quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Sem título II

Vem chegando a manhã em que vamos pagar todos os nossos pecados. Doando brinquedos, rasgando trapos em pensamentos vazios e sem direção. Foi anunciada sua derrota e o poder vai trocar finalmente de mãos. E ele está comigo, nos balcões de bar, nos poetas magros, nos andrógenos e bizarros. Agora é hora de rasgar todas as suas telas presunçosas com paisagens perfeitas, cuspir em quem anda dizendo por aí que a arte é uma grife, como tudo que leva assinatura fácil. Dá pra escutar seus gritos, seus pedidos de perdão e clemência. Mas eles vêm vindo. Eles estão determinados. São como caçadores, justiceiros, mercenários. Em nada absurda ternura carregam flores, palavras de amor, garrafas de vodka, bandeiras sem brasão e induzem quem passa ao ópio que vai inverter suas formas de pensar. Os de alma pequena, os embustes, as prostitutas intelectuais, os calhamaços falastrões, aqueles que sabem que sua farsa será descoberta. Todos estes choram, correm pros seus ursos de pelúcia, pra sua infância perfeita, pra suas lembranças da Disney. Agora não temos mais tempo pra temer as rédeas. Elas simplesmente não existem mais. Não, não fuja. Não seja ridículo, sua depressão faz parte dessa história. Seu trunfo pode ser justamente saber que também pode estar errado. Seu trunfo é rir de toda essa sua insegurança patológica, de todos esses seus remédios incríveis. Suas partes mais sujas foram abençoadas e transformaram seu mundo injusto em realidade divina. Você está livre, não tenha pena de si, ninguém vai te odiar nem cobrar nada. Mas ninguém o perdoará se continuar agindo como um peão sem direção aparente. Pode sorrir, eles estão por vir. Será fácil reconhecê-los. E suas mãos estarão sempre extendidas a quem nunca entendeu muito bem como ainda se pode cair na armadilha de preferir uma vida medíocre.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

De mãos dadas ninguém pensa em morrer

Você enche meu copo e a gente descobre um jeito de ficar assim, sem fazer nada, mais tempo juntos. Sábado passa a ser nosso dia oficial de mandar o mundo inteiro tomar no cu. Um pouco de pó transforma seu desfile de calcinhas novas no evento mais importante de todos os tempos. A gente vai se matando aos poucos, sem glamour, mas sabe que morrer é apenas uma bela certeza que nos dá ainda mais vontade de fazer amor. Então a gente brinca com nossos corpos como dois adolescentes de trinta e troca nossa estrada asfaltada por um pouco mais de graça. Não é seguro, mas a noite passa e vira sol. Domingo é dia de caminhada, suco de frutas da praça, boca cheia, saúde e aquela deprê que não me larga. Nossas desgraças são absolvidas a cada nova boa notícia, a cada novo amigo de fé que se casa, faz um filho e feliz, fica menos babaca. Seu sorriso é raio de um brilho esguio que se espelha, se encaixa em nossa festa, disfarça em meu peito o que resta de nós, que só passa a ter graça em você. Parei de contar meu tempo livre desde tua ligação crua, voz madrugada nua, me chamando pra te assistir escrever. Seguimos brincando como dois são um, em caça níqueis, cheios de erros infalíveis. De saídas à francesa. Cheios de todo esse povo chato posto à mesa, que aponta demais porque não pode entender. Não quer perceber. Se já não temos rumo, abandonamos nossos planos, assuntos, andando por aí. E se a gente fica junto, é porque de mãos dadas ninguém pensa em morrer.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

De tudo

De tudo o que foi feito

só pra mim,

você passou e resisti.

Ficou o gosto, seu corpo

todo se escreveu

de novo em mim.

Estendeu-se em novo

um abraço,

um novo jeito meu

meio nosso jeito de criar

um velho jeito de lembrar

de tudo.

Se o que foi feito já acabou

fica assim

fica bem

vá andando

tô te olhando

não vou deixar você cair.

De tudo o que prometo

sei menos hoje

sou menos hoje

sei mais de mim.

Assim disfarço em riso.

Sorrindo

de todo grande defeito.

Se de todo jeito

de tudo o que foi feito

o que se fez

bem feito,

ficou.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Noites tropicais

Ficava sentada em cima da mesa da cozinha, pernas cruzadas, cigarro na boca e queixo quase apontando pro teto. Aquele seu mesmo jeito estranho e sexy de me desafiar. Queria porque queria tatuar logo a perna direita, adorava aqueles desenhos old school. Mas mal tinha terminado de cicatrizar o último, já reclamava sem parar daquele peso assimétrico atrás de si. Sua boca dançava entre palavras vulgares, entre fortes e densas baforadas pra baixo. Concentrava-me no barulho alto da geladeira ligada. Funcionava como um mantra. Com a temperatura quente e úmida, tornava-me burro, lento e defensivo. Era como vertigem sua voz misturada ao zunido do motor, fumaça, luzes fortes refletidas desenhando um rastro pelo azulejo e cerâmica. Apesar de rara, acidentalmente surgia uma brisa, circulando por entre nossos corpos como um espírito amigo refrescando alguns instantes de pensamentos vazios. Ficava ali deitado no chão com pena do mundo, no mesmo lugar de sempre, estupidamente distraído. Solenemente despreocupado com sua voz aguda após a quinta ou sexta palavra mais alta. Deixava a doida ferver como uma panela prestes a explodir, para levantar de repente e, sem avisar, levá-la pelo colo até nossa banheira. Depositava seu corpo escultural e nu em água quase fria, que se comportava como peixe voltando ao rio. Ensaiava protestos em sussurros, em palavrões, antes de refugar, trôpega e sem relutar, seguir minhas ordens como uma cadelinha. Meus passos molhados riscavam um mapa de volta à cozinha. Agora sozinho preparava como um rei sob um chão de tabuleiro outra dose generosa de uísque com bastante gelo. Não precisaria nem tornar a pisar no tapete surrado do banheiro para prever o futuro. O castanho dos meus olhos veria suas mãos em sexo, seu rosto perdido e suas pernas balançando em gotas, como um convite de dedo indicador. Hora de jogar minhas roupas longe e reescrever outra noite como se fosse a última vez que faríamos amor.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Interlúdio

O sol na cara cria um filtro meio Grains de beauté nos primeiros segundos do dia. Seu sorriso sincero afasta as nuvens do corredor. Afasta o mal. Afasta a dor. Passo a reconhecer os feirantes. Dou bom dia com os olhos, caminhando por um asfalto cheio de aromas. Já não brigo mais com meu despertador. De repente você me traz essa vontade de cuidar da minha saúde. Absurdo. Acho graça dos tapas que recebo na pele rabiscada. Acho graça da nossa vida. Nos meus braços, sem espaço, a tinta fica mais forte. Minha cor torna-se rubra e invade meu branco de sangue. Minha língua invade e traduz-se dentro de seu corpo. Ela fala sozinha. Você geme. O tempo corre lento: anda zombando da gente. E me pego falando sozinho. Desenhando corpos nus. Eles correm, tatuados, debochados. Sigo escrevendo. Protestando. Deixando meus livros caídos pelo quarto. Deixando a janela aberta. Tudo com esse filtro meio Grains de beauté. Tudo com essa música tocando pela milésima vez. Respiro forte. Fica fácil fazer poesia assim, com sua perna em cima da minha, louça suja na pia e aquele quadro triste e inacabado, pedindo atenção no outro canto do nosso quarto.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Um catarro na poltrona da sala ou Johnny Rotten crisis parte II

Não deu nem tempo de achar que foi um sonho. Foi só tomar coragem pra sair e jogar o lixo fora que aconteceu. Porta entreaberta, passos de bêbado que não quer acordar a mulher e voilá: meu cuspe sentado na poltrona da sala, impassível. Não sei se o álcool remanescente em meu sangue (ou vice versa) tranquilizou-me, mas agi com uma naturalidade quase blasé. Peguei o caderno de esportes do jornal, sentei no sofá bem a sua frente e dobrei calmamente o calhamaço de folhas em quatro, depois de acender um cigarro. Ameacei começar a ler a matéria sobre o jogo do dia anterior, mas achei demais iniciar um mise-en-scéne tosco. Porra, não dava pra negar a realidade: o caralho do meu catarro estava vivo, na minha frente, sentado na minha sala. O tipo de situação que me fazia repensar meu ateísmo. Queria pelo menos poder fechar os olhos e crer em alguma coisa, sei lá, pedir pra alguém vestido de branco resolver as coisas por mim. Mas não, nem isso. Pelo menos o infeliz viscoso parecia menor do que ontem. Pelo menos ele não falava encostando, mas que diabos, apesar de redundância, o infeliz cuspia. Um perdigoto por vogal. As vezes a cada consoante. Cuspia como um ator em sua primeira fila. Como um cachorro secando seus pêlos. Fazer o que. Já passei por coisas piores. Pelo menos não me pedia dinheiro emprestado. Ficamos conversando até a noite cair. Depois de algumas garrafas de vinho cheguei até a achar o cara legal. Não podia ser diferente. Impossível não cair nessa armadilha. Aquele troço tinha saído de mim. Talvez fosse meu lado punk. Meu lado mais primata, mais inadestrável. Suas palavras eram objetivas, sagazes, de uma personalidade dilacerante. Acordei no meio da madrugada, dentes roxos, mesma roupa de dois dias atrás, o catarro esparramado no corredor. Cheguei a confundi-lo com minha bile, mas o danado respirava: estava dormindo. Abri uma cerveja e me dei conta que tinha furado com Cíntia. No celular, três ligações perdidas. Orgulhosa, jamais ligaria trezentas vezes. Gosto de mulheres assim. Mas ela não gostaria de saber que furei porque fiquei bebâdo conversando com meu próprio catarro. Fazendo a barba com um cuidado adolescente, inventei umas cinco desculpas diferentes pra não ter atendido suas ligações. Mas já sabia: ela não acreditaria em nenhuma delas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Duas ou três poesias e o vento

E bate a mesma sensação de tempo perdido. Macaco velho, fico dando voltas dentro de minha própria cabeça. Recuperando arquivos. Checando novas possibilidades para buscar algum sentido em todo esse nosso fracasso. Até derramar tudo. Até me sentir vazio. Aí bate a onda. Porque é estranho não me sentir leve desse jeito. Tá foda não admitir que tô feliz. Já não me assusto ao perceber as risadas que andam freqüentando a rádio do meu peito. Não tô mais pagando jabá pra entrar nessa vibe. Bate até uma pena por esquecer você tão rápido, mas esse papo de sofrer por sofrer ficou perdido entre os meus vinte e poucos anos. A boa do dia? Já não quero mais te mandar pro inferno. Porque minhas manhãs agora têm outros cheiros, outros ventos, outros planos. Tô legal de motivos. Deixo você colecionar sozinha todos os que te fizeram sentir raiva de mim. Se já não tenho a menor pretensão de achar que vou fazer falta na sua vida, é porque cansei de abdicar da minha.

. . .

Lindo, ela diz. A preguiça de falar me reduz a um aceno, contraindo meu rosto até formar uma espécie de agradecimento com minhas expressões. Mas acabo sussurrando algo. Digo que ainda o acho meio frágil. Que preciso pedalar um ou outro tom nesse novo texto. Ela caga um balde pra isso e pula em cima de mim. Começamos a nos beijar. Deixo meu caderno deslizar e cair como se naquele momento reduzisse nosso compromisso ao nada. O vento levanta duas ou três poesias inacabadas que, sortudas, testemunham um casal com vontade quase literal de se comer.