terça-feira, 10 de outubro de 2006

Trainspotting

“É uma noite terrível, sombria. Nuvens carregadas pairam lentamente; aguardam o momento de vomitar sua carga obscura sobre os cidadãos confusos, pela enésima vez desde que raiou o dia.”

Fecho o livro ali. Olho mais uma vez a cara de Irvine Welsh na orelha. Cara de babaca. Parece a sina de britânico, ter cara de babaca. Cheiro uma quantidade abissal de cocaína batida mal e parcamente por cima da capa. Acho que ninguém viu, mas não ligo muito pra isso. Não é comum as pessoas se preocuparem umas com as outras naquela altura da madrugada. O vai e vem do trem somado ao verniz localizado nos tipos do título na capa do livro atrapalham um pouco as coisas. Alguns jovens empolgados entram no trem falando alto. Sempre coloridos. Sempre indo ou voltando de uma rave. Nunca dá pra saber. Sempre com alguma droga nova na cabeça e aroma de sexo exalando alto pelas axilas, nucas e pernas, que estão sempre abertas. Libido que faz minha cabeça ventilar, enterrando-me ainda mais em toda podridão que alguns pensamentos acabam por desaguar, com idéias que um trem sujo escocês insistentemente realça. Idéias prontas a maltratar qualquer um, só pelo fato de se estar vivo. A euforia do pó colombiano trazido do Brasil faz por instantes, pasmem, minha cabeça lembrar de coisas boas como a bela bochecha rosada de Elaine. Olho pro nada e percebo uma moça vindo em minha direção meio desfocadamente. Começamos a conversar. Ela ganha pontos. Acho-a no mínimo corajosa por tomar essa atitude. Está bronzeada e fala coisas bonitas. Diz-se atriz e escritora, está com uns papéis coloridos na mão com algumas baboseiras pueris escritas e uma garrafa de vinho dentro de um saco plástico. Quer me vender algo. Acabou de chegar da América do Sul, por isso a pele queimada. Divido uns goles com ela, mas me recuso a ler seus poemas. Não dá pra ler nada escrito num papel colorido. Papéis coloridos cortam minha onda. Nos despedimos e desço perto da praça do hotel. Deixo meu livro com ela de presente, tava a fim de me livrar daquele monte de merda mesmo. Ela corre e pergunta pra mim da janela, antes do trem voltar a andar, se eu acredito no amor. Enfio as mãos no bolso pra fugir do frio e balanço a cabeça para os lados demonstrando que minha resposta é um sonoro não. Comigo mesmo, sei que é só minha veia amarga manifestando-se. Vou descendo as escadas da estação e chuto uma ou duas latinhas de cerveja antes de pousar meu allstar surrado na calçada úmida. Enquanto escarro num poste, penso sobre a verdade: até acredito. Mas é foda. Acho chato pra caralho falar de amor.

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Sobre probabilidades

Como é foda poder ser ligeiramente ácido contigo e não sofrer as conseqüências sacais que uma suposta relação entre nós mais íntima traria. Esse sabor delicioso de poder ser franco com você (e não grosseiro, como infantilmente considera) me deixa nas nuvens. Não que eu me importe, pois já se foi o tempo em que isso ferrava meu dia. Aliás, nem sei bem se a expressão “nas nuvens” significa algo além do simples fato de flutuar de leveza quando ajo assim. Ser franco tem dessas coisas. É bom gritar sem expelir nenhum decibel sequer, um foda-se em caixa alta pra todo tipo de frescura sua. Juro que não faço isso por motivações pequenas ou algum tipo de recalque. A propósito: é até bom pra você, acredite. Ainda te acho linda e inteligente. Ok, menos do que quando estava contigo (atire a primeira pedra quem nunca flertou com o eufemismo). Acho sexy esse seu jeito contraditório também, mas percebo nem ser culpa sua isso tudo e sim do meu amadurecimento que trouxe de bandeja a calvície indecente que ando trajando, além da completa falta de saco pra ser diplomático. Chega uma hora na vida em que não há mais porquê um homem fazer sala . E aí você vira um fingido ou um insuportável (que fique claro que educação passa ao largo do assunto). Eu prefiro que ninguém me suporte. Já basta ter a idade que tenho e nem imaginar uma previsão pra começar a fazer os cinco filhos que minha família Claybon conservadora e preocupada com a violência vai ter. Pelo menos não me iludo achando que vou virar um guardião da moral. Tô mais pra virar um Hunter Thompson que abandonou a literatura, completamente careta e sem bagos pra cometer suicídio. Ou, reviravoltas da vida, acabar abrindo um boteco em Goa e morrer sem espaço no corpo disponível para mais tattoos, antes dos cinqüenta.
Lembra quando fui te levar no aeroporto naquela intempestiva ida à Itália? Aquele olhar que você fez ao entrar no check-in costumava diluir toda essa minha suposta capa ranzinza. Se foi verdadeiro valeu a pena. Tenho certeza que foi. Mas hoje não trocaria uma piada, uma constatação ou dizer o que penso, por nada neste mundo. Acho que você pode suportar bem isso. A gente nunca teria dado certo mesmo.