terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

Porta-retratos

Poderia construir verdadeiros castelos com todo tipo de pensamento avoado que pairava em sua mente em algumas manhãs como aquela. Sentado na mesa da varanda, apenas na companhia de sua cueca, um cigarro e sua barba rala, cantava baixinho alguma música meio pop, meio indie, meio no meio de qualquer tabuleta de especificação ou rótulo musical. Pensava. Sorria. Quando olhava pra ela ainda dormindo, deitada lá dentro com apenas o pé aparecendo desabrochado entre as cobertas, lhe dominavam dezenas de sensações boas. Nada parecia importar mais do que apenas terminar aquele cigarro de forma digna pra depois, só depois, pensar em qual seria o propósito daquele dia.
Pegou a gaita e o resto de vinho. Bebeu a gaita e tocou o líquido pra dentro. Melodias envolviam-se na fumaça da ponta do cigarro e de forma quase coreografada iam subindo sem rumo, pra qualquer lugar.
Os olhos dela abriam-se de forma preguiçosa, embalados pelo som vindo do lado de fora. Naqueles primeiros minutos de pós-sono, só conseguia focalizar a cômoda ao lado da cama. Ali, era possível observar o perfil de um livro de Miller não terminado, um resto de cocaína embranquecendo um prato escuro meio virado, apoiado num cinzeiro repleto de pontas de Marlboro, além de um porta-retrato de madeira. Neste último, uma foto em pleno alto mar dava um azul aquele quarto tão branco. Um bilhete colado, dava vida àquela situação conformada. Em letras garrafais dizia “quero você pra sempre”. Mas aquilo não duraria muito.
Meses depois, observando uma vitrine num café, ela lembrava da cena e entendia que o pra sempre, sempre tem um fim. Era engraçado esse bando de marionetes largadas a plena sorte incerta do amor. Porta-retratos. Eternizavam momentos infinitos e sujeitavam qualquer coração frio a encarar o fato de que um dia todos já experimentaram o calor.

Engasgou-se com o café em suas mãos e desistiu de comprar o livro que estava namorando. Era tudo muito doce pra ela.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Barco

O preço do apreço de seus olhos é muito caro. Não sei se posso pagar. As curvas moribundas que teu corpo me faz deslizar são coisa fina, de moleque se engraçar. Dá vontade de ficar pra sempre onde já se está. Mas antes fosse simples o complexo estudo de seu sexo em minhas veredas de desconexo reflexo. Antes fosse só um beijo. Antes fosse.
O cheiro de seu seio, o jeito como respira. Tudo é ingrediente em minha cabeça. Que fica cheia e transborda. Que fica vazia e se transtorna. E amizade se confunde em algo mais que não é nem de longe feio ou tranqüilo. E te cerco como um salto cheio de vigor. E te presto a bela homenagem que for. Nunca teria sido o nada, se não houvesse tido o encontro. E cada nova visão sua é mais uma chance de tudo dar errado.
O tempero que adoça e amarga suas idéias dá cor em minhas andanças. O perfume que exala é fruto de mandingada. De paixão preta de sol e dor. De fim de tarde de chuva e praia. De peixe, carne e vida de senzala. Tua pele exala.

Os teus olhos me refletem e parecem querer que eu me veja como sou. Em teu colo transparecem meus desejos, minha boca e todo meu ardor. Cada pedaço de caminho entra nesse desalinho. Cada meta desmorona e cada objetivo vira trama. Encurta-se em prol de um achado. Dum quê imaginado. Daí esqueço porquê te mereço ou sequer se te mereço. Vou andando, pois andar é como dançar em linha reta. Escrevo em paredes coisas bonitas com canetas imaginárias e patentes tolas e fictícias. E vejo seu rosto de novo. E tudo fica em paz. Até nova tempestade nos pegar e fazer esse barco virar.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Leves fardos

É raiva que sinto. Muitas vezes identifico isso. Vejo uma moça linda reclamar da angústia e solto um palavrão dentro de meu peito. Que ecoa. É como se descobrisse que sempre vai rolar a tal culpa. Não adianta ficar cercando o vazio, fechando o buraco enorme que temos no peito. Ele só cresce. Outra vem dizendo que só quer me dar um oi. Eu sinto vontade de lhe mandar pastar. Mas quem pasta sou eu. Pasto em olhos verdes, em olhos castanhos, em olhos azuis. Pasto em cada poesia, livro ou música legal que me inspira vida. E sigo. Cagando e andando. Mas quase sempre cagando mais, pois eu tenho uma incrível capacidade de fazer merda. Vou dançando, sorrindo e conhecendo coisas novas. Vou aprendendo e ficando cada vez mais vazio. Antes eu gostava de ser burro. Achava poético. Hoje eu não acho mais nada. Não sei mais de nada. Vou a palestras de cursos que custam os olhos da cara e que só conseguem me embrulhar o estômago. Se vejo uma pessoa dizer algo interessante, parece que só de sacanagem ela vai sorrir em seguida e fazer aparecer uma alface entre os dentes, ou regurgitar alguma pérola revestida de merda em sua retórica enrustida de poeira fútil.
Algumas coisas ainda fazem-me sentir vivo, mas fico tendo que apertar a tecla repeat pra escutar várias vezes a mesma melodia, a mesma letra. Fico pensando se minha vida tem que ser feita de repetições ou se eu tenho um gosto muito vago e restrito, pra não dizer pobre. Encontro uma antiga pessoa e ela só me recrimina. Manda-me pentear o cabelo, manda-me cortar meus dreads, manda-me não ler Huxley, manda-me trocar de roupa, manda-me tomar banho, manda-me parar de beber, manda-me cortar os pulsos. E me encho de perguntas e tenho vontade de colocá-las numa prateleira, para sentar-me num divã em um belo sábado à tarde e ficar apenas rindo ou espanando a poeira de cada uma de todas as coisas sem resposta da minha vida.
Impressiono-me com a capacidade de rever histórias em cada novo quadro, em cada nova situação social que me enquadro. Sempre aquele blá-blá-blá igual. Os pessimistas de um lado, os realistas de outro, os que agem nunca estão, os que têm coragem a gastam em vão. Daí sento-me numa praça onde encontro um alguém imaginário que deve ter um saco gigantesco, pois escuta muito mais do que fala. Daí eu falo. Falo, falo e falo. Falo coisas e percebo que quando falo, muito do que quero dizer, quero dizer pra mim mesmo. E entendo que eu preciso me ouvir e preciso gritar para que outros escutem as coisas que digo, para ajudar a sentirem-se bem e não forçados a assimilar ou concordar. Nessa hora, tudo que necessito é de um elogio. Daí vejo como meu ego é grande, gordo e escroto pra caralho. Vejo como vaidade é um lance essencial e mesquinho ao mesmo tempo. Daí quero que tudo continue como está, só para começar a entender um pouquinho tudo que mexe comigo e move o mundo. E fico feliz. Não chego a ficar eufórico, até porquê isso soaria doentio. Mas fico feliz. E então fico vendo pedras portuguesas maltratadas com a mesma cara de bobo típica de alguém que observa uma lua cheia em um céu estrelado, numa dessas praias carregadas de histórias autobiográficas. Fico vendo impossibilidades com aquela esperança de quem vê uma flor desabrochando em plena primavera. E acho tudo até meio sacal. Mas peço algo pra beber, cumpro algumas metas, acredito em meus sonhos de novo, dou umas risadas e a vida torna-se simples. Volto a ter minhas vontades loucas, minhas paixões bobas e meus sentimentos profundos. Fico apertando o repeat, aumentando o som e seguindo sem resposta alguma pra dar. Daí me sinto normal.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

A caminhada

De baixo da sombra da folha aparecia um orvalho que condizia com todos aqueles pensamentos claros que só quando se quer enxergar as coisas certas a gente pode ver. Na madeira curtida que transformava-se em cama para cada gota lúdica que brilhava com raios de sol mágicos carregados de cor e vida própria, era possível entender combinações de cores incríveis. Um prisma que trazia a coragem de mesclar composições nunca antes imagináveis de porções de espetáculo convertidas em bênçãos da natureza. Acovardar-se a não cair na tentação de observar era digno de quem nunca pisara forte em um chão de terra batida.Como a mesa trabalhada em lenha estava a meia altura, era preciso curvar o corpo para invadir um novo ângulo de realidades para aquele vazio de possibilidades visuais.
Era pra ficar olhando assim a praia com suas ondas erradas caindo certas e lisas como um espelho no mar em dias de vento norte, abrindo caminho dentro de tubos que não se intimidavam em cuspir vapores de água cheios de promessas de um novo fôlego. A espuma indicava o caminho para a areia fofa, com tons de grãos carregados de sol. Tudo aquilo se apresentava num intervalo ridículo onde o espaço mínimo se engrandecia perante o inusitado. Era a possibilidade de grandiosidade dentro da adversidade se abrindo e jogando de forma rude no seu rosto a alegria que é saber o que se sabe que deva saber.
Encostada noutro canto da varanda, com toda a presença de quem não procura a atenção no meio do conjunto de infinitas linhas de errância, a prancha descansava de pé. Sabia que deveria estar no mar, mas aguardava pacientemente o desenrolar das atitudes alheias. Era quase um oásis de paciência no meio da nova obviedade de intensidade frenética que se apresenta no trajeto de qualquer um em dias como aquele, se vividos em concretos frustrantes levantados com vigas de medo no meio de alguma metrópole fria longe dali. Pelo caminho desenhado de sua rabeta passando pelas poucas mas existentes morsas até sua ponta apontando o infinito, parecia ali para observar aquela gota de orvalho também. Orvalho guardado pela sombra da folha do pé de fruta na varanda adornada em palha.
Mas assim. Bem assim. Num momento pequeno que ousou demonstrar a grandeza do coração de quem preza a liberdade, apagou a brasa da imensa fogueira da noite anterior, bebeu um gole da bebida feita de uva e desceu pela praia. Andando, dava pra se escutar três diferentes tipos de som. Nuances de perfumes sonoros vindos do mar, rasgadas de um reggae imaginário por sobre o coral e o ranger óbvio da areia que propõe o não tão óbvio caminhar. Ele apenas caminhou.

Rabisco de 12 dias antes do acidente que quase interrompeu meu caminhar. Maio 2005.®

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Ensaio sobre o pertencimento

De repente percebo que não pertenço ao lugar que nasci. Posso ser mais parecido com um brother que viva no Sumatra ou Islândia do que com meu próprio vizinho ou o crowd que divido a faixa de areia na praia que costumo freqüentar.
Era do lifestyle? Informações circulam de modo frenético, pesco-as da maneira que acho mais conveniente. Sou parte das fragmentações unidas por estilo de vida. Complicado massificar, arriscado rotular. Arriscadíssimo. Mais fácil é destribalizar. O espírito de minhas ações reflete minha maneira de ser. Fato. Atitude deixa de ser uma palavra de impacto para se tornar uma careta e imprescindível essência do bom senso. Fato. E melhor assim.
Não sou o que fumei, o que bebi, o que cheirei, o que senti ou o que vivi. Não sou minhas tatuagens, nem minhas cicatrizes. Sou um pouco de tudo isso de maneiras diferentes. Sou o resultado de um emaranhado de sensações e ações deflagradas pela combustão do se-estar-amarradão. Sou genuíno e causo medo. Deixo as máximas que escolhi trilhar serem meus no-mínimos. Carrego apenas o que posso levar nas mãos. Mas quase sempre faltam mãos ou me faltam dedos.
Não me convém sustentar fardos pesados sem sentido, apenas enfrentá-los sempre que houver a iminência do bom combate. Fato. Simbolizo uma nova era da assimilação com predomínio da ação. Poesia que me afasta da letargia. Divido meu tempo sem marcar fronteiras muito rígidas. Perco espaço, ganho projeções.

Rabisco feito 2 dias antes da virada de 2004/5 ®