para as companhias que a lua escolhe como os melhores ouvintes. A legitimidade que a coragem dá. Celebro seu sexo lindo. Celebro nossos erros em forma de poesia suja e nosso amor em forma da mais linda busca. Dou-te o brilho de cada lágrima que permito deixar cair. São suas. São minhas. Minhas dores. Nossas dores. Dores do mundo. Buscas que de tão justas merecem o reconhecimento de continuar. Sabem que esse caminhar aviva. Que quanto mais troféus essas prateleiras suportam, mais acabo me distanciando dos lugares seguros. Mas não caia na tentação de ter medo. Minha excentricidade será uma simples rebeldia inexata, porque ela nem sempre existe. Ela pára. Ela se balança na rede ociosa dos sonhos pueris. De cada avião que vejo no céu e penso "pra onde será que vai esse desgraçado?". Achar que mereço ter você é um achado raro, que mistura a certeza de todo nosso amor e de todo o nosso fracasso. De todo o nosso passado e futuro raso. De todo ensaio que amasso e jogo fora. De toda saída com jeito de quem realmente vai embora. De todo aquele teu lindo sorriso de sofá. De toda essa baía de dúvidas. Mereço esse anzol preso em minha boca e este alvo pintado em minha cabeça. Sei que meu peito acha bonito ficar desprotegido, mas não me sinto aflito. Sinto-me forte. Tatuado. Rumo a tudo que desconheço. Rumo à minha sorte. Rumo ao barulho de cachorros latindo no quintal. Latidos de "oi". Porque latidos de medo eu deixo pra você. Porque folhas secas de outono eu deixo pra você. Porque as velhas intrigas inúteis eu deixo pra você. Fico com a chance de não te prometer nada, nem amor desatinado, nem abrigo. Nem o mais puro riso. Se te quero é assim.