segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Todos os dias a mesma coisa

 A gente morre um pouco todos os dias. E morre mais toda vez que acaba agindo assim, limpando o sangue antes dele escorrer. Eu morro toda vez que te vejo passar. Esses dias sim, mais que todos - foda-se: morro e quero morrer. Mas nesses dias limpo minhas botas e afio minha faca. Dá pra escutar meus demônios de longe e eles sorrindo. Fica fácil perceber que estou vivo. É quando erro. É quando grito. Quando fico louco. E dentro desse câncer que me sinto vivo. Rasgo minha camisa, bebo um pouco de vinho. Nunca entendi muito bem essa historia de ser feliz. A minha felicidade sempre foi breve. Meio ridicula. Como no dia que entrei num carro e chorei feito criança. Um sol do tamanho da lua no céu e aquela estrada reta e infinita pro aeroporto. Um dia tão lindo e eu ali, chorando. Enquanto dirigia, ela chorava também. E a gente chorava assim baixinho, juntos. Sem falar nada. Era uma dor imensa, mesmo com aquele ceu estupidamente tropical. Eu abri a porta e eu me afastei do carro sem dizer nada. Ninguém se olhou porquê a gente sabia que não tinha nada pra ser visto. E logo meus pés eram céus. E logo tudo parecia um riff do Velvet. E a vida era música. E tudo parecia um pouco uma cena de cinema. E eu via a vida ficando no passado enquanto eu descia. Descia. Descia. E enquanto eu morria, encostava minhas mãos no veludo roxo das paredes que iam ficando pra trás. E assim eu lembrava que a morte é bonita porque ela realmente faz sumir essa nossa dor. E ela não respeita o nosso tempo porquê ela não pode perder o tempo dela com a gente. E ela faz você morrer aos poucos. Flerta com você. Faz você girar dentro de um carro, destruir tudo ao seu redor, mas diz, baixinho "hoje não". Porque a morte não tá nem aí pra gente. E as vezes ela fica muito tempo sem aparecer. Mas ela sempre tá ali. A gente sempre sabe que ela tá ali. E toda vez que eu vejo voce passar, ela olha pra mim. E eu respiro seco e quero morrer de novo. Todos os dias a mesma coisa.

domingo, 26 de julho de 2020

Devil's Glen

Ela tinha os olhos mais pretos e tristes que eu já vi na vida. Olhos felinos, corpo quente e um coração frio. Como um animal selvagem, arredio. Odiava abraços - ou pelo menos parecia testar as pessoas com esses avisos, esses muros que ela construía ao seu redor. Besteira. Tudo um monte de convites velados. Eram puro - Vai ficar parado aí ou vai tentar pular esse muro? Não vai né? Você deve ser apenas mais um frouxo - Pois eu derrubei o muro. E agora quanto mais lhe abraço, mais entendo toda sua tristeza. E quanto mais conheço sua tristeza - imensa - mais eu quero abraçar cada parte que ela deixa cair pelo caminho. Ainda não sei muito bem o que estou fazendo ali. Não quero consertar nada. Não há nada a ser consertado. Está tudo muito fudido, seria impossível juntar os cacos. Mas nessa imensidão de dor é que a gente dança. E nessa vastidão de vidro quebrado que a gente corre. E nesse chão de brasas que é gostoso de deitar. Esse inferno é todo meu. E quero morrer e quero essa dor porquê a vida é feita pra ser sofrida. Não tenho a menor ideia de onde estou indo. E desde quando isso já foi importante?