domingo, 23 de maio de 2010

Roland Garros

Saibro. Não me dava bem no saibro. Meu pai e toda aquela merda de bons modos e escolas caras e etiqueta no jantar me empurraram pra porra do tênis. Só serviu pra comer uma ou duas gatinhas com o cuzinho recheado de grana que, pra variar um pouquinho, desistiram de mim quando não me adaptei ao modus operandi de ser tratado como uma de suas novas bolsas de grife. Mas uma delas até que era bem gostosa. Cretina da pele cor de leite desnatado.

Saibro. Nunca me dei bem no saibro. Escorregava demais. Chegava em casa com canelas vermelhas, arranhões e a risada do meu instrutor martelando na cabeça. Deitado naquele buraco com as mãos amarradas foi exatamente nisso que uma espécie de Google mental localizou quando aquele filho da puta escorregou. Saibro. Alguns podem chamar isso de milagre. Eu chamo isso de um dia bom. A bala disparada por ele na queda deve ter passado ao lado da minha costela, pude sentir o calor da desgraçada. A cabeça do cretino não teve o que podemos chamar de sorte. Uma das pedras daquele buraco, meu portal para o inferno, era do tamanho de uma manga e abriu uma boceta maior que a de uma puta velha em cima de seu olho esquerdo. Após isso tudo seguiu em paz em uma longa noite de espera. Era quase romântico. Seu sangue quente jorrando em meu peito, enquanto eu ficava lembrando da porra das aulas de tênis. Da porra do saibro. Do cu de uma daquelas patricinhas. E foi assim que livrei meu traseiro daquela maldita cova rasa. De manhã cedo um viciado achou estranho quando viu aquele negão em cima de mim. Ainda em estado de choque me tirou debaixo daquele monte de carne podre. É impressionante como a gente fede. É impressionante como quando nossa alma resolve tirar umas férias, nosso corpo vira um monte de fezes. É isso que nós somos sem alma. Fezes.

Lá no serviço até hoje todo mundo me considera um cara de sorte. Ninguém entende como me livrei dessa. E sempre quando tiram uma bala nova do meu corpo, geralmente na manhã seguinte a uma noite daquelas, dá pra ouvir de longe o pessoal sussurrando. Os urubus mal sabem falar sua língua mãe, mas me chamam de “Roland Garros”. Falam que eu tenho o corpo fechado. Tô cagando pra isso.

domingo, 9 de maio de 2010

Saideira

Abriu os olhos após um micro cochilo no balcão de seu boteco preferido. Demorou certo tempo para cair a ficha de que toda a população da Terra havia sido dizimada. Acordou com uma baita vontade de tomar um grau e se divertiu por alguns dias saqueando garrafas de cachaça dali mesmo e da mercearia na esquina, até se dar conta do tamanho da encrenca. O pique esconde sem precedentes garantiu o sumiço inclusive dos pobres animais. Nem o sarnento sem nome, aquele vira lata que sempre mijava na árvore de natal da loja de departamentos da rua, tinha sido poupado. Pra ele, animais, mesmo os do tipo que mijam em presentes cenográficos, mereciam uma espécie de clemência.

Foram meses se masturbando, bebendo e apreciando uma dieta especial: exatamente tudo o que uma nutricionista indicaria ao contrário. Morrendo de tédio e abstinência pelo fim do estoque de cana em seu quarteirão, resolveu se aventurar pelo bairro. Já havia desenvolvido certa habilidade para lidar com esse monte de dias iguais e até com a falta de luz, gás e água encanada. Diferente de todos os filmes e histórias de fim do mundo, ali as pessoas pareciam ter se desintegrado num estalo de dedos. Não existia um panorama de caos, guerra ou luta pela sobrevivência. Ninguém precisou se digladiar ou comer um bife da bunda de seu vizinho. As pessoas pareciam ter simplesmente sumido. Coisa de um peido. Baita peido, aliás.

Um ano após o dia que o planeta despachou todos os seres humanos como um adolescente se livra de suas obrigações, seu, até ali, único condômino, avistou uma grande porta brilhante. Ao seu lado: um homem de terno. Pensou em correr pra lá. Tinha tanta coisa pra perguntar, pra conversar, pra compartilhar. Mas paranóico por todo aquele tempo sozinho, resolveu chegar mais perto e apenas estudar o terreno. O homem de terno fazia as honras como uma espécie de porteiro ou leão de chácara. Impassível, seguia guardando a tal entrada. Obviamente para ninguém, pois não havia alma viva no planeta para aparecer de pulseira vip no braço e adentrar o recinto.

Alguns dias depois, com a barba gigantesca, a mesma camisa do Flamengo de um ano antes, mas com uma confiança nova e contundente transbordando em seus olhos, resolveu dirigir-se até a porta. Não pôde deixar de notar a surpresa do homem de terno, que parecia conhecê-lo. Ao chegar até sua frente, disparou:

“Como é que eu faço para entrar aí, meu camarada?”

Mermão, acho que agora tu se fodeu. Mas vá lá, pode entrar”

Finalmente voltou para casa. Ficou sem a mulher, mas até hoje ela jura que o canalha contou essa história sem gaguejar, nem piscar uma só vez.