quinta-feira, 8 de junho de 2006

O homem de gesso

Limpou o cofre e saiu. Ainda deu tempo de benzer-se em frente ao santo iluminado por velas que se mantinha quieto nos fundos do quintal. Se lhe perguntassem o nome do homem representado em gesso, canonizado ali, não saberia responder. Na verdade poucos eram os motivos que o faziam abrir a boca. Eram tempos difíceis, apesar da irônica fartura. Mas valia uma bela idéia executada do que palavras jogadas fora em prol de um inclinamento qualquer.
Lá fora o carro já esperava ligado. Era perceptível uma certa nostalgia old school aparente no ar, com clarity of mind convenientemente rolando. Nem a música nem o velho motor do volkswagen foram páreo para o sono de Cida. Dormia como uma santa escondida além das cortinas de renda da janela do quarto que iam agora ficando pra trás junto com a poeira que o veículo levantava, já longe na esquina. Se ela quisesse pôr em prática seu sonho de abandonar tudo e ir para um sítio viver na paz que imaginava fazerem valer os magníficos primeiros raios de sol que descrevia nas alvoradas lisérgicas orquestradas em seu ideal de vida hippie, seria esse o momento. Pelo menos a hora que acordasse e se percebesse só novamente. Seria ela e sua rebeldia. Talvez voltasse para a casa dos pais, talvez enlouquece-se.
Aquele dinheiro recolhido em recente ação traria uma tranqüilidade financeira proporcional ao inferno astral que a exposição da mídia no roubo daquele movimento declaradamente apolítico, despertara. Por meio de conexões escusas e sacrificando grande parte do valor conquistado, passara um bom tempo na Nova Zelândia. Lá, trabalhara na colheita de morangos, mas há seis meses vivia na África do Sul. Tudo agora parecia fazer parte do passado: Cida e aquelas ruas do subúrbio, o Brasil, a antiga prancha cheia de tecos e morsas, seus sonhos. Talvez apenas alguns poucos motivos que despertassem adrenalina suficiente ainda faziam valer a pena o esforço daquela bombação de sangue ininterrupta em seu peito. Pra quê gastar tanta energia pra estar vivo sem viver de verdade, era um clássico clichê naquela sua cabeça cheia de romantismo barato e dreadlocks sebentos.
Saltar daquele pico de mais de 200 metros de altura instigava-o. A tal ponte de Bloukrans era conhecida pelo porte do maior Bungee Jump que tivera notícia. Agora estava ali naquela tarde de vento frio. Em pé olhando aquela imensidão da foz das águas do Storms, lembrou do tal santo que abandonara no Rio. Na verdade não conseguia ver tanta radicalidade num salto onde o corpo mantinha-se preso por alguns elásticos comprimidos. Pensou por um instante em saltar sem nada e censurou-se com uma risada seca. Pareceu uma bela resposta à sua insensatez. Já devidamente equipado benzeu-se, repetindo um gesto recorrente, o tal sinal da cruz que representou seu rompimento com o mundo, sua fuga de tudo. Saltou ainda sem saber ou sequer lembrar o nome da figura católica representada naquele relicário suburbano. Jamais saberia.
Até hoje é visto concentrado antes dos momentos de aparente tensão. Parece lembrar daquele tal santo de gesso sempre. Já Cida, nunca mais flertou com seus pensamentos.

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Ode ao ébrio

Dobro a esquina e entro em mais um dos bares de minha vida. Sento num balcão frio que pede a temperatura alta da dose que o barman traz até minhas pálidas mãos. Esse lance de ficar me perguntando os porquês soa como um clichê insuportável que gruda em meus ouvidos virando uma sentença, como a música pop que uma universitária animada escolhe na jukebox à minha frente. São melodias que tocam minhas espinhas fazendo-me perder o ar a cada vil tentativa de entender o imponderável.
Amável, desce pegando fogo a bebida que enche meu corpo de sabor. Mas procuro cor. Persigo seu cheiro em cada pescoço que desenho em
minhas investidas fúteis ladeira abaixo nestas noites frias de estrelas lindas. Astros que me deixam pregados no rastro do lastro de tudo que perdi esperando essas luzinhas que vejo lá nos céus, mas antes encontrava em cada piscada desse seu olhar sem compromisso. Olho pra rua e vejo uma janela que soa como um relicário iluminado onde tudo que sua moldura abençoa e abriga, são pecadores que se doam ao prazer de afundar cada vez mais em toda armadilha apresentada pelas circunstancias naturais dos acontecimentos.
Percebo não querer o que é me dado de forma gratuita e bela. Sinto-me maldito por isso. Sinto-me maldito por usurpar toda docilidade que me presenteiam. Quero a salivação da adrenalina. Quero o sofrimento da conquista. Mas quero só para mim. De súbito sinto raiva da corja de poetas e escritores que ousam passar pro papel a mediocridade de suas fantasiosas histórias meramente autobiográficas de amor. Sinto nojo da atemporal sensibilidade aflorada que brota na sublime felicidade azul do beijo da bela namorada. Prefiro minhas putas. Quero elas. As desejo e vejo vida em suas trapaças e malícias. Pago uma cerveja para a moça ao meu lado e tento colocar novamente em ordem meus pensamentos tão em frangalhos, tão confusos. Tão largados a própria sorte. Na verdade não quero conversa, só quero ouvir minha voz ecoar na sala escura iluminada pela minha consciência impura. Quero suas pernas me envolvendo numa ação que ultrapassa o mero toque físico. Quero uma sensação que nem sei se estou pronto para experimentar. Quero sua mão, juro que quero. Mas sou das putas. Sempre fui. Sou do pior tipo, afinal carrego a natureza assassina dos órfãos, mas possuo o carisma letrado dos canalhas que conseguem com algum sucesso manipular e expressar emoções. Mereço a cadeia, mas antes preciso de amor. As grades da solidão teimam em não me segurar. Cada vez que me vejo só estou rodeado de sorrisos, do barulho oco dos passos de dança, da fumaça dos cigarros, do choro dos aflitos, da supertição dos tolos e da excentricidade dos príncipes. Quero fugir de tudo isso, mas a covardia não se mistura comigo e por isso corro com todo vigor de encontro a ela. Corro quase como um abrigo. Quase como aquela sensação da sua cabeça ancorada em meu ombro, em meu peito falho.

Com gargalhadas, limpo todo resquício de racionalidade e preparo-me para o chão. Sou do chão. Sou dos bares. Sou das putas. Sou um coveiro a caça de novas almas cansadas. Quero sempre mais e luto pela simplicidade que tudo isso precisa carregar pra soar genuíno. Suas respostas vazias eu coleciono. Suas táticas infantis eu abandono. Quero a morte, pois para alcança-la é preciso viver de modo tão alucinado, é preciso afogar-se em tamanho descaso com o raso bocado, que seria impossível descrever para você.