quinta-feira, 18 de junho de 2009

Sobre como distinguir o choro do riso

Papai saiu cedo. Precisava fazer um dinheiro. Precisava ser pago. Papai era muito dócil com a gente. Tocava violão, contava histórias. Quem o olha mal acredita que aquelas mesmas mãos viveram sujas de sangue por aí. Quando escutava suas conversas por trás da porta a única coisa que nunca mudava era a razão: sempre com ele. Jamais entendi o que fazia de verdade. Mamãe tinha muito orgulho dele, vivia emocionada. Sempre com essa maneira especial de chorar ou rir do mesmo santo jeito. De uns tempos pra cá nem tentava mais distinguir. Papai saiu cedo. Mas hoje ele não volta. Meteram uma bola oito em sua boca. Achei desnecessário isso. Mamãe ainda nem me falou o que aconteceu, mas já me disse pra não contar ao Chico, meu irmão menor. Quebraram todos seus dentes e queimaram o corpo. Ouvi dizer que aquele homem do tamanho de um armário coube facilmente na mala duma Fiat, na rua do Tio Bento. Minha mãe agora tá chorando. Tenho certeza. Vou lá pra cima com o Chico. Para o caso de alguém entrar numa de dizer que papai foi fazer uma longa viagem, ainda não decidi se vou acreditar ou não.

sábado, 6 de junho de 2009

A cozinha

Cozinha. Pensava. Sem dúvida responderia cozinha, se alguma daquelas crianças vestidas de terra, desafiando mães, pais e leis da física naquelas ladeiras, me indagasse sobre o lugar preferido na casa branca.
O cheiro colorido da hortelã na sacola de palha misturava-se ao do manjericão roxo e fresco, ambos inquietos num inquestionável segundo plano. De uma suavidade tropical, impávido, era o doce, fresco e provocativo sabor das mangas que enrubescia meus sentidos sem nem ao menos precisar de mordidas, acordando o paladar pra tomar conta de minhas narinas. A madeira molhada da porta chiava avisando uma chegada. Deflagrava camadas e mais camadas aromáticas, que davam ao mesmo tempo boas vindas e um enfático anúncio de meu retorno ao lar.
Envolta em lençóis ela caminhava com leveza, exalando uma mistura de pele, pólen, suor, calor e graça. Sua boca agora era dona de meu pescoço, seus seios eram de meu peito e seu corpo tinha o peso de uma pluma, passeando em voltas pelo ar, suplicando baixinho em meus ouvidos sem que som algum pudesse ser ouvido “coloca-me ao chão”. Sua língua com gosto de ontem espalhava-se em minha língua, reconhecendo cada novidade, ávida por todo meu sabor.

Depois eram toalha, cesta, temperos e frutas pelo chão. Depois é nosso corpo sem plural, uma coisa só. É respiração quente em tonalidades diferentes de calor, aromas, cores. É tudo ficando pra depois. Qualquer tentativa de almoço virando jantar. Qualquer horário marcado virando espera. Qualquer ligação já nascendo perdida. E no momento onde só uma coreografia completamente não ensaiada faz sentido. Onde uma improvisação de jazz é recebida com uma sensatez absoluta. É aí que te encho de lava. Encho-te de mim.
Não podes mais fugir porque sou duro, quente e estamos presos a esse chão até a morte.
Agora pertencemos a todos os aromas desse lugar. Folhas grudam, verdes, em sua pele vermelha. E sabes que está completa, com suas coxas sujas de leite, enquanto olho-te resignado. Espera-se de mim nossa ceia. Mas ela já vem. Ela já vem.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O filho da puta

Era um daqueles fins de tarde de sexta-feira em que o sol já descia prometendo vingança. Movia-se impassível, pincelando contornos alaranjados por toda a cidade, imaginando o que as cores da noite fariam com seu trabalho. Debaixo disso, um senhor bem vestido seguia deixando pra trás velhos degraus num corredor estreito, protegido dos raios de luz que indicavam a saída e as formas de uma criança atrapalhando a passagem lá embaixo. Ganhou a calçada olhando fixo nos olhos do menino prostrado à porta, que agora tinha cheiro, feições e ossos, muitos ossos à mostra. “Nessa vida o nome que damos a algumas coisas às vezes não combina com o que os nossos olhos veem". Não sei se o tom profético e apressado ajudou, mas nunca mais o menino esqueceria disso.
Tal recinto era na verdade um grande sobrado de cuidadosa arquitetura francesa. Ficava ali pelas redondezas do Beco do Rato, geograficamente falando: uma coisa assim meio Lapa, meio Glória. Do alto de seus oito anos de idade, o pedaço de gente e testemunha das palavras do enrugado cliente que deixara o local há pouco, jamais tivera notícias de quem haviam sido seus pais. Até mesmo quando esse assunto teimava em rodear a cabeça de sua tia como moscas em volta de um bolo de laranja fresco, ela cismava em contar uma história diferente a cada dia. E que histórias. Eram prosas tão fascinantes que, em certa tarde chuvosa de março, o moleque chegou a se pegar, pasmem, agradecendo a Deus por ser um rebento sem família. Só e simplesmente pelo prazer de se perder naquela imaginação de Tia Chica. Uma morena dona de colos fartos e meia-dúzia de corações graúdos, que cuidava daquele projeto de homem como se o franzino tivesse saído da própria repartição pública existente embaixo de suas saias. Todos naquela rua encarpetada em pedras sabiam que arrumar problema com o menino de Chica era garantir uma encrenca das boas.
A casa onde tudo acontecia era frequentada por políticos, funcionários públicos, advogados e, no início do mês, por ordas de assalariados de menor status, ávidos por gastar seu dinheiro suado, suando um pouquinho mais. Ali o moleque aprendia o significado das palavras. Sabia que Ivo via a uva na sala de aula, mas quando seus pés encardidos subiam as escadas barulhentas do sobrado, aprendia degrau por degrau todo um dicionário recheado de signos, frases e comportamentos que professorinha nenhuma conseguiria explicar. Não raro chegava ao ponto de entrar inclusive no campo das fundamentações filosóficas. Sabia o que era uma puta, mas sabia muito bem diferenciar o adjetivo que na rua tinha função vexatória, para o significado real daquelas mulheres de seu convívio.
Mulheres que cozinhavam, pediam por ele no terreiro, lavavam sua roupa e o ajudavam até com as tarefas mais difíceis, como seu dever de casa. Sabia que sua tia era uma delas, mas sabia também que sem ela seu horizonte seria bem mais limitado que o horário de estada em cada um daqueles quartos. Minutos cronometrados que terminavam com socos nas portas, quando um crioulo chamado Felisberto, de uns 5 metros de altura, segundo seus cálculos, avisava gentilmente aos clientes sobre o fim da visita. E no lugar onde puta podia significar mãe, e zona, uma família, ser xingado na rua transformava-se quase em motivo de orgulho, mesmo quando ninguém ousava fazê-lo com ele. Mas como até o notório Felisberto estava cansado de saber, "se tem uma coisa que o tempo nunca teve, é a preguiça".
Assim os anos se passaram, o local ganhou um outro tipo de família, essa de verdade, daquelas mais tradicionais, e perdeu um bocado do charme de outros tempos. O menino crescido agora virara um sambista pela sobra de talento e pela falta de escola. Falta de escola-escola mesmo, aquela de verdade, com boletim, chamada e essas outras coisas dispensáveis. Porque a vida sim, essa nunca negara a ele um pingo de conhecimento e explicação pra tudo quanto é coisa.
Entre um samba e os socos que as portas continuavam tomando da vida, mostrando que as coisas terminam porque assim elas foram feitas pra ser, recebeu um telefonema. E do outro lado da linha aquela conversa estranha que, ele sabia direitinho, quando não dizia nada, dizia muita coisa, colocara-o no táxi que agora deixava o leito do hospital onde sua tia repousava. Fazia tempos ela estava de mal com o tempo, que, sem ninguém para puxar sua orelha, maltratava-a.
Agora o moleque crescido estava ali em frente ao sobrado, taxímetro ligado, olhos marejados. Achando graça ao saber pela boca de quem acabara de morrer que na versão final das histórias de Tia Chica sobre seus pais, a partir daquela manhã tinha ele um motivo real pra se orgulhar eternamente de sua mãe. Era um belo dum filho da puta.