terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Poltrona 56

Entrando no trem atrasado, a cada passo reto em direção ao fundo daquela caixa uma pessoa diferente encarava-me com a mesma idéia original: rosnar em olhares de reprovação. Eram boas vindas que me deixavam a vontade para seguir avançando pelo corredor estreito, cabeça baixa, analisando o carpete sujo, chutando guimbas e pedaços de bilhetes velhos até encontrar minha cabine. Quanto mais me arrastava dentro daquele monte de ferrugem, a distância me fazia crer efusivamente nas letras garrafais que meu bilhete sustentava como sobrenome: classe econômica.
Há quase um ano sem ver minha mulher, ficava imaginando se ainda existiria uma quando chegasse em casa. Em minhas piores noites de bebedeira sempre tinha o mesmo sonho: estava lá eu, de pé, mas apesar do mesmo recinto, invisível para as outras pessoas. Num quarto decorado com papel de parede mofado, apenas um pôster com aquela língua dos Stones existia, preso com fita crepe próximo a um sofá velho. Nele uma ex de pernas abertas e sempre um cara diferente sem rosto, comendo a vadia com uma bestialidade dantesca. Eu disfarçava meu desespero contando a quantidade de espinhas na bunda dos caras. Nunca conseguia terminar de contar, acordando sempre empapado em suor, com a respiração ofegante e olhos vidrados. Era um sonho bem escroto.
Com a proximidade da cabine, minhas mãos começavam a derreter em um nervosismo não declarado, vergonhoso e infantil. Torcia para não me deparar com um obeso mórbido na poltrona 56. Também não agüentaria mais o cheiro de um representante daquele país colorido e me pegava, pasmem, rezando por um gringo ao meu lado ou um ser humano com higiene básica ocidental. Sentia-me podre, carcamano, moralista, quase um rato fascista. Foi então que me deparei com aquele par de olhos cor de piscina. Uma dona de coxas grossas com dentes tão brancos e alinhados, que cada divisão daquele sorriso lindo parecia contar com uma letra formando a frase bem-vindo-a-boceta-mais-rosa-de-sua-vida.
Tempos depois me divertiria respondendo as cartas de seu marido. Ela era casada com um pintor americano gordo e sensível, de nome havaiano, que, não me pergunte como nem por que, descobrira nosso rápido caso no banheiro daquele trem imundo. Durante meses ele seguiria me escrevendo ressentido, com um discurso afetado em moralismo, clamando por uma ética tão inocente quanto sua retórica. Esse cara não imagina como enriqueceu minhas noites de chuva com sua visão bebê-chorão da vida. É preciso sufocar a pena quando tratamos com sofredores convictos. São como baratas. Difíceis de morrer eles rodeiam os cantos de nossa existência, em busca de restos, assustando moças bonitas que só querem homens de verdade e um pouco de diversão enquanto não acham o amor de suas vidas.

domingo, 11 de outubro de 2009

Lost in translation

Quando se está perdido pela Ásia bastam algumas noites seguidas de bebedeira para que o calendário deixe de existir. Perco compromissos, dinheiro e razão. Em compensação são histórias e mais histórias. Muito mais das do tipo que envergonham e nenhuma sequer, que me proporcione um cheque ao fim do mês, isso eu posso garantir. Se já não tenho como escolher o que dizer, o que pensar, nem o que olhar, sigo atento. Meu lucro é não deixar que minha mente apague as partes mais escatológicas, razoáveis ou que elas pelo menos se comportem bem num pedaço de papel. Já não tenho norte, perdi minha bússola, mapas, referências. Deixei minha dignidade perdida em algum cofre pela cidade, com uma senha que jamais cogitei memorizar. Aquela bela garota já não sabe quem eu sou, esqueceu meu rosto e agora oferece seu sorriso raro, tão precioso, de graça, apenas pra melhorar sua baixa auto estima. Posso escutar as ligações histéricas que precedem os bares. Vejo os piores tipos dando em cima dela, observo-a selecionando qual dos otários merece 10 minutos de conversa e enfim, cogitando fazer o que um dia já foi impossível sequer pensar em pensar. Acordo cada dia com um par de coxas diferente ao meu lado e já não sei o que devo fazer. Procuro-a em todas. Não consigo entender o que essas vadias apreciam em mim. Sinto-me desprezível, despreparado e perdido. Meu olhar, que já fora tão obstinado, há tempos não se encanta. Tomo um banho quente e demorado, mas a sujeira que sai de mim, de tão turva, desce bela e deplorável como uma punk sebenta e cambaleante, até o ralo. É como se minha pele fosse feita de lama. Desisto de me limpar, soaria como uma piada achar que isso é possível. Por enquanto me contento em fumar outro cigarro amassado na janela. Uma das poucas coisas que me acalma e força os espíritos que rondam minha cabeça, a partilharem um breve e curto acordo de paz. Ali estou puro. Agora sou puro. Bebo um pouco d’água num copo sujo e sento-me pra escrever um pouco mais. Quando quero afastar os pensamentos ruins, isso dá de dez a zero no Rivotril. Em instantes meu avião vai partir. Nenhuma comissária de bordo está preocupada com o fato de que não vou estar lá ouvindo aquelas instruções repetitivas. Com suas calcinhas compradas em Miami, enfiadas no rabo, elas não estão dando a mínima pra isso, afinal.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Boa noite

Até então são histórias repartidas. São momentos que um por um, vão brigando por atenção na hora dos sorrisos. E eles chegam. E você sente-se menos na merda. E um psicanalista tentaria demover a idéia do raso ou da presidência. E, mesmo estourando a cota da letra “e” em seu texto você diria que não. E diria que não sabe ainda se vai publicar isso. Que te dá certa excitação saber que esse texto não está pedindo pra aparecer. Daí rola. Daí, meu amigo, é só digitar. Só escrever. Só se queimar. Só vomitar em cima de tudo o que te atrapalha. Comprar aquele barulho que reverbera na calçada. Até aqui, meu amigo, eu vou pra casa, saborearei uma sopa. Imagino. E depois, mais tarde, cumprirei a promessa de contar aquela história. Até.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Saudade antecipada

Saudade antecipada é aquela que se cumpre quando o que era som se cala. Sentimento traiçoeiro, ri um riso triste e sem graça entre voltas do que era segurança e agora se apaga. É a vontade de ficar perto que não desapega, cheiro que o ar não deixa nem corrente segurar. Saudade antecipada quando vem, deixa a casa desarrumada. Lençol no chão, meia na sala. Peito reclama e mesmo vazio, com espaço, teima em não caber mais nada. Como pirraça o corpo dói e a cabeça, maltratada, pede papo, tempo, tudo, para não ficar parada. É o amor que quando se vai, aperta a liberdade e deixa tudo que era tempo livre, sem graça. Faz do papo de quem não se quer mais ouvir, puro tédio. Faz da música que bate e insiste sorrir, bobagem levada a sério. Faz que passa. Saudade antecipada é feita para quem espera alguém que longe, já não dá o ar de sua graça. Que aprende a contar centímetros, metros, milhas, quilometros. Valorizar instantes, décimos, segundos, passantes. Que não ousa desligar primeiro e não imaginaria nunca a falta danada que pode fazer esse cheiro. Saudade antecipada é aquela saudade ingrata, que zombe nos ouvidos, chata, sem deixar você dormir.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Réu de réis

E se o que era apreço vira moeda, já temos um preço. Não vendo minha alma por você, nem por ninguém. Daria ela a ti, daria ela e muito mais. Enquanto nossos riscos não dependiam da cotação do dólar, ficava mais fácil dividir meu coração em dois. Agora vamos multiplicando nossos erros, sem olhar direito para o problema que virou ficar assim sem pensar em algo além de nós. Prefiro rasgar meus bolsos e jogar fora minha roupa. Prefiro virar pedinte de rua, sem patrão, sem esfinge. Prefiro não ter família, nem nome, nem religião. Talvez só um cachorro bem bobo, que do meu lado, inseparável, possa dizer-me latindo o quanto tempo já perdi tentando fazer você entender o valor do dinheiro. Pra mim, já não custa nada deixar pra lá. Deixo o troco na mesa e jogo uma moeda pra cima. Minha sorte é de graça e nela vejo que sempre um lado vai existir. Então já posso ir.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

8 de setembro

Depois de beber meu vinho e comer da minha comida você se levanta. Observo seu corpo frágil tomar partido, num vestido que valoriza cada curva de sua geografia perfeita. Agora não temos mais segredos. Agora sabemos que somos feitos um para o outro. Procuro minhas chaves e observo meus pés em movimentos infantis como dois animais que se tocam, esperando o tempo voar. Você bate a porta e meu tédio começa. Passo meus dias sem tensão, sem brigas, sem discussões. Sinto falta de nossos destemperos, do ódio em seus olhos ao me fitar de forma convincente, no auge de nossa falta de paz. Quero uma mulher que possa me matar a qualquer instante. Quero esse perigo de vida me assombrando. Sua seiva me alimentando. Suas olheiras me fitando. Quero achar infantil todo texto de amor que não abra espaço pra espelhar nossa história. Você é minha bailarina que dança e convence com seus passos, sem medo, rodopiando em minha biografia. Espalhando papeis, trocando a ordem natural de minhas memórias, desarrumando tudo e criando um lugar próprio só seu, dentro desse filme. Faço cinema com você e representamos algo que nem existe. Seguimos repetindo de propósito todas as nossas cenas de amor. É tudo verdade pra gente. É tudo mais grave, mais simples e minha voz vai ser sempre aquela que te conforta. Te apoio e faço isso com naturalidade orgânica. Minhas entranhas estão vermelhas de raiva. Meu corpo marcado, quer ser levado de volta por todas as outras mulheres que jamais entenderão que fui feito assim, já nasci escrevendo o final feliz que quero viver. Escolhi você e isso é um ato de amor. Escolhi você e somos nós que vivemos juntos. Nossos erros são minha culpa. Nossa beleza é fruto dessa falta de importância dantesca, sobre saber até onde vamos. Eu acredito no eterno. Amanhã é outro dia e hoje, isso pra mim já é tempo pra caralho.

domingo, 26 de julho de 2009

Duas vezes Fitz

E dentro de minhas mais inocentes previsões, nunca imaginaria triunfar de forma tão melancólica. Já afastado de meus pensamentos mais perigosos, pude refletir o quanto temi que tudo acabasse resumindo-se a isso. Agora estava ali só, banhado em confiança, mas sofrendo inclusive por saber que este sentimento a cada minuto dissipar-se-ia mais um pouco. Bastava uma volta ao quarteirão ou uma ida ao pub da esquina pra aquela certeza me invadir cada vez mais. 1- Em Nova York não existiam mais novayorquinos 2- Aquela adorável menina mimada, jamais seria minha novamente.
Após o terceiro gole de uma cerveja densa, quase doce, comecei a achar as mesmas respostas fáceis que me trouxeram até aqui. Ficava imaginando se realmente seria feliz casando-me com Elisa. Aquela filha de um Juiz da suprema corte tinha traços demasiadamente parecidos com os de Zelda, grande paixão de Fitzgerald. Seria assustador se as coincidências não parassem por aí e pudesse concluir que em alguns anos, seu destino também fosse morrer queimada em um sanatório em chamas.
O irlandês que sempre me servia objetivamente, tinha cabelos cor de fogo e sardas que de forma quase simétrica, cobriam cada centímetro de seu rosto enrugado. Devia ter seus quarenta anos, mas uma viagem de barco até a América e algumas daquelas histórias que ouvia de soslaio enquanto gargalhava com meia dúzia de protestantes do outro lado do balcão, certamente ofereciam méritos a sua expressão envelhecida.
O frio do outono seguia agradável e convidativo a um passeio sem destino pelas ruas de Chelsea. Já cogitava sair dali pra sempre e a cada esquina que dobrava, marchava em uma lúgubre e silenciosa despedida. Ao passar por um café na 8th observei um casal sentado à varanda. O clima aquela altura de novembro ainda possibilitava programas como este. A garota chorava enquanto um rapaz grande e engomado, parecia mais preocupado em não chamar a atenção de outras mesas do que entender os desprazeres de sua triste companheira. Subitamente num gesto seco e rápido, puxou algumas notas, acenou para o rapaz que os servira e deixou-as em cima da mesa. Foi embora sem olhar pra trás. A garota continuou chorando e quando se levantou um pouco mais para limpar o restante de suas lágrimas insistentes, pude perceber um delicado rosto avermelhado. Sentia-me como ela. No fundo sabia que ela estava bem. Sentia-me provido, mas sozinho. Não tinha tempo para sofrer por orgulhos menores como o de ser deixado só num café, mas a falta de previsão no futuro acelerava meu coração. Segui até sua mesa levando um mínimo de coragem e toda minha forma desafortunada de enxergar o mundo.
Horas depois, preparando-me para ir embora de seu apartamento, observei na mesa da cozinha um livro. Ao levá-lo até minhas mãos percebi que a senhorita estava lendo a grande voz da geração dos anos 20. Minha espinha gelou-se. Era a segunda coincidência com Fitzgerald em meu dia. Voltei ao quarto e perguntei sobre sua opinião em relação a Amory. Gostei de sua quase confissão em achá-lo adorável. No fundo todos aqueles seus erros eram mais um espelho do que um convite a uma geração. Saí dali com o cheiro de seu sexo impregnado em meu corpo. Levava os dedos até o nariz e inspirava minha pele como um lobo fareja sua presa. Era uma espécie de batismo. Passo a passo chegava a novas conclusões, escrevia novos livros, novos adendos. Ao perceber toda fragilidade daquela mulher que, deixada em má situação por seu homem, entregou-se e ofereceu seu corpo, suas idéias e seus segredos a um passante, acabei fulminado por um novo entendimento sobre a beleza das mulheres. Entendi porque todas as minhas mais brilhantes formulações intelectuais cairiam sempre por terra defronte a sua falta de lógica e abundância em loucura e sentimentalismo. Para ser livre, bastava-se nascer mulher. Todas as suas angústias celebrariam minha inferioridade como homem. Segui almejando suas carnes. Elas, meu espírito.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Press fail

Meus lábios levemente roxos e você aí com esses olhos gigantescos olhando-me de soslaio. Fingindo uma naturalidade que de cara soube que jamais conseguiria ter, enche-me de culpa por estar na terceira taça e você, na segunda garrafinha d`àgua. Dentro dessa sua lucidez fascinante uma suposta postura superior soaria clichê. Ainda bem que passa longe disso. Sente-se segura, sabe o que quer, só esqueceu de avisar pra todas as dúvidas que pipocam dentro da sua cabeça. Por fora é seu novo corte que sei, nem imagino que tenha custado tão caro, parece ter sido feito sob medida pra nossa cena. Se metade das meninas hypadas do Rio estão iguais, a gente abafa. Óbvio que não importa. Mas não poso de dono da situação mesmo sabendo que é exatamente isso que você quer. Dentro da sua delicadeza meio desleixada, desse seu otimismo desconfiado, você quer proteção. Penso nisso muito menos como uma Mãe Dinah, ávido por um acerto, muito mais como uma suposição que me agrada. Se minha maturidade assombra-me aos 30, topo essa vontade de virar seu homem de verdade. Cansei de ouvir rádio há tempos. De tudo que já tô farto, talvez saber que a sinceridade ainda seja o que mais escandaliza as pessoas é o que mais fica confortável nas minhas idéias. Essa vontade de descobrir seu corpo de outra forma saliva meus pensamentos. Será que você vai me decepcionar daqui há pouco, quando cismar que seu sexo deveria coreografar meu orgasmo? Não. Do jeito que anulou a capacidade crítica de meus olhos, sua vingança é saber que me apaixonaria até por uma foda mal dada. Tudo um tanto chato, um tanto típico. Como já não ter a menor condição de ostentar uma postura melosa e romântica. Sei que esse ponto fraco me fragiliza e chega a ironizar meu papinho badass de adulto. Mas se o que sei é que aceito a condição de te perder só pela chance de fazer você sorrir como ninguém conseguiu, já tracei meu caminho. Agora esse barulho de taça no chão ganha status de nosso start. Começamos a nos perder aqui, desde o início. A gente sabe disso mas ri dessa farsa. Ninguém aqui tá interessado agora, em saber como vai ser o fim.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Por toda essa nossa falta de heróis

Depois de alguns dias sem comer, sabia que não poderia atacar aquele prato como o pescoço de uma adúltera. Teria que conquistá-lo aos poucos, quase enganando seu estômago para que pudesse engolir sem grandes consequências, alguns nacos do que havia espalhado pela mesa. Seus dentes estavam moles, suas gengivas sangravam e seus olhos ardiam. Sua pele seca, sem tatuagens, opaca e sem cor, conversava com cada olhar que mirasse ali. Dava respostas confirmando "sim, sou um pária" ou "sim, estou morto". Este último, quando resolvia estar de bom humor. Um maço de papel amassado no bolso trazia uns insights, algumas tentativas ridículas de poesia, o telefone de dois corajosos exemplares do sexo feminino. O rádio alertava em seu bom humor popularesco, convocando atenção a mais um assunto sensacionalista. Depois acalmava em músicas. Pedaços de frios ao chão eram observados a distância pelas baratas e suas antenas, que diziam umas às outras atrás das paredes "Que delícia. Uma verdadeira delícia". Era tudo pelúcia em uma mente confusa e infantil que acabara de acordar. Era tudo sonho em sua boca morta que mastigava, lasciva, redimindo-se do passado. Hoje era dia de dar um pouco de sentido as coisas. Um pouco de ordem. Era dia de atitudes afirmativas. Dignas de um homem. Dia de ir a locadora e alugar um filme de guerra sem perguntar a opinião da mulher, nem escovar os dentes. Preferiu ir voando. Foda-se a discrição. Pousou na esquina e ficou olhando a vitrine com um bando de filmes velhos novos, com o rosto colado na calçada. Seus superpoderes foram logo percebidos por uma criança, que perguntava para uma babá perplexa sobre o significado daquele líquido vermelho saindo de sua cabeça amassada.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Sobre como distinguir o choro do riso

Papai saiu cedo. Precisava fazer um dinheiro. Precisava ser pago. Papai era muito dócil com a gente. Tocava violão, contava histórias. Quem o olha mal acredita que aquelas mesmas mãos viveram sujas de sangue por aí. Quando escutava suas conversas por trás da porta a única coisa que nunca mudava era a razão: sempre com ele. Jamais entendi o que fazia de verdade. Mamãe tinha muito orgulho dele, vivia emocionada. Sempre com essa maneira especial de chorar ou rir do mesmo santo jeito. De uns tempos pra cá nem tentava mais distinguir. Papai saiu cedo. Mas hoje ele não volta. Meteram uma bola oito em sua boca. Achei desnecessário isso. Mamãe ainda nem me falou o que aconteceu, mas já me disse pra não contar ao Chico, meu irmão menor. Quebraram todos seus dentes e queimaram o corpo. Ouvi dizer que aquele homem do tamanho de um armário coube facilmente na mala duma Fiat, na rua do Tio Bento. Minha mãe agora tá chorando. Tenho certeza. Vou lá pra cima com o Chico. Para o caso de alguém entrar numa de dizer que papai foi fazer uma longa viagem, ainda não decidi se vou acreditar ou não.

sábado, 6 de junho de 2009

A cozinha

Cozinha. Pensava. Sem dúvida responderia cozinha, se alguma daquelas crianças vestidas de terra, desafiando mães, pais e leis da física naquelas ladeiras, me indagasse sobre o lugar preferido na casa branca.
O cheiro colorido da hortelã na sacola de palha misturava-se ao do manjericão roxo e fresco, ambos inquietos num inquestionável segundo plano. De uma suavidade tropical, impávido, era o doce, fresco e provocativo sabor das mangas que enrubescia meus sentidos sem nem ao menos precisar de mordidas, acordando o paladar pra tomar conta de minhas narinas. A madeira molhada da porta chiava avisando uma chegada. Deflagrava camadas e mais camadas aromáticas, que davam ao mesmo tempo boas vindas e um enfático anúncio de meu retorno ao lar.
Envolta em lençóis ela caminhava com leveza, exalando uma mistura de pele, pólen, suor, calor e graça. Sua boca agora era dona de meu pescoço, seus seios eram de meu peito e seu corpo tinha o peso de uma pluma, passeando em voltas pelo ar, suplicando baixinho em meus ouvidos sem que som algum pudesse ser ouvido “coloca-me ao chão”. Sua língua com gosto de ontem espalhava-se em minha língua, reconhecendo cada novidade, ávida por todo meu sabor.

Depois eram toalha, cesta, temperos e frutas pelo chão. Depois é nosso corpo sem plural, uma coisa só. É respiração quente em tonalidades diferentes de calor, aromas, cores. É tudo ficando pra depois. Qualquer tentativa de almoço virando jantar. Qualquer horário marcado virando espera. Qualquer ligação já nascendo perdida. E no momento onde só uma coreografia completamente não ensaiada faz sentido. Onde uma improvisação de jazz é recebida com uma sensatez absoluta. É aí que te encho de lava. Encho-te de mim.
Não podes mais fugir porque sou duro, quente e estamos presos a esse chão até a morte.
Agora pertencemos a todos os aromas desse lugar. Folhas grudam, verdes, em sua pele vermelha. E sabes que está completa, com suas coxas sujas de leite, enquanto olho-te resignado. Espera-se de mim nossa ceia. Mas ela já vem. Ela já vem.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O filho da puta

Era um daqueles fins de tarde de sexta-feira em que o sol já descia prometendo vingança. Movia-se impassível, pincelando contornos alaranjados por toda a cidade, imaginando o que as cores da noite fariam com seu trabalho. Debaixo disso, um senhor bem vestido seguia deixando pra trás velhos degraus num corredor estreito, protegido dos raios de luz que indicavam a saída e as formas de uma criança atrapalhando a passagem lá embaixo. Ganhou a calçada olhando fixo nos olhos do menino prostrado à porta, que agora tinha cheiro, feições e ossos, muitos ossos à mostra. “Nessa vida o nome que damos a algumas coisas às vezes não combina com o que os nossos olhos veem". Não sei se o tom profético e apressado ajudou, mas nunca mais o menino esqueceria disso.
Tal recinto era na verdade um grande sobrado de cuidadosa arquitetura francesa. Ficava ali pelas redondezas do Beco do Rato, geograficamente falando: uma coisa assim meio Lapa, meio Glória. Do alto de seus oito anos de idade, o pedaço de gente e testemunha das palavras do enrugado cliente que deixara o local há pouco, jamais tivera notícias de quem haviam sido seus pais. Até mesmo quando esse assunto teimava em rodear a cabeça de sua tia como moscas em volta de um bolo de laranja fresco, ela cismava em contar uma história diferente a cada dia. E que histórias. Eram prosas tão fascinantes que, em certa tarde chuvosa de março, o moleque chegou a se pegar, pasmem, agradecendo a Deus por ser um rebento sem família. Só e simplesmente pelo prazer de se perder naquela imaginação de Tia Chica. Uma morena dona de colos fartos e meia-dúzia de corações graúdos, que cuidava daquele projeto de homem como se o franzino tivesse saído da própria repartição pública existente embaixo de suas saias. Todos naquela rua encarpetada em pedras sabiam que arrumar problema com o menino de Chica era garantir uma encrenca das boas.
A casa onde tudo acontecia era frequentada por políticos, funcionários públicos, advogados e, no início do mês, por ordas de assalariados de menor status, ávidos por gastar seu dinheiro suado, suando um pouquinho mais. Ali o moleque aprendia o significado das palavras. Sabia que Ivo via a uva na sala de aula, mas quando seus pés encardidos subiam as escadas barulhentas do sobrado, aprendia degrau por degrau todo um dicionário recheado de signos, frases e comportamentos que professorinha nenhuma conseguiria explicar. Não raro chegava ao ponto de entrar inclusive no campo das fundamentações filosóficas. Sabia o que era uma puta, mas sabia muito bem diferenciar o adjetivo que na rua tinha função vexatória, para o significado real daquelas mulheres de seu convívio.
Mulheres que cozinhavam, pediam por ele no terreiro, lavavam sua roupa e o ajudavam até com as tarefas mais difíceis, como seu dever de casa. Sabia que sua tia era uma delas, mas sabia também que sem ela seu horizonte seria bem mais limitado que o horário de estada em cada um daqueles quartos. Minutos cronometrados que terminavam com socos nas portas, quando um crioulo chamado Felisberto, de uns 5 metros de altura, segundo seus cálculos, avisava gentilmente aos clientes sobre o fim da visita. E no lugar onde puta podia significar mãe, e zona, uma família, ser xingado na rua transformava-se quase em motivo de orgulho, mesmo quando ninguém ousava fazê-lo com ele. Mas como até o notório Felisberto estava cansado de saber, "se tem uma coisa que o tempo nunca teve, é a preguiça".
Assim os anos se passaram, o local ganhou um outro tipo de família, essa de verdade, daquelas mais tradicionais, e perdeu um bocado do charme de outros tempos. O menino crescido agora virara um sambista pela sobra de talento e pela falta de escola. Falta de escola-escola mesmo, aquela de verdade, com boletim, chamada e essas outras coisas dispensáveis. Porque a vida sim, essa nunca negara a ele um pingo de conhecimento e explicação pra tudo quanto é coisa.
Entre um samba e os socos que as portas continuavam tomando da vida, mostrando que as coisas terminam porque assim elas foram feitas pra ser, recebeu um telefonema. E do outro lado da linha aquela conversa estranha que, ele sabia direitinho, quando não dizia nada, dizia muita coisa, colocara-o no táxi que agora deixava o leito do hospital onde sua tia repousava. Fazia tempos ela estava de mal com o tempo, que, sem ninguém para puxar sua orelha, maltratava-a.
Agora o moleque crescido estava ali em frente ao sobrado, taxímetro ligado, olhos marejados. Achando graça ao saber pela boca de quem acabara de morrer que na versão final das histórias de Tia Chica sobre seus pais, a partir daquela manhã tinha ele um motivo real pra se orgulhar eternamente de sua mãe. Era um belo dum filho da puta.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Sobre fugacidade e café frio

A gente volta a se falar e o tempo pára. Somos tão inocentes. Tanta coisa aconteceu e a gente sempre pensa que vai seguir imune a tudo isso. E na minha cabeça seu sexo usado por outro cara, me adoece. Na sua meu corpo não incomoda tanto quanto meus sentimentos, dados numa bandeja a outra mulher, meu encanto, meus olhares. Isso desespera-te. Mas agora estamos nos olhando e o mundo entra nos eixos. As coisas parecem caminhar para um sentido que cheira a café da manhã na casa dos pais, calçada, padaria e jornal. Meu nariz entrega-se mergulhando de cabeça na infância, na segurança, no aroma de plástico do brinquedo novo que queria tanto ganhar no natal. Apesar da ida tão longe ao passado, sinto-me tão homem e tenho você como tão minha. Percebo que flutua em meus braços, em minha proteção. Chegam mais lembranças de nós dois. Coisas que ninguém vai tirar da gente. Que ninguém conseguiria. E cheiramos e bebemos nossa derrota, vencendo esse medo de ficarmos juntos. E nos tornamos tão completos. A certa altura já achamos que tudo voltou ao seu devido lugar e nossos corpos não deveriam nunca ter sido tocados por outros. Nosso peito se abre e trocamos confidências, tatuagens, trocamos novas juras, trocamos lágrimas, ficamos duros e umedecidos. Nossos olhares insultam a razão e a prática vira romance, a poesia assume promessas que ninguém pode cumprir. E na manhã seguinte a cama, o quadro, o celular, o horário atrasado pra trabalhar. Na manhã seguinte é a vida, são os compromissos e a realidade clamando atenção. E a gente ainda se olha mas sabe que já não se vê. Sabemos que não podemos mais parar o tempo. E o tempo anda e nosso peito já está tão frio como aquele café fraco, que se dizia quente.

domingo, 17 de maio de 2009

Sinédoque

Seguia seus dias numa rotina que agora, já parecia até nem ser tão mais interessante assim. O mesmo emprego mediano sem graça, os mesmos gostos alternativos avivados por experiências da infância (ou apenas pela internet), os mesmos sonhos com um quê de sedução e loucura. Entre ser clichê e ter virado lugar comum, bastava entender que hoje, ao perceber um adolescente com uma camisa do Nirvana, cantando suas letras e tendo crises existenciais fajutas, lhe confortaria saber que algum coroa já sentira o mesmo no início dos anos 70 ao afirmar que “o rock acabou”.
Agora aquela câmera ligada 24 horas ao seu lado já não incomodava mais. Virara paisagem. Nem sequer despertava nele uma coceirinha de vontade em parecer melhor do que era. Mas numa quarta-feira de sol cínico, pela manhã, resolveu olhar pras lentes como há muito não fazia. E após determinar mais uma vez em seus pensamentos o quão tediosos poderiam estar sendo seus planos bobos de alcançar sua meia dúzia de sonhos: chorou. Olhou pra câmera sem querer representar, nem nada. Apenas olhou. Sabia que aquilo não era um Big Brother. Sabia que aquilo não era um despertar de uma esquizofrenia ou coisa do tipo. Aprendera a lidar com o objeto cinematográfico como um fato corriqueiro da vida. Só então decidiu assim como quem não dá muita importância pras conseqüências, chorar copiosamente olhando pras lentes. Dizem que as marcas de suas lágrimas ficaram por um bom tempo nas paredes da cozinha.
Logo após o acontecido, pediu licença a quem quer que fosse o responsável por dirigir aquela empreitada e conseguiu enfim, uma cópia digital pirata do conteúdo dos rolos. Assistiu tudo por uma semana praticamente sem parar, no sítio de uma amiga, entusiasta produtora de cinema aposentada. Ali percebeu que sempre se imaginara muito distante de sua realidade.
Não mais achou seu emprego medíocre. Seus gostos agora adquiriam um ar um tanto quanto cool e seus sonhos, com aquele tratamento e um filtro laranja de sol, pareciam vivos, pareciam desafiadores, soavam fascinantes. Ao perder este parâmetro com a realidade, virou um personagem. Erro crasso. Foi aí que matou cada um de seus sonhos, um a um, com coronhadas das mais estapafúrdias conjecturas possíveis: virou um chato. Seu primeiro passo rumo ao fundo do posso foi criar um blog. Logo em seguida já estava se levando a sério demais e o grandioso filme de sua vida, virou alguma coisa fajuta inspirada em Kaufman, que até hoje continua pegando poeira nas prateleiras da Cavídeo.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Lilac Wine

Vai passar cara. Vai passar. Você vai encontrar outra tão boa igual a ela. Tão cheia de defeitos, cheia de fraquezas. Tão cheia de espaços pra você entrar e aconselhar, direcionar, tornar-se rei. Vai passar e você vai entender que esse sentimento que deixa qualquer abismo tão sedutor, qualquer janela aberta ou tarja preta tão convidativos, vai mudar. Aquele riso que sublinhava seu humor e aquelas lágrimas que exclamavam suas dores agora passaram. São passado. Não faça de conta que isso volta, pois a linha se partiu. Sua fronteira agora é o horizonte. Suas gafes, seus erros, seus atrasos e suas falhas também ficaram pra trás. Isso não é o máximo? Agora você é quase uma folha em branco. Não tem mais personalidade, bandas preferidas ou prato que ela sabe de cor. Não tem mais as roupas que ela acha sexy, não tem mais aquela calcinha batida que você adora. Agora não tem mais o boquete despertador e a viradinha com aquele olhar de jabuticaba. Mas tudo vai ficar bem, insisto. Digo que sua vida é nova e a novidade dói. Digo que seus amigos estão com saudades, mas nem lembram mais quem é você. Que seus hobbies, que se transformaram rapidamente nas vontades dela, agora se perderam e você terá de encontrar novas coisas pra se dedicar. Que seu piano continua lá. Que as marcas de vinho no canto da parede, continuam lá. São manchas. São borrões. São essa Nina Simone perfeita em seus ouvidos fazendo sua alma sentir-se tão carente de talento. São seus melhores dias jogados ao vento. São momentos de glória que não tem nem a humanidade de assumir que foram tempo jogado no lixo. Porque não foram. Antes tivessem sido perda de tempo. Antes tivessem sido só carne. Mas foram espírito. Foram porra. Foram suor e sangue. Foram uma festa para as formigas andarem por cima, com todo esse doce. Foram seda. Foram sutis. Foram serragem e grosseria. Foram grito, desespero e culpa. Tudo muito. Tudo tão dominador, tudo tão fácil. Mas vai passar. Está passando. E enquanto falas sozinho, ela chora. Se lembra de vocês dois, porque pra ela você já não é um presente. És uma lembrança. Pertence ao que passou. Por hora ela chora o passado. Você só não entende aonde deseja ir. Só tem a certeza mais dura que já pode ter. Apenas sabe que vai passar.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Grito seco

Enquanto comia aquele cu a seco, sentia vontade de quebrar seu pescoço com um soco ou uma marretada. Sua disposição em ser meu capacho, as vezes fazia-me crer estar apaixonado por ela, as vezes causava-me asco. Mas comer aquele cu a seco, no sol de meio dia, sempre dava-me vontade de quebrar seu pescoço. Os cheiros da rua, nosso suor, o cinzeiro sujo, o prato com os restos de torrada, o cheiro de shampoo em seu cabelo e aquele maldito cheiro de buceta, acordavam meu nariz. O resto do dia não havia olfato, tava cagando pra fragrancias e aromas. Tava cagando pra notas e safras e uvas e vinhos. Me importava aquela sua buceta. Me encantava era aquele seu cu, aquele cheiro de suor naquele furo, cuidadosamente cheio de preguinhas. Aqueles cabelinhos finos e loirinhos, quase impossíveis de se ver a olhos nus, mas apoteóticos ao reflexo do sol do meio dia, apontados como setas em torno de suas covinhas nas costas. Aquela mistura do meu cheiro, com o cheiro de seu furo, com o cheiro imaginativo da merda que passara ali. Que me bastasse aquele cheiro de cu. Que me bastasse comer aquele cu a seco todos os dias em meu horário de almoço. Seria perfeito se num dia como outro qualquer não tivesse cedido aos meus desejos. Agora era o sangue no colchão, minha porra naquela bunda morta e a polícia sendo chamada por causa de um grito seco.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Johnny Rotten crisis

Agora era meu escarro, me olhando, estatelado ao chão. De tão cansadas, minhas costas mereciam aquelas faixas indicando uma interdição pela defesa civil ou algo do tipo. Enquanto presenciava minha coluna ruir, sentia inveja daquele subproduto do meu pulmão. Aquela coisa verde e quente deitada na sarjeta, protegida por minha sombra projetada pela luz brega de uma dispensadora de cigarros pra lá de flúor. Inveja do meu cuspe. Quando um homem se acha pior que um catarro, nada pode elevar sua baixa auto-estima. Um desfigurado cambaleante interrompe então minha divagação sorumbática e o pisa. Esfrega sua sola velha de lona de caminhão num movimento rápido, passando por cima de meu mais recente amigo e espalha metade daquela merda pelo chão do bar. Percebo como nunca tive sorte em minhas amizades, mais uma vez.
Puxo algumas notas do bolso. Minhas calças são velhas, meu dinheiro é velho, minha atitude ali não é nem um pouco nova. Agora só quero a paz que eu nunca encontrei, mas ainda insisto em tentar buscar sempre que resolvo que aquela é a hora de ir pra casa. Me livro do balcão e da cara impiedosa do sujeito que me serve. Desconfio que ele tenha tuberculose e sinto-me mais vulnerável do que já sou. Foda-se. Ali já não sou um devedor, já não sou um bêbado entre tantos. Minha garganta é menos uma lixeira na noite carioca.
Mal dobro a esquina e a maldita síndrome alerta minhas mãos, que tateiam meu corpo e bolsos, procurando algo que minha mente insiste em copiosamente blefar dizendo-me que esqueci só pra me fuder a cabeça. Segundos depois, avanço três passos, mas resolvo olhar pra trás. Minha visão enxerga então algo inaceitável. Também não quero acreditar nisso, mas vejo um escarro pútrido do tamanho de um homem, saindo pela porta dos fundos bar. Viro o rosto, recomponho os passos e sigo em frente, pra bem longe dali. Forço meu joelho frágil a aumentar sua capacidade articulatória: resolvo correr. Meu desespero agora se fantasia em música e uma sinfonia clássica flerta com minhas orelhas ligeiramente peludas enquanto tento fugir do meu próprio cuspe.
Consigo chegar em casa a tempo da medicina não me considerar um cadeirante. Desatarracho meu joelho esquerdo e sento no colchão de quinta, bem ao lado de meu criado mudo. Aquela visão no espelho da parede do armário parece mais normal quando estou sozinho. Antes de pegar no sono, o barulho alto de um escarro gigante caindo na calçada num ritmo matemático de gotejamento me assombra. Na manhã seguinte avistaria um bilhete de minha vizinha da frente empurrado por debaixo da porta. No papel amarelo, um alerta, onde ela seguia dizendo ter visto um catarro durante toda a madrugada, saltando incansavelmente tentando alcançar minha janela.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Velhas vontades

Fiquei com vontade de escrever o mais belo texto de amor. Queria observar você lendo minhas cartas, queria ver um sorriso honesto sem dor. Imagino sua rua, mesmo sem nunca ter ido lá. Vejo flores na varanda. Nos vejo nus. Imagino seu corpo, seu dorso. Te vejo querendo sentir de perto essas distorções. Saio pela calçada, compro pão. Esqueço o que já nem preciso, te dou a mão. Leio coisas tão bonitas, de uma leveza tão argentina, tão distante. Choro. Sigo por entre pensamentos tão cinzas. Me sinto melhor.
Fiquei com vontade de escrever um belo texto de amor.
Não sei se essa dor só me vem quando passeio por seus olhos e não chego a lugar algum. Porque em outros olhos me perco, nem vejo nada. Vejo espadas, vejo cruz. Em nossa cama vejo pus. Apenas um sol que se levanta como um astro e põe em nossa mesa o pão, o jornal, o antepasto. Em vosso teatro brilha nossa falta de tato, que me agoniza, me quebra. Imagino seu corpo, seu colo. Quero colo. Quero minha mãe. Mas nem sei quem ela é. Quero me ver por perto, quero tantas coisas.
Fiquei com vontade de escrever.
Nem sei de mim. Nem sei o que. Escutando uma linda canção começo a achar tudo tão fácil. Em cada nota vejo-te ali: oposta, esguia. Assim amenizamos nós. E essa minha mão que desarma em textos que viram arma, não atira. E te amo por nós dois. Talvez até por quem mais for. Vibro em meu silêncio repleto de certezas. Em todas as minhas velhas vontades. Em todas as minhas impurezas. Só pra te dizer que estou aqui.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Poeira

O tempo passa e se esquece. Esquece o que nos fez rir. Esquece o que nos encheu de cor. Esquece. Simplesmente as memórias se vão. Viramos novamente crianças com uma inocência que não mais brota alegria, apenas lança mágoas. Esquece a gratidão. Esquece o amor. Para onde será que vão estas lembranças? Será que elas reúnem-se em um lugar comum? Será que brindam nosso esquecimento e se aquecem contando nossos melhores dias, um a um, em frente a uma lareira que arde sem culpa? Será que o melhor de nós está com o destino traçado e nada o dará a possibilidade e a grandiosidade do eterno? Em risadas, esse pesado pensamento desenvolve-se e sucumbe ao estardalhaço dos errantes caminhos chamados fáceis demais. Porque é fácil sofrer. É fácil pensar que o esquecimento se inunda de dor, quando uma fagulha de regozijo paira em cada nota mal tocada que não se escuta mais, porque não se recorda nem quem a deva tocar. E a proteção da falta de memória agora vira luxo. E o esquecimento vira ouro e torna-se pérola. Vira objeto raro que não requer posto de contemplação porque também, ele, será esquecido. O raso riacho que corta esses dois mundos é lúgubre, mas solucionador. Se o que apenas é não pede explicação, qualquer lembrança viva traz contentamento e toda indiferença ao que já se passou afunda no silêncio de quem manteve algum tipo de esperança. Tola esperança. Tudo o que transforma tristeza em alegria há de ser lembrado. E esculpido em memórias turvas, ri-se o riso bobo de quem pensa que lembras, mas apenas descreve em agonia, a mais pura vontade de voltar a ser feliz.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sonho

Aquele gosto de almoço velho na boca precisava de ar. Já não acreditava mais no destino, preferia arruinar qualquer suspiro de histórinha que entrasse numa de começar com início, meio e fim. Chatice de cu é rola. Agora era ele e aquele jornal cheio de idéias ruins para o final de semana. Agora era desistência pura. Agora era seu rosto se enchendo de alegria, olhando-se no espelho ao chegar do trabalho, cheio de cravos, pele oleosa e dentes amarelos. Não costumava se dar bem com as vitórias mesmo, queria é comemorar as derrotas. E acompanhava com desdém aquele lenga lenga de olhar sua vida tornando-se melhor, sempre que uma porrada disfarçada de desencanto, acertava-lhe um tabefe no meio da cara. Com o romantismo novamente apurado, poderia virar o sonho de qualquer mulher ou justamente aquele vacilo que todas têm a gana de partilhar em sua biografia. Novas músicas, novos livros, novas histórias novas.
E aquele gosto de almoço velho precisando de ar. Não poderia ser diferente, ao acordar aquela hora com restos de comida pela casa inteira (incluindo sua boca). Arrumou sua camisa social preferida e foi trabalhar. Estava morto. Era um morto cheio de vida, diga-se de passagem, como aquele sonho reincidente, que vivia soltando uma âncora em cima de sua realidade medíocre.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Vírgula

Acordei sem medos, todos eles haviam ancorado num belo fim. Agora era hora de buscar novas encrencas. Solto, podia andar por onde quiser. E era assim que tudo me dava saudade. Dava saudade dos lugares onde formei opiniões e onde fechei as portas que sabia não valerem a pena abrir. Deve existir um certo ponto em nossa juventude onde as escolhas são muito mais importantes do que sua biografia faz você acreditar que poderiam ter sido. Quando se está numa loja de discos e vamos passando os LP`s com a mão, tudo o que não chama sua atenção é lixo. E se você deixa passar um Pixies, já sabe tudo o que você não é. E se toca James numa festa e você sente uma vontade louca de mostrar de uma vez por todas pra ela que você é o cara, já sabe que seu destino abandonou uma porrada de outros caminhos.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

1 cigarro pra 3

Não deu nem tempo pra pensar, elas se beijaram na minha frente. Enquanto aquela cena transcorria, seguia num misto de tentativa de pensar em algo sexy ou criativo pra dizer e de apenas observar, curtindo aquela tentativa de dizer sei lá o quê. Cinco minutos antes era só uma conversa, eram só duas pessoas e eu. Era só mais um motivo pra testar uma abordagem nova, uma conversa com alguém com um humor mais refinado. Não era nada. Não havia pressão para um grand finale. Nem vontade de subverter, porra nenhuma.
Saí de fininho e acendi um cigarro. Meus olhos não conseguiam acompanhar meus pés e quanto mais me afastava dali, mais eles viravam platéia cativa daquilo. O emaranhado de tatuagens virou um borrão de longe. As cores de seus batons misturados deram luz a uma nova cor e suas faces eram de um vermelho notável. E não era nada parecido com timidez.
Já na rua, meu celular tocou. Joguei calmamente minha fábrica de fumaça fora e atendi. Aquela voz meio infantil, meio rouca, esbanjava vigor em uma contradição perfeita.
"A intenção não era perdermos você."
Desliguei o telefone olhando sem motivos pra minha única calça jeans. Eu sabia, agora já não era uma escolha voltar atrás. Ela acabava de me ganhar pra sempre. Ou até onde isso significasse ir naquele verão acachapante.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

302

quando falta luz vejo mais
vejo traços que quase me desimportam
em outros momentos
enxergo seu cheiro melhor
agora

sem brilho só a noite existe
em nós nosso choro insiste
é pós carne nosso sono forte
depois do amor

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Nossa sorte

Hoje quero me libertar de todo mal que pude lhe causar. Quero uma bebida quente, voltar praquilo tudo que há muito não se fazia presente, minha cama desarrumada e às novas mesmas reclamações de sempre.
Hoje já posso conseguir não te magoar, se minhas atitudes, desvencilhadas das suas, andam em sentido próprio. Consigo até encontrar algum tipo de ternura perdida em mim, distante da artificialidade ingênua que um pensar por dois propõe.
Hoje já não sinto a mesma raiva de seus ex-namorados ou de cada um desses idiotas de sorte que rondaram seus lábios, apesar de ainda me achar melhor que todos eles juntos. Entre o que perco e o que fica, me faz bem cada uma da maioria esmagadora de coisas que me orgulham em você.
Hoje preciso respirar cada minuto que tiver da minha individualidade de volta, preciso comemorar minha forma de enxergar o mundo, graciosamente diferente da sua. Posso fazer o que quiser do meu dia e dar uma trégua pra todos os jogos de guerra que o amor oferece em um tolo exagero.
Hoje quero que você esteja bem e onde quer que isso seja, só esteja pensando em mim se isso for te fazer algum bem. Minha distância é todo esse amor imenso que sinto por você.
Amanhã, quando
tudo isso ainda fizer sentido, vou correr contra esse gosto de vilão que permaneceu em minha boca. Vou te beijar ainda mais forte. E posto que minha certeza em nós é clara, não vou sofrer nem ter medo da nossa sorte.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Caixa postal

Peixoto já não usava relógio há tempos, mas naquele mês de dezembro resolvera abandonar o celular também. Aquele aparelhinho invasivo era sua conexão com o mundo desde a perda do tal relógio de pulso. Sempre tivera certo asco pela capacidade degenerativa que a telefonia móvel impunha as relações. Tudo ganhara uma velocidade errada com o advento. Se a capacidade comercial valorizou o aparelho, fazendo os negócios fluirem na velocidade de um toque, as relações pessoais se empobreceram. Rapidez realmente não valia pra tudo.
Já próximo ao final da primeira semana do experimento, mal desceu pra comprar o pão do dia e um descontente já sinalizava seu rompimento com o mundo, "Cadê você cara? Tá sem celular?". Era como se o que mais importasse fosse seu nokia e não sua presença física ali. Foi ganhando esporros variados durante o dia e eles continuariam por todo mês. Mesmo assim vibrava com o sumiço da reacionária indagação "Onde é que você tá?", que surgia geralmente após cada nova vibrada do celular. Qualquer pessoa, não importa o nível de intimidade, parecia ganhar cancha pra pronunciar a frase, tão logo se atendesse o aparelho. Se não fosse no início da conversa, era garantido ouvi-la ao se despedir de qualquer papo, por mais simples que fosse.
Seu namoro ainda conseguiu resistir 17 dias. Dos amigos, apenas aqueles verdadeiros, para os quais o celular não servia pra quase nada, exceto o necessário, sobraram. Juntou 3 deles num botequim e foi duramente sentenciado, "Peixoto, ou você liga seu aparelho ou o negócio vai ficar feio pra você".
Chegou em casa meio chocado, sentia que aquela não era sua época. Até seus amigos de fé, do tempo em que a internet nem existia, estavam contra ele. Com os olhos marejados e um sentimento de derrota no peito, resolveu plugar seu algoz na tomada. Eram quase 300 ligações perdidas, 100 mensagens de texto pra ler e mais de 40 mensagens de voz pedindo atenção na telinha iluminada. Ouvindo os recados naquela madrugada, entre as dezenas de vozes com argumentos perecíveis e bizarros, descobriu que perdera sua mulher por causa de uma bateria descarregada e sete oportunidades de ouvir sua mãe reclamando dos mesmos assuntos de sempre.