terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Quando você passar

Quando você passar por mim vou tirá-la pra dançar, moça. E vou tratá-la bem. Escolherei a dedo os amigos que vou apresentá-la, moça. E vou explicar à eles todos os seus pequenos defeitos bobos, pra ninguém ousar magoar você. Eles vão entender, vão saber o quanto me importo contigo. Quando você chegar vou fazer festa, moça. Vou acender uma vela, colocar um vinil pra tocar e, quem sabe, construir aquele meu mojito cubano. Vou revelar nossas fotos e criar um monte de albuns coloridos com nossos melhores momentos, moça. Vamos trocar a minha cortina da sala e manter a tampa da privada abaixada. Quando você acordar seu nariz vai despertar com o cheiro do meu café forte. E vou comê-la como se você jamais tivesse tido tanta sorte. Nossas discussões, breves, vão ser intensas como devem ser as brigas de quem se ama. E os nossos sonhos, altos, vão ser impossíveis como cada utopia de quem sempre prefere ir além. Porque quando você acordar, moça, vai saber que eu não existo. Vai saber que sou humano e minha merda fede e no meu peito, tem um coração quente. E vai saber que minha pele rabiscada é pura obra de arte. Pelo menos pra mim, moça. Pois pelo menos assim a gente vai perceber que quando você passar por mim, não vou fazer mais nada. E como anjo que sou, não existo, sou incolor, não tenho mais cheiro. Nem vou estar mais ali, como deveria, pra trocar segredos com seus ouvidos enquanto danço contigo, sorrindo.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Saudade


Quando me faltam motivos é que me invade toda certeza de quanto ainda preciso de você. Vejo toda essa chuva, toda essa morte, todo esse estrago, essa falta de sorte, esse enfado, todo esse nosso desatino dormindo em quartos separados. Se tudo aquilo que construímos desabou, ainda temos nossa derrota como trunfo, pois dela, já não podemos passar do fundo. E esse pessimismo vira como o tempo, na frente de nós. Quem sabe não é uma nova chance de resgatar o que um dia já pudemos chamar, pasmem, de amor.
Entro dentro de outras mulheres úmidas, louco, e não vejo nada, apenas sinto você. Gozo em você, gargalho e sorrio pra você e quando meu pau, brincalhão, resolve se omitir, é fato, tudo isso é por causa de você. Sua cintura é meu caminho de volta ao mundo, em lugares com meu nome, que inventei pra te levar pra passear.
A gente sabe que todos os outros foram uns babacas, figurantes, uns otários de porte, que jamais compreenderiam essa sensibilidade com cheiro, meu norte, que mora em seu olhar. Em olhos, seus olhos, meus melhores amigos, meus únicos amigos. Incansáveis, eles sentem minha falta e sofrem. Fazem você andar por aí cabisbaixa, moribunda, sem vida, sem combinar com seus falsos sorrisos, seus falsos beijos e seus falsos arrepios de desejo. Porque tudo isso agora é mentira. Porque depois de mim é puro blefe. Você sabe disso. E a cada madrugada se toca e pensa em mim olhando pro teto do quarto ou pro teto do céu, negro, feito de estrelas que não conseguem fazê-la dormir como meu corpo quente e calmo faria.
Quando me faltam certezas é que me invadem os melhores motivos pra escrever minhas palavras mais bonitas. Porque não quero mais estar errado quando sei que tudo o que mais preciso é de você ao meu lado, agora, me devorando, com seu corpo submisso, abdicando do seu chão. Sou tolo. Tão tolo. E meus gritos e minhas flores e minha poesia vão andando por aí em mãos erradas. E meus pés, sem chão, já não querem correr. E pra morrer, já basta meu peito que inventou meus pecados. E pra morrer, ao te ver, tão linda, já bastam todos esses nossos sambas que se bastam.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Vendi sua Kombi por uns litros de uísque

Ela tinha uma Kombi, um violão e muita vontade de viajar por aí. Ela tinha uma linda voz, um céu azul sem nuvens em seu peito e duas belas coxas que acabavam com todas as nossas discussões. Eu tinha um dente de ouro, alguns fios brancos e todas as minhas derrotas escancaradas na língua. Uma vez um troglodita me acertou na saída de um bar. Foi um baita golpe de barra de ferro na cara. Ela cuidou de tudo. Fiquei inchado, bem feio depois do bisturi, depois de colocar todo aquele titânio na fuça. Ela molhava uma toalha branca num pote com água gelada e ficava massageando as maçãs do meu rosto como uma diva. Ficávamos ouvindo Jerry LaCroix a tarde inteira. Depois ela chupava meu pau com sua fúria doce e molhada e me pedia uns tapas na cara. Vendi sua Kombi por uns litros de uísque do bom pra um carinha da praia. Soube que ele fez um rolo com um artista plástico e hoje a máquina tá quase irreconhecível, sem rodas, cheia de desenhos num desses picos meio new hippies. Nunca confiei muito em hippies. Tenho vontade de socá-los com esse papinho infanto-pederasta. Pior que os hippies, apenas os poetas. Uma vez sonhei que tinha que escolher entre deixar que matassem um ou fazê-lo servir gelo em meu uísque para sempre. Até hoje chamo o desgraçado pelo nome quando estou muito bêbado e meu copo está vazio. Malditas lembranças. Como quando ela dirigia a Kombi enquanto eu dormia de bruços, quase em coma, na parte de trás. A gostosa fazia questão de acelerar nos quebra molas. Pelo menos hoje, quando penso nisso, acho que ela gostaria de ver sua caranga longe de mim. Não queria aquele carro em minhas mãos, atropelando bichos de canto de estrada. O que eu podia fazer se os danados me procuravam? Deviam ser uns animais com tendências suicidas. Deviam passar o Natal sozinhos em algum bar, ouvindo blues, enquanto famílias felizes jantavam nas mesas ao lado. Com seus barulhos de risadas e talheres e crianças correndo. Como os sons dessa minha maldita depressão. Que fica me abraçando, acariciando meus pensamentos, aguando meu uísque. Ainda consigo lembrar dos seus seios e as vezes isso realmente anima o meu dia. Mas é verão e meu suor me deixa macambúzio, nostálgico. É tão quente aí fora e no meu peito esse buraco imenso deixa tudo tão frio. Ela tinha uma Kombi, um violão e muita vontade de viajar por aí. E sempre leva embora, desgraçada, minha alma, toda vez que penso nela entrando na frente daquele rifle.