quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Clara

Leve era sua vida. Clara era seu nome. Andava saltitando pela calçada recheada de pedras portuguesas com o vigor e toda alegria que uma criança despreocupada pode ter. Escrevia poemas inocentes em papéis de carta coloridos e trocava no recreio com amigas. Trocava pulseiras, figurinhas, adesivos e tudo aquilo que era grande por trás de uma futilidade sadia e colorida. Seu cabelo escorrido voava e bagunçava ao sabor do vento e da velocidade que suas pernas finas impunham ao chão. Tinha quatro cachorros vira-latas que tratava com o pedigree de quem ama bichos do fundo do coração. Já seu coração, esse tinha dono, e era do menino mais bonito da escola.
Gostava de ouvir histórias, escrever na agenda e dançar música alta no quarto. Disso sua mãe não gostava muito, mas ai de quem quisesse discutir com a energia que emanava de seu pequeno peito de criança metida a crescida. Tinha duas botas, uma preta e outra rosa, que adorava “de paixão”. Tinha um cordão de ouro que portava com orgulho, carregando uma cruz como todo bom cristão. Ria um riso gostoso vendo filmes de comédia e comendo pipoca com coca-cola nas tardes longas dos dias que sobravam após aprontar o dever de casa. Namorava pela vitrine o papagaio branco de uma espécie esquisita e diferente na lojinha de filhotes da outra rua. Queria tê-lo. Sonhava alto como toda criança sonha, falava alto como toda criança fala. Fazia besteiras. Gostava de empurrar pneu junto com os meninos no pátio da escola. Gostava de bala de frutas e chiclete de bola. De sanduíche de presunto e do pastel de queijo da padaria do Seu Luís. Gostava de velhinhos e tinha saudade de seu avô, aquele que batia com a cabeça no teto de tão alto. Tinha tantos vestidos que não saberia contar, mas gostava mais de um de flores estampadas. Chegava da escola com a mãe, mas esperava ela se pesar na balança da farmácia. Já pequena, pesava-se junto, com o rosto sujo das estripulias do dia na sala de aula. Mas ainda sim era leve. Leve era sua vida. Clara era seu nome.

sábado, 17 de dezembro de 2005

A covardia

Usava aquela mesa feita em jacarandá sempre que escrevia algo bonito pra ela. Nessas horas sentava-se na cadeira velha de madeira e deixava o sol entrar batendo em seu rosto. Abria bem a janela e a cortina de palha. Depois colocava a poesia presa junto à porta, para encontrá-la ao chegar.
Aquele clima da praia multiplicava em seu astral toda miríade de significados que traduziam o sentimento que emanava em seu ser. Sua caneta de estimação amaciava os dedos grossos e afiados, em cumplicidade, transcrevendo ao papel sentimentos tão livres que pareceria difícil imaginar um dia terem pertencido somente a ele ou que sequer houvessem tido dono. Seu tradicional suco de limão com rum descansava dentro de um copo suando de gelado, formando mais uma mancha quase redonda na tábua da mesa, que observava quietinha sua inspiração brotar em forma de palavras variadas. Mas de vez em quando aconteciam uns barulhinhos permitidos, liberados pelos rangidos oriundos do gelo de seu copo, que teimavam em voltar lentamente ao estado líquido, imersos na temperatura quente que só um recinto inundado de paixão como aquele poderia ter.
Sua mão amarelada de fumo lhe fazia bem. O mar e seu balanço, lhe faziam bem. A areia em seus pés santos, lhe faziam bem. Tudo ali parecia compactuar quase como um balé orquestrado para que cada novo dia fosse um capítulo feliz dentro de um sonho que quiçá algum poeta um dia pudesse ter escrito ao demonstrar tanta beleza utópica num pobre pedaço de papel branco.

Mas assim tão de repente, sem nexo, tão sem razão aparente. Ele morreu. Simplesmente morreu. Caiu e morreu. De uma forma que soaria estúpida, até mesmo banal. Seu coração, tão mal-acostumado, acabou traindo-o. Seu corpo cooperou com desgosto e deixou-se levar pela natureza física da matéria, derramando-se à frente da mesa que sempre gostou de sentar-se ao escrever coisas bonitas pra ela. Daria pra dizer que o suco de limão foi ficando azedo bem mais rápido que o normal a partir dali. Impossível seria não perceber que até a fruta ácida predileta sabia o que estava acontecendo.
A protagonista involuntária de toda aquela inspiração lírica, sua Maria, chegaria só no final de tarde. Já escuro seria. Nem a claridade traria conforto, faria companhia, incapaz de presenciar tamanha tristeza. Uma noite eterna e sem estrelas no céu estava pra começar naquela praia maldita . O dia em que até o sol tornar-se-ia um covarde.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

Black

Olhava sua mochila e ela só conseguia representar a vontade de ir pra outro lugar. Queria sair de casa. Ela já tinha saído há muito. Na verdade ela nunca morara ali. Viveram muitos momentos nesse espaço constituído de cama, som e sonhos perdidos. Sonhos que voavam pela janela a esmo.
Perguntava-se pra quê sonhar se ela não mais poderia compartilhar deles. Perguntava tantas coisas. Suas perguntas, que antes eram carregadas de respostas plausíveis, agora se perdiam entre as folhas secas de um vento de outono frio. Suas lágrimas desciam não como um choro forte, mas como um sopro de morte. Suas noites eram muito mais pretas. Sua tatuagem não brilhava mais e suas calças viviam sujas. Pra quê lavar os jeans? Pra quê sorrir?
Saber que ela não seria mais sua, confortava sua garganta seca em cada gole desumano num copo de ilusão sincera. Seus amigos significavam tanto que tinha medo de cair num abismo imensurável se apenas perdesse-os de vista. Tudo isso embalado dentro de uma caixa de presente fechada, lacrada, com um laço indefectível e vivo. Escondida dentro de um ambiente úmido com chão de tábuas de madeira corrida podre, no sótão de uma casa perdida numa cidade qualquer abandonada entre a serra e o mar. Com o cheiro da maresia das viagens que fizera com ela pra praia. Com o frescor gelado do clima das trips feitas pro mato e montanha. Apenas resquícios vivos de memória apagada. Antiguidades que acabavam de serem lançadas. Pedras cheias de limo. Duras, impenetráveis.
Até a porra da mochila o fazia lembrá-la. Mesmo multidões não o faziam esquecê-la. Sentar pra ouvir a música parecia ser o mesmo que jogar um jogo, sabendo-se e sentindo-se o perdedor desde o início. Era tudo assim. Tudo triste. Tudo cinza. Um leite sem açúcar. Um café aguado. Alguns carros virados numa calçada em plena contra-mão. Meia dúzia de beijos roubados com luzes piscando num teto vermelho. Uma dezena de noites mal dormidas com direito a olhadas pro espelho. Algum sexo sem amor, sem pudor, com direito a poesia feita sem dor.
Tudo sem vontade e trazendo umas empolgações magníficas, carregadas da obviedade de serem falsas. Flanelas em tecidos xadrez guardadas numa lembrança de infância. Até fatos vividos antes de conhecê-la permitiam inclusões apenas pra se sentir falta. Estava em todos os lugares e mesmo assim em lugar algum. Ela não representava a solidão. Representava o papo chato de início de relacionamento novo. Representava a falta de vontade de fazer cafuné nas outras. Representava a falta de coragem de perceber que dali em diante nada seria mais igual. Representava saber que seria feliz com outra pessoa, seja lá o que diabos ser feliz significasse aquela altura. Significava clichês mórbidos, rasteiros e baratos. Significava não ter ninguém para ir a lugar algum. Significava mirar lá no alto pra não acertar ninguém. Significava a falta de assunto. O breu soturno do lugarejo mais profundo. O nada. A certeza do futuro sem promessa de mudança. A certeza que a vida sem ela não valia de nada. Tudo preto. Tudo cinza. De mãos dadas e sorrindo. Num parque. Numa praia. Num verão. Num reveillon. Num céu azul. Pintado a mão. Como os quadros infantis dela. Como seu sorriso que o fez parar de sorrir. Como quarenta mil pessoas. E somente duas juntas em pensamento.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Um serviço para Gonzo

Junto com o gole desceu uma parte de todo rancor distribuído, somado ao líquido destilado. Sentado ali naquele bar no meio do deserto mexicano, seu único companheiro fiel era o sol. Mesmo assim era só até a noite, o que provava que o companheirismo estava completamente fora de moda. O sal e o limão faziam com certa passividade seu papel naquele lenga-lenga que antecedia e precedia mais uma dose de tequila.
Quase como um clichê estampado em néon em seus pensamentos escaldados e paranóicos, uma bela mexicana com um par de coxas que intimidavam qualquer um naquele recinto adornado em reboco sentou-se ao seu lado com um sorriso sincero brotando de sua falsa existência. Ela trazia um bilhete de Gonzo. Antes quisesse passar a noite ao seu lado, pensou. Passou a mão na barba por fazer a dias e, olhando para sua cintura fina que apontava para uma bunda arredondada e fascinante, observou-a retirando-se. Com suas mãos sujas que culminavam em unhas também sujas, abriu o papel de gramatura grossa e aspecto velho, fazendo surgir para seus olhos a informação que não queria encontrar. Ia ter que fazer o serviço, mesmo tendo a pretensão de largar tudo depois da ocasião com o mariachi da aldeia que passara um longo período até cinco meses atrás.
Pediu uma última tequila, mas bebeu sem a viadagem do ritual de mistura cítrica e salgada. Deixou notas sujas em cima de um balcão poeirento, mas limpo, e saiu do bar com a cabeça erguida. Não devia nada a ninguém, a não ser um último acerto para Gonzo. Pensou em ir para o aeroporto e se mandar dali, mas logo viu que até os homens mais dignos como ele, às vezes eram assombrados por pensamentos covardes. Cuspiu no chão um catarro grosso, amarelo-esverdeado e viscoso, como a raiva que aquele sopro de covardia o fez sentir.
Antes de entrar no velho Dodge Monaco azul, olhou uma vez mais para a porta do bar por puro instinto e, pra sua surpresa, ela estava lá com suas rendas, cintura, bunda e todo o pacote de atrativos que o enlouquecera momentos antes. Olhava pra ele sorrindo e insinuava-se.
Recolocou a chave no bolso e passou a mão pela barba por fazer novamente. O sol nitidamente começava a querer abandoná-lo. Andando em cima do próprio rastro de suas pegadas marcadas no chão de areia e terra batida, encaminhou-se até ela. A noite seria quente, como tudo ali. O serviço para Gonzo seria feito com esmero, mas apenas na manhã seguinte.

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Aquela pia de hotel

Gostava de comê-la na pia do hotel. Nunca gostei de cama na verdade. Camas são muito tradicionais. Não que eu seja arrojado demais, na maioria das vezes me sinto um velho. O problema é que fico com um tesão filha-da-puta quando a pego de jeito ali com minhas mãos cabeludas, cheias de calo e suas perninhas arqueadas. Abertas com o joelhinho de lado sobre a bancada de mármore, com o rabo gostoso apontando pro teto. Boto até uma toalha pra não ficar dolorida ou com a perna marcadinha. E depois tome língua. Depois não. Antes. Pra deixá-la doida. Eita mulher. Uma puta mulher. Tava pra achar uma dessas em minhas andanças erradas procurando o caminho certo.
-Já vai trabalhar?
-Lógico, não sou que nem você: Um filha da puta imprestável e vagabundo.
Nossos diálogos eram poesia pura. Eles só faziam aumentar em minha cabeça o tesão e admiração por aquela morena carnuda.
-Traga malte pra mim, sua putinha, passa no mercado. Minhas garrafas acabaram.
-Tá, mas minha vontade era fazer que nem a mulher do Jobin naquela merda daquele filme sensívelzinho de viado que tu me levou pra ver ontem.
Ela era muito racional. Mas sua estranha racionalidade se baseava em ganhar dinheiro trabalhando como um merda proletariado, na recepção de um hospital, e fazer sexo. Gostava de comer besteiras também, mas a desgraçada ainda assim era magra de ruim. Eu a tinha levado pra ver o filme sobre Vinicius. Umas das melhores cenas era a de um depoimento de Jobin, ao lado de um Vinicius trêbado, onde contava amargurado e de forma sarcástica, o dia que uma vagabunda que ele comia (acho que a mulher dele na época) quebrou umas duas garrafas de malte dele na pia da cozinha. Resignado, ele dizia “tudo bem, mas vou ter que comprar outra né” ou algo assim. Bela cena. Caras reconhecidamente notáveis pelo lirismo poético em relação ao amor, zoando alcoolizados as próprias amantes. Viva a ironia. Respeito eles. Falavam de amor sem parecer um troço pedante. É bonita a obra construída pelos pudins de cachaça da antiga Montenegro. E o que é bonito passando verdade, fica pra sempre.
-Nem um boquetinho antes de ir?
Bam.
O barulho da porta encarregou-se de me dizer não. Tudo bem que era uma bela foda. Tudo bem que eu era um cara rude e cascudo, mas mesmo assim no fundo incomodava-me ser taxado de imprestável e vagabundo por ela toda hora.
Peguei minha mala de couro carcomida no armário e tirei um envelope com meus últimos reais da porra do adiantamento do último livro. Enrolei algumas notas, o suficiente pra puta ficar hospedada ali por mais uma semana e ainda poder comprar alguns proseccos, porra, ela se amarrava nessa merda com morango, e simplesmente saí. Fui procurar outro rumo. Ela que me achasse, ou melhor, tomara que não. Tinha que ligar pra editora. Tinha que ligar pro meu contador. Tinha que ligar pro jornal. Tinha que fazer tanta coisa que me deu vontade de entrar no Bar da porra da rodoviária imunda daquela merda de cidade meio praiana, meio provinciana, meio suburbana, muito no meio pro meu gosto objetivo e carregado de personalidade forte.
Pedi logo um malte e apoiei os cotovelos no balcão de madeira maciça e macia. Minha bolsa ficaria no chão sujo, entre meus pés imundos. Na terceira dose eu já estava pensando nela de novo. Em como eu gostava de comê-la naquela pia de hotel barato.

sábado, 19 de novembro de 2005

Dois corpos num sábado

Matar os próprios pais aquela altura não era mais tão importante quanto o fato de agora procurar uma maneira de sumir com os corpos. Durante todas as suas crises de raiva, onde especulava um dia matá-los, nunca imaginava que o ato em si seria concretizado tão facilmente e o pior mesmo só viria depois. Que matar uma pessoa não era algo corriqueiro ele tinha total noção. Era uma coisa até tão distante, carregando tamanha carga de impossibilidade, que ele nunca havia pensado seriamente em sobre como agir em relação aos corpos. Agora que estava em frente a dois cadáveres na cozinha de seu apartamento, não sabia se ligava pra polícia e se entregava, se esquartejava os corpos em pequenas partes e colocava-os no congelador, se partia eles em partes maiores e embrenhava-se numa alucinada viagem de desova bem longe dali ou se apenas fugia. Que dúvida insuportável. Nem o choque emocional de acabar com a existência de seus progenitores, fez sua cabeça sair do foco desse dilema.
Num gesto inusitado e repentino, pensou em alugar Pulp-Fiction de Tarantino. Sabia que no filme existia uma cena onde chamavam um cara pra ajudar a livrarem-se de um corpo indesejado. Disse calmamente um palavrão pra si mesmo. Ele não era da máfia ou de qualquer forma de organização ilícita pra ter um “cara” a chamar. Amaldiçoou os pais uma vez mais. Será que até na morte eles eram capazes de enlouquecê-lo e tornar sua vida mais difícil?
Como era sábado pela manhã e sua família possuía hábitos reclusos, acalmou-lhe o fato de achar que somente na alvorada de segunda-feira começariam a dar falta do Pai no trabalho. Sua mãe era dona de casa, talvez alguma amiga pudesse querer entrar em contato no final de semana, mas achou que o sumiço repentino dela não ia levantar tantas suspeitas como o não comparecimento do zeloso Pai no escritório de advocacia no início da semana.

Sua experiência com morte era tão nula e vazia, que não tinha sequer a noção de que horas o cheiro fétido dos corpos sem vida começaria a circular pelo ar. Calmamente resolveu abrir o armário, retirando a caixa de seu cereal predileto. Colocou-o sobre a mesa. Da geladeira trouxe o leite gelado. A cumbuca de vidro e a colher já estavam postas a mesa, sua mãe havia iniciado o protocolo do café da manhã momentos antes de ser atacada pelo filho único com o objeto cortante que agora repousava imóvel em seu pulmão esquerdo perfurado.
Desviou do corpo do Pai quase escorregando no líquido grosso, viscoso e vermelho que sua ferida expelia lentamente e sentou-se para saborear o gostoso e clássico preparo matinal. Ao levar a terceira colherada à boca, resolveu colocar mais açúcar de forma exagerada na cumbuca do cereal. Olhou pra mãe instintivamente como que esperando sua repreensão pelo ato nada saudável. Mas ali logo abaixo no chão de cerâmicas pretas e brancas, com nova tonalidade avermelhada recém-inclusa, fez que nem era com ela em toda indiferença de seu corpo morto e ainda nada rígido.

sábado, 5 de novembro de 2005

Surdez

Ela é surda. Não, ela não sofre de surdez não. Mas é surda. Uma preferência, fazer o que? Se sente melhor assim. Na verdade ela não é surda, surdinha também não. Ela escuta as coisas que lhe são convenientes. Aliás, gosta é de transformar as mensagens. Isso, transformar. Não? Não entendeu? Bom, sabe aquele brinquedo lego, de criança? Então. Mal e porcamente pode servir de exemplo. Aqueles trecos não montam e desmontam ao bel prazer da gurizada? Pois é. É mais ou menos por aí. Isso que ela faz com as mensagens. Isso o que faz com o que falam pra ela. Ela gosta até muito mais de exercer essas mexidinhas nas mensagens do que se fazer de surda. Desvirtuar o mundo em que vive é um prato cheio. Um entretenimento. Como se colocasse um tijolinho de cada vez no castelo de fantasia murado que constrói ao seu redor. Saca aqueles tempos feudais? Castelinho com fosso em volta? Portões de madeira grossa pra caramba, isso quando não de ferro, que desciam sustentados por correntes largas de dar inveja em qualquer cantor de hip hop americano de hoje em dia? Pois é. Isso. Mas a diferença é que os portões dela não descem. Sabe como é né? Portão aberto significava trânsito. Trânsito, informações indo e vindo. Nesse sentido, já que ela é quem manda na linguagem, não importa muito a tal troca de idéias. Que nem criança que inventa seu próprio jogo e vira juiz, presidente e diretor geral, mudando as regras no meio da partida. Acho até que tô dando muitos exemplos infantis pra demonstrar seu estilo né? Mas infância lembra criança, que lembra pureza, que lembra...bingo!..lembra I-N-G-E-N-U-I-D-A-D-E. Ingenuidade. Isso. Aliás, não. Isso não. Ingenuidade é uma coisa que ela não tem. Seria o antônimo disso. Ou tipo, imagine um ícone ilustrando o rosto dela, desenhado ao lado daquele símbolo matemático que significa igual carregado com um riscadinho no meio. Diferente. Sabe qual é? Ah...cê sabe, você não é assim tão ruim em matemática como eu. Sim, porque eu sou péssimo em matemática. Sou mesmo. A prova disso é ela! Ela, poxa. A prova disso é ela. Ela e todas as vezes que insisto em subtrair de minha cabeça que me enlouqueceu, fingindo que nada aconteceu. Ela e essa surdez que me irrita de uma maneira tão grande, que acabo assistindo aqueles filmes de serial killer sem nem dormir. Sim, porque quando eu era normal, via esses filmes e dormia sempre antes do fim. Acho esse tipo de filme uma merda. Agora não durmo mais. Parei de fechar os olhinhos, babar, essas coisas. E sabe porquê? Porquê agora me identifico com a raiva dos sádicos. Identifico-me com psicopatas. Pois é, antes não me interessava por achar pura besteira de um roteirista sem nada na cabeça que escrevia cada cena pensando em dar susto na platéia. Agora não. Chego a entender a raiva e a frieza dos caras sabe? Às vezes torço até pra eles escaparem no final. Mas aí também que se dane. Eles se fodem sempre. Se não também não rola né? Quem vai querer pagar ingresso pra ver bandido vencer. A não ser que seja um filme B europeu. Um do Meireles ou daquela bicha do Almodóvar, por exemplo. Um pervertido. Cê já viu os filmes do cara? Só tem coisa bizarra. A merda é que a bichinha consegue prender pela trama. Os filmes do cara tem trama. Trama. Trama. Trama, trama, trama...mmmm...você deve estar me achando um neurótico ou no mínimo um sexista né? Pois é. Ah! Sim! Claro! Silogismo puro. Como não pude lembrar! Woody porra. Woody, Woody Allen. Aquele magrelo judeuzinho que comeu a enteada, sei lá. Porra, o Woody. Esse cara sim. Esse é mestre de neurose. No hall da fama dos neuróticos ele é “o cara”. Na calçada da fama dos neuróticos ele deve ter a primeira marca das mãos lá e no lugar mais destacado. O Oscar dos neuróticos deve se chamar Woody. Até consigo imaginar um figurão da indústria dizendo no púlpito “and the Woody goes to”. Neurose. E falando em classificações, significados e coisas do tipo, essa palavra podia facilmente ser traduzida no dicionário como algo do tipo “efeito que algumas mulheres impõe aos homens”. Mas eu comecei isso tudo falando em surdez né? Pois é. Nossa. Como a cabeça devaneia às vezes. Tô com fome. Acho que vou fazer um sanduíche. Será que dá tempo? Ela sempre demora mil anos pra se arrumar mesmo.
Jorge largou o boneco de plástico do Batman, de seu filho, que ouvia pacientemente o monólogo de seu esquizofrênico discurso ao sofá e adentrou a cozinha pra preparar seu lanche. Ao abrir o armário e buscar um prato onde pretendia repousar o sanduíche que acabara de fazer, ela apareceu. Nervosa e finalmente arrumada, não descansou enquanto Jorge não desistiu do pedaço de pão com queijo, assediando-o a deixá-lo na pia. Saíram pra noite da ópera. Jorge odiava ópera desde a faculdade. Helena sabia disso, mas não se importava. Apesar de escutar, ela era surda.

terça-feira, 25 de outubro de 2005

O pedido


Tinha uma vitrola em casa. Cuidadosamente pegou o vinil preferido de Chet. Tirou o plástico bem devagar repousando a bolacha preta no aparelho. Em seguida transportou a agulha pra faixa predileta. Ao virar-se e olhá-la, a música suave no alto de toda sua desorganização já invadira o ambiente. A garota nua era belíssima. De uma beleza estonteante que o fazia relembrar sua adorável teoria da baixa porcentagem das pessoas mais bonitas quando sem roupa. Na sua concepção ela era um exemplo desses pequenos casos. Sua pele era macia só de olhar. Seu olhar, denso. Sua voz rouca, porém levemente infantil. Fitava-a apoiada na mesa de madeira escura, segurando de forma provocativa uma taça de vinho suja com marcas de batom, parecendo reivindicar uma suposta cumplicidade natural com as notas do trompetista californiano que surgiam das caixas de som.
O pôr do sol entrava tímida e estrategicamente pela janela aberta. As cortinas claras faziam surgir uma espécie de filtro alaranjado no quarto. A literatura amontoada em seus livros observava tranqüila o ritual entre dois apaixonados fúteis perdidos em toda imensidão frívola conseqüente de momentos como aquele. Ele pedira e fora para seu deleite, de súbito atendido. Ela literalmente dançava. Em verdade o único fato impedindo a moça de pele bronzeada e cabelos negros lisos de estar completamente nua eram suas meias brancas de algodão, que sujavam-se a cada novo passo dado sem censura, a cada nova volta de seu corpo bambo naqueles tacos de madeira clara e reluzente.
De dentro de um cinzeiro de porcelana um cigarro muito bem enrolado fazia surgir no cenário uma fumaça que movimentava-se de modo trôpego sempre para o alto, exalando um cheiro de cânhamo que misturava-se com os suores desprendidos e com o odor acre, mas simples, que imperava no quarto. Era um ambiente limpo de forma honesta com produtos concentrados de baixo custo, de tempos em tempos, por um jovem sem a menor pretensão de deixar o local em perfeito estado de disciplina e harmonia higiênica. Mas a harmonia ali era notada em outras pequenas coisas. Entre o pequeno tapete, a prateleira com outros discos, a mesa de jantar, a escrivaninha de estilo colonial, o pequeno lustre. Uma harmonia que se somava a tudo que acontecia naquele instante de forma bastante coerente. Se fosse palpável, apresentar-se-ia de maneira aveludada. Na cama dois corpos doavam-se indecentemente de forma aplicada, sem pressa. Como se fossem capazes de repetir aquela mesma cena perfeita quantas vezes fosse necessário em qualquer outro momento seguinte.
A vitrola pulando denunciava o término de um dos lados do disco. Pedia pra ser trocada, pra ser virada em seu corpo circular de forma até bastante segura e óbvia. Queria tocar mais para o casal. Seria até um prazer, se naquele fim de tarde esse não tivesse sido o único pedido negado sem a menor cerimônia.


Imagem: Chet Baker em Nova York por Herman Leonrad, em 56.

terça-feira, 18 de outubro de 2005

Nada especial


Deitado num gramado verde observava o horizonte. Passava o tempo divertindo-se entre as quase infinitas possibilidades de situações, objetos, plantas, montanhas e detalhes de tudo o que compunha a vastidão que seu olhar podia enquadrar dali. Usava uma camisa pólo branca com listras vermelhas, de algodão grosso. As lavagens acentuavam seu desgaste e tiravam um pouco da vida de sua vermelhidão outrora forte. No ombro e em parte da gola, alguns grãos de um final de caspa ainda insistiam em não se despedir por completo de seu cabelo, adormecendo quietos e agarrados ao tecido. Seus cabelos eram loiros acinzentados e meio anelados. Tinha a barba por fazer e algumas pequenas cicatrizes na face. Dividia com a observação daquele cenário, um recém inventado passatempo, no qual seu polegar abria e fechava uma caixa de fósforos. Não tinha tatuagem em sua pele branca e pálida, queria ter uma. Imaginava que tipo de desenho poderia fazer num espaço tão amplo, justamente por não ter feito nada ainda. Ria. De vez em quando olhava pra trás e via pequeno ao longe seu carro estacionado, um Chevy Malibu 66 de um vermelho vivo parecido com o de sua blusa quando nova.
Tinha que ter ido a faculdade aquela manhã. Tinha que ter feito tantas coisas. Fez pouco caso delas e emendou com uma careta. Ao fechar ligeiramente os olhos, dependendo da posição em relação ao sol, era possível um prisma de cores surgir como um caleidoscópio em sua visão. Algumas vezes ficava olhando diretamente para a luz branca e forte do astro rei. Após isso, cerrava a vista e observava uma série de cores surgindo no infinito preto que só um olho fechado após a exposição em luz forte pode ver. Levantava, andava. Andava sem rumo. Colhia flores pelo chão que nem desconfiava o nome pra logo em seguida jogá-las de volta à grama
. Colhia mato. Chutava pedras. Corria. Sentava novamente. Em certo momento encaminhou-se para o leito de um rio próximo dali.
Olhou novamente pra trás a procura do carro adormecido. Estava só e não parecia haver possibilidade de outra pessoa aparecer naquele lugar. Ao pensar isso, sentiu-se bem. Forçando a visão, podia enxergar gado ao longe. Tirando o tênis, molhou os pés na água fria. Buscou com a mão uma pedra quase perfeita de tão circular. Jogou-a no rio num puro reflexo instintivo. Ela quicou apenas duas vezes na superfície da água. Puxou do bolso de sua calça jeans um plástico contendo alguns papéis e documentos. Ficou olhando um a um com certo interesse aparente, mesmo sabendo exatamente o que havia ali naquele emaranhado de papéis. Olhou sua identidade e seus outros documentos com foto. Comparou suas imagens diferentes. Passou a mão num dos retratos sentindo a textura do papel fotográfico. Devolveu o plástico ao seu bolso com a ordem dos documentos e papéis invertida.
Olhou uma nuvem que impressionou pelo tamanho e pela definição aguçada de seus limites. Gastou um longo tempo observando uma árvore, mais precisamente a copa, do outro lado do rio. Sentiu uma formiga. Ficou passando ela de um braço para o outro várias vezes, sempre que a veloz caminhada do inseto buscava um limite inexistente. Ao cansar do inútil divertimento espanou fortemente o membro. Não foi possível então, saber qual rumo o pequenino ser tomou na vastidão de ar que a pressão transportou-o nesse momento. Calçou seu tênis. Ao respirar fundo, olhou uma vez mais para o local em que estacionara o carro. Andava devagar. Aos poucos o rio ia ficando menor e o seu carro maior, processo que denunciava sua partida. Entrando no Chevy, arrumou o retrovisor lentamente. O silêncio ouviu o barulho das pedrinhas remexidas pelo pneu tomarem grande proporção. O motor do veículo, apresentou graves ruídos com orgulho na imensidão que não o julgava. Abriu o porta-luva, alcançou e colocou a fita do Sigur Rós pra tocar. Aumentou de forma significativa o volume do rádio e seguiu pela estrada que levava de volta ao centro. Se perguntassem o que fora fazer ali ou o que pensara naquele tempo todo passado no leito de um rio às margens da cidade, não saberia responder. Não estava pensando nada em especial aquela manhã.


Imagem: Capa de Ágætis Byrjun, álbum da banda Sigur Rós. Divulgação.

terça-feira, 11 de outubro de 2005

Ensaio sobre a felicidade

Annie era uma das muitas belas garotas que chegaram em Los Angeles atraídas pela inocente vontade de fazer fama no cinema. Garçonete há oito anos num bar mal freqüentado anexo a um posto de gasolina, mesmo tendo desistido do seu sonho, ainda amava ver filmes. Nas suas folgas costumava alugar Dvd’s e ficar noites inteiras tentando adivinhar o final das histórias que começavam obedecendo ao play executado pelo seu dedo indicador. Era bonita apesar de já não ser uma garotinha. Suas feições haviam hipnotizado um barbudo meio ruivo de camisa quadriculada que sempre escolhia a mesma mesa próxima a janela, mas ela nem desconfiava disso.
Ed era como costumavam chamá-lo. Já tinha feito de tudo um pouco nessa vida. Hoje em dia, sua maior felicidade era ir pra aquele bar, pedir panquecas com molho e observar a chegada de Annie com seu prato, aproximando-se pra servi-lo. Fazia algum tempo que ele não bebia. Não tinha a menor noção de quem fora Bukowski, mas fatalmente poderia ter sido um de seus personagens no passado. Ex-alcoólatra e viciado em heroína, participava de um programa do governo para desintoxicação tomando doses de Metadona. Estava indo bem. O cara sabia ser disciplinado quando via função lógica na coisa. Naquele ambiente esfumaçado com mesas de sinuca mal iluminadas e um banheiro no sub-solo, daqueles que na ida, da porta se via uma escada descendo toda vida, Ed sentia-se bem.

Não lembrava de ter sido fisgado por um sentimento tão forte como aquele antes. Mas também era difícil vê-lo sóbrio pra poder construir as diversas nuances que um grande amor necessita pra se deixar estruturar por completo. Apesar de Annie não desconfiar do nobre sentimento daquele viciado em recuperação, conseguia enxergar por dentro de seus olhos azuis uma coisa que não sabia explicar. Uma pureza que só era capaz de ver no olhar de seu filho de cinco anos que morava com seus pais a um dia de viajem dali, fruto de um antigo romance tão errado que só poderia ter terminado errado também.
Já era madrugada de um meio de semana quando um dos vários freqüentadores beberrões do lugar passou a mão acintosamente nas coxas de Annie, aproveitando-se da entrega de um pedido. Ela costumava resignar-se quando isso acontecia. Só arrumava confusão quando a machucavam ou achava que a falta de respeito tinha chamado a atenção de muita gente. Se ninguém tivesse visto, não valia a pena armar um barraco por nada. Como tinha virado uma figura constante no bar desde que seu coração ordenara sua presença por lá, Ed assistia aquilo tudo com uma dor dentro do peito que se tivesse coloração certamente apresentaria um tingimento preto. Além do programa de desintoxicação, ele estava em condicional. Sabia que não podia meter-se em confusão se não ganharia uma passagem grátis de volta a cadeia estadual. Mas que era duríssimo perceber e presenciar aquilo, era. Na verdade tudo ali dentro era meio estranho. Ficar sóbrio num bar como aquele madrugada adentro era uma certeza de risos e choros internos intensos. Eram cenas e conversas bizarras, dramas, reuniões para negócios ilícitos, desrespeitos, demonstrações de amizade vazias, risadas sem nexo. Tudo isso com o agravante tempero de ser presenciado com aquela capacidade de observação aguçada em detalhes que só um corpo, agora saudável, conseguia acumular. Bom, nem tão limpo assim, pensaria Ed com seus botões e quadrados simétricos da camisa estilo country. Ainda fumava um maço por dia daquele cigarro de filtro amarelo com o cowboy que morreu de câncer impresso na caixa. E nem tão bizarro assim, concluiria fatalmente, por gostar daquele ambiente pesado apesar de tudo. Sua vida toda fora passada em lugares como aquele. O sujeito acabara conquistando certa afeição. Mas passando a vista pelo jornal despretensiosamente na sessão de turismo, concluia que certamente trocaria tudo aquilo por uma viagem até a Flórida com Annie. A Califórnia não era um lugar ruim e definitivamente tinha um clima até agradável, mas Miami era quente. Pelo menos era assim que as fotos mostrando aquela arquitetura Art Déco, com carrões conversíveis estacionados próximo a palmeiras e praias, o embutiam na cabeça.
Olhando pro relógio, viu que estava na sua hora e pagou com a generosa gorjeta de sempre. Annie, depois de equilibrar a louça na mão delicada, mas forte, direcionou o corpo pra perto de Ed numa atitude inédita e surpreendeu-o com um longo beijo no rosto seguido de um sorriso. Já no estacionamento manobrando o carro, a cara de bobo insistia em não abandonar a expressão do barbudo. Aquele foi o dia mais feliz de sua vida.

sábado, 8 de outubro de 2005

A Praia

A música vem de dentro da casa, cravada estrategicamente a poucos metros da água salgada. Os pés amaciam a areia fofa e fria, misturada com o mar num fim de tarde com ventos que se encarregam de levar a tristeza embora. Cada onda quebra emitindo sons que parecem ensaiados, tamanha a sintonia com o bongô que um rastafari fajuto toca de forma legítima. Abacaxi, vinho e atmosfera calorosa num fim de tarde de corações frios reunidos pela alegria e balanço flamejante de uma fogueira quente. Um cachorro brinca com um coco, puxa suas fibras e corre de lá pra cá. Oxalá a lua começa a nascer e algumas estrelas já reivindicam a atenção merecida, estão prostradas no céu há mais tempo. Cigarros rolam pra quem gosta de cigarros, bebidas descem pela garganta de quem tem sede, línguas se encontram num encontro que nem fora marcado, apenas acontece. Magia. Alegria que espanta o gelo. Gelo no copo. Copo na boca. Boca na boca. E o céu ali. Grande, infinito e vendo tudo aquilo quietinho. Do jeito que só ele sabe fazer. O verão acabara de chegar na praia de todos os nossos sonhos.

Dezembro de 2004 ®

terça-feira, 4 de outubro de 2005

Marcelinho

Se tivessem mini-câmeras presas à barriga, as imagens que os passarinhos que viviam saracoteando pelo meio das árvores do prédio de quatro andares na Urca fariam aparecer em uma tela de TV, seriam no mínimo interessantes. Esse era apenas um motivo, dos vários pensamentos, que faziam a irmã de Marcelinho achar que o único filho homem do mesmo pai e mesma mãe que ela, era meio maluco. Mas ele não tava nem aí pra isso. Se soubesse que ela pensava assim mesmo no alto de suas nove primaveras, acharia ser por causa daquele dia que prendeu um chiclete em seu cabelo minutos antes dos pais da melhor amiga chegarem pra levá-la na festa junina da escola.
Como gostava muito de se largar durante horas na poltrona de seis mil quatrocentos e cinqüenta e cinco reais da sala de som (que o pai havia comprado inicialmente escondendo o valor por causa da demora em cumprir a promessa de trocar o lava louças por um mais novo) e ficar assistindo filmes adultos antigos em preto e branco com um balde de pipoca doce no colo, Marcelinho de vez em quando aparecia no almoço com uma nova tirada excêntrica. Teve um domingo quando já era hora da sobremesa, que um amigo da família resolveu fazer aquela manjada perguntinha demonstrando a falsa curiosidade em relação à idade do interrogado, onde geralmente toda criança levanta instintivamente a mão e mostra os dedos feliz da vida. Mas ele não. O garoto não titubeou em responder aveludando a fina voz, com o beiço meio sujo de calda de chocolate, “Sete. Meu número da sorte...” da maneira mais en passant do mundo, quase como se fosse normal um moleque daquela idade se relacionar a fundo com as questões complexas do azar e da ventura no dia a dia.
Ele era assim.
Na verdade sorte pra ele era quando acordava num domingo em plenas férias com um baita sol no lado de fora e o pai disposto a levá-lo pra velejar. Colocava uma camisa branca de listras azuis igualzinha a do pai e ficava insistindo no caminho pra marina, até o motorista ceder e apertar o play para o velho Sinatra soltar a voz. Quando ficavam sabendo disso, algumas amigas da mãe de Marcelinho em fofoca cochichavam de forma pejorativa baixinho ao vê-la saindo da sala pra pegar mais um pedaço de bolo, que “esse menino é muito adulto pra idade dele”. Mas se algumas atitudes do moleque eram dignas de um anão e não de uma criança, outras faziam suas testemunhas ficarem de cabelos em pé com a infantilidade apresentada. Um dia quando tinha apenas quatro anos e sua avó o levara rapidinho no mercado da rua para acompanhá-la na busca de um tempero que faltara pra sua receita, cismou que queria um coelhinho vermelho de plástico cheio de bombons dentro. Era até bem barato, mas a velhinha não queria levar, pois era besta até o último fio de cabelo e só dava chocolate importado ou da Kopenhagen pro menino. Não é difícil imaginar que Marcelinho não tava nem aí pra isso. Vendo que não seria atendido, não pensou duas vezes: abraçou o coelhinho e correu dali o mais rápido que pôde até ser barrado quase na calçada por um segurança. Ao olhar pro simpático funcionário fardado, se o moleque tivesse uns anos a mais e barba na cara, não seria difícil imaginar ele lamentando inconsolável algo como “Ok, perdi. Mas eu só queria o coelhinho, caralho”. Não era esse o caso.

quarta-feira, 28 de setembro de 2005

Bloqueio criativo

Era um escritor angustiado. Nos últimos tempos evitava ao máximo sair de sua cobertura em Ipanema. Mais de uma vez por dia ficava acompanhando abismado seus e-mails e o volume de sua gorda conta corrente pela Internet. Parecia não conseguir digerir muito bem os acontecimentos recentes. Sua fiel escudeira Zazá, era uma governanta que de tão burra, mas tão burra, despertava nele uma admiração profunda. Ultimamente só confiava nela. Ele achava que as pessoas burras eram sacras, sofriam menos, mas não costumava ficar falando isso, pois era politicamente incorreto classificar alguém de burro. Sua angústia na verdade pairava sobre as últimas críticas e análise de seus livros. Apesar de tarimbado, já na casa dos cinqüenta e aclamado pelos leitores, preocupava-se com elas como um jovem poeta iniciante cheio de espinhas na cara. Andavam fazendo uma retrospectiva sobre suas cinco obras, fato que estava gerando-lhe uma enorme dor de cabeça. Seu trabalho estava em evidência na mídia, particularmente o último livro que estava na lista dos dez mais em primeiro lugar há três semanas, desde que fora lançado. Diziam que seu jeito de escrever denunciava aspectos de sua personalidade. Que um pouco do que ele abraçava em vida sob a ingerência de valores e crenças, era apresentado ali em seus personagens nas entrelinhas. Era quase como falar que suas obras eram diários com nome trocado. Na primeira vez que leu tal bobagem, lembrou de Ubaldo amaldiçoando a tal da perigosa “entrelinha” numa coluna recente de domingo e apenas riu. Mas riu um riso meio sem graça. Depois, aquilo começou a lhe incomodar. Em pouco tempo consumia-o. Apesar de ser um escritor de ficção com um texto de costumes tipicamente carioca, estava sendo editado em mais de quinze línguas. Quando lembrava disso, imaginava o mundo na figura de um psicanalista gigante olhando pra ele pequenininho, deitado num divã cheio de frio e com vergonha de levantar o dedo pedindo pra ir no banheiro. Nessas horas soltava um palavrão pra ele mesmo, como forma de iniciar um pensamento, e aí começava seu monólogo interior desesperado. Lembrar que seus últimos protagonistas de sucesso eram uma puta com mania de limpeza, um padre esquizofrênico e um ladrão que fazia tudo por sua mãe deixava-o ainda mais angustiado. Onde será que viam semelhança com ele? Será que se passasse pela Atlântica de madrugada na segunda marcha as prostitutas iam olhar de rabo de olho pra ele com admiração? Será que quando fosse comprar jornal um coroinha ia olhá-lo com reprovação e na saída da banca ainda pisaria no seu pé fingindo ser acidente? Será que os maconheiros do posto nove um belo dia apareceriam com seu último livro, abordando-o quando estivesse comprando um Sucolé do Claudinho de manga, pra pedir um autógrafo a pedidos do Dono do Morro do Vidigal? Nessa hora lembrou-se daqueles papos sob bloqueio criativo que vira e mexe eram assunto corrente nas mesas do café da livraria da esquina. Ele nunca havia sentido esse tal bloqueio, achava até coisa de escritor maricas. Mas agora, entre baforadas no charuto e a risada dos amigos, andava jurando pra qualquer um que dava tudo pra trocar o perrengue desses últimos dias pela tal merda do bloqueio criativo.

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Jazz

Itália. Havia deixado tudo pra trás. Havia deixado um amor. Alguns sonhos. Possibilidades. A bossa. A praia. O samba. Como ia deixando as ruas de pedra pra trás na descida de uma ladeira quase rosada, passando por belas construções coloridas num amanhecer de uma noite que não deveria ter terminado nunca. Talvez o sol nascendo naquela cidade praiana ao sul da terra de seu avô poderia conseguir uma permissão favorável no que dissesse respeito a invadir a noite, tamanha a beleza de sua incorporação ao ambiente. Era uma bagunça organizada, tamanha a quantidade de tons de cores, vermelhos, rosas, amarelos, laranjas. Aquelas tonalidades se mesclavam aos paralelepípedos, paredes, sacadas, as barracas de frutas sendo armadas e aos pescadores mais atrasados, que se encaminhavam para a praia e pareciam terminar de constituir um cenário que se assemelhava ao jazz. O jazz sim era uma bagunça organizada, pensava. Havia parado de escutar reggae por uns tempos. Estava se dedicando ao jazz. Cooljazz. Chet baker o fascinava. Já Bird, conseguia traduzir palavras impossíveis de sequer serem soletradas com seus solos. Não havia abandonado a música caribenha, nem havia parado de pensar em uma possível ida a Ibiza, ou quem sabe a Grécia. Essa dúvida o incomodava, mas não tanto quanto a noite que havia terminado e deixado em sua boca um gosto de novidade. Parecia haver tomado uma bebida nova preparada de maneira desconhecida. Tinha o gosto perigoso da liberdade. Esse gosto começava a fasciná-lo. Observou de forma incomum um cigarro apagado amassado ao chão. Parecia seu passado. As coisas pareciam acontecer de forma rápida. Ali, só o sol tinha permissão para nascer lentamente. Itália. Havia deixado tudo pra trás.

Dezembro de 2004 ®

segunda-feira, 26 de setembro de 2005

O outro lado do túnel

Paulo era um rapaz normal. Tímido, possuía o cacoete de ajeitar seus óculos na face rosada sempre quando escutava algo que o deixasse sem graça. Tinha aquele riso preso, contido, típico de quem procura ser discreto até nos momentos de exposição das emoções mais orgânicas. Não tinha muitos amigos. Mas isso não dava pra saber se era por escolha própria, por imposição da vida ou por não ter tido morada fixa até os quinze anos de idade mais ou menos. Seu pai era representante comercial de uma grande empresa multinacional. Em virtude disso já havia morado em cinco estados brasileiros diferentes. Inclusive quando queria chamar a atenção das pessoas, costumava dizer que esse fato dava a ele uma maior noção da diversidade cultural brasileira. No Rio, última morada fixa nesses vai e vens, assim que chegara à cidade era possível espiar pela porta do quarto e vê-lo treinando no espelho do armário antes de ir para uma festinha da escola, o tal comentário manjado da diversidade cultural.
Como não construía laços onde passava por sempre estar de passagem, acabou contraindo uma predisposição a leitura. Mas não lia de tudo não, na verdade não lia quase nada, gostava só de pulp ficcion vagabundos e das revistas de quadrinhos eróticos de Zéfiro. Essas sacanagens ilustradas que anos depois dos lançamentos originais, ganharam até um referencial cult, pra ele tiveram status de iniciação sexual. Além das que tivera acesso dos colegas da rua, conseguiu comprar três velhos exemplares num sebo de Belém, um mês antes de se mudar pro Recife. Em Pernambuco teve sua primeira experiência na cama. Por causa disso, o sotaque nordestino ficaria peculiarmente eternizado em sua cabeça com um quê de malicioso por todo o sempre. Personagens nordestinas de novela eram certeza de uma infinidade de punhetas por parte de Paulo.
Já no início da faculdade de economia, conseguira estágio numa empresa de consultoria do centro da cidade. No pouco tempo que estava lá, a firma, que passava por um processo de crescimento e expansão, fechou o escritório no velho prédio pra inaugurar um andar inteiro num moderno edifício comercial a algumas quadras dali. Nessa época ele estava namorando uma menina muito pudica do Grajaú. Tinha tirado sua virgindade no início do namoro, uns oito meses antes. Paulo, que morava no Flamengo, desde que chegara ao Rio só havia transado com garotas da Zona Norte. Até gostava das meninas da Zona Sul, mas achava que do outro lado do túnel as coisas eram mais quentes. A ironia era justamente Sandrinha, que mesmo oriunda das arborizadas ruas do bucólico Grajaú, chupava seu pau sem lá muito talento e negava-se a lhe dar a bundinha. Desconsiderando isso por achar ser fruto da inexperiência da morena de coxas grossas, dizia pra si mesmo que logo, logo, a colocaria nos eixos. Os meses foram passando e Paulo, que costumava ser fiel às namoradas, amargava o fracasso das tentativas de investida às intactas pregas de sua garota.
Um belo dia, repassando sua última tentativa da noite anterior e praticamente resignando-se em não comer uma bunda tão cedo, viu uma imagem divina ao abrirem-se as portas automáticas do moderno elevador do novo edifício comercial de seu estágio. Monique era uma ruivinha que jurava de pé junto e por todos os santos imagináveis não ter dado mole pra ele naquele primeiro dia de encontro ao acaso. Em pouco tempo estavam íntimos. Com a rotina ajustada pelos dois de maneira suíça pontualmente pra sempre poderem se encontrar nos horários de chegada, almoço e saída do trabalho, Monique não precisou impressionar somente pela sua beleza o tímido estagiário de economia: ela morava na Tijuca. Noiva, a safadinha tijucana estava pra casar, mas após três semanas de confidências mútuas sobre seus relacionamentos via internet, se viram na escada de serviço do edifício em pleno horário de almoço mútuo, numa troca de beijos e carícias que perigava fazer soar o moderno alarme de incêndio do prédio high tech. Era uma sexta feira e Paulo havia planejado uma viajem pra Búzios com Sandrinha, iriam partir depois do expediente. Monique estava naqueles dias, mas como a temperatura era vulcânica no antes glacial vão do décimo segundo andar, ofereceu de forma catedrática o orificiozinho que fazia parte dos sonhos mais adolescentes do futuro economista, arrebitando a linda bundinha de costas e segurando firme no corrimão das escadas.
Na manhã seguinte, já na praia, Sandrinha estranhava a sociabilidade de Paulo para com ela. Havia desistido do futebol com o sogro pra ficar embaixo da barraca e repetiu umas cinco vezes “eu te amo” até ela resolver parar de contar. Naquela faixa de areia e mar em Geribá, ele não era o mesmo homem do dia anterior. Havia finalmente comido um belo, quente e amistoso cu.

sexta-feira, 23 de setembro de 2005

Astro Rei

Fez-se abrir o sol na morada dos nossos pensamentos. A luz invadia a sala e estendia-se até o quarto. Na cama, dormia toda imperfeição de ideais que não celebravam a positividade. Ao lado, na cômoda, havia um relógio que despertava tocando reggae em manhãs como aquela. Em tempos de chuva não funcionava, deixava os sonhos tornarem-se a prioridade do dia amaciando a jornada com um leve e grave dub. Da porta do quarto, dava pra ver um pouco dos tênis escondidos por debaixo da fronha da cama, escorrida entre o hiato da armação de madeira e o chão. Surrados, eram responsáveis pelas caminhadas feitas para se distanciar de tudo aquilo que não fazia bem. Quando precisavam chegar perto das coisas boas, eles ajudavam na corrida. Da janela, desenrolando-se quase como um solo de sax num cooljazz, era possível ver desde toda a imensidão das vontades sadias às possibilidades das histórias mais vadias. Apoiar-se naquela moldura de madeira era ter a fundamental certeza e entendimento que não se pode ficar parado havendo tanto espaço. Tudo aquilo, até aquelas coisas inanimadas que se podia avistar bem ao longe, ganhava vida própria na imaginação do sopro rei. Mesmo sem aparentar o stress típico das grandes responsabilidades, sem aquela carga pesada de um blues que clama piedade, o astro divertia-se todas as manhãs adubando vida e sonhos por onde seus raios alcançassem. Fazia isso todo o dia há infinitas gerações. Era energia pura em constante movimento. Antídoto antimarasmo à prova do tempo.

Repaginada em antiga poesia original de 2004. Bartoli.® Todos os direitos reservados.

quinta-feira, 22 de setembro de 2005

O desperdício


Plantado no movimento desde as três da manhã, Catuli caprichava na coca pra dentro das narinas já feridas. Tinha que ficar alerta. Tinha que ficar acordado. Foi mantendo o respeito e demonstrando toda coragem, às vezes violenta e gratuita, que conseguira chegar a gerência do branco no morro. Ali ficava e seu medo delirante se juntava ao efeito eufórico da cocaína impedindo seus olhos de enxergarem o belíssimo nascer do sol que crescia no horizonte suburbano carioca cheio de casas e prédios como tapete. Ria sozinho um riso nervoso quando lembrava do sexo feito antes de pegar no movimento de madrugada, com Silvinha da Caxanga. Em sua cabeça apesar dela ser uma tremenda piranha, conseguiria transformá-la em princesa logo que pedisse sua mão em casamento e eles fugissem daquela loucura que tinha virado a favela de uns tempos pra cá. Somente com uma pistola 765 na mão, reclamava sempre que aquilo não era arma de bandido de verdade. Queria coisa mais potente. Durante esse pirracento debate bélico filosófico interior, nem sequer imaginava que tinham dado seu nome naquela madrugada.
Neto era seu maior inimigo da favela. Vivia brigando com ele desde os tempos de moleque, mas foi a bucetinha de Silvinha da Caxanga que fomentou a discórdia entre eles de vez. Sempre as mulheres. Sempre elas. Mas afinal, não tinha jeito, “Sujeito homem taí sujeito a essas desavenças mermo” dizia sem o menor remorso de trocar o s pelo r, nem repetir palavras na mesma frase. Se fosse um universitário interpelado, fatalmente questionaria sorrindo a premissa de quais eram as palavras que nunca haviam sido repetidas, num deboche renato-russensse típico de quem pensa rápido e talvez tenha tido boa base escolar. Mas Catuli era um bandido e estava alheio a questões do mundo acadêmico. Apenas se concentrava em manter a pistola numa mão e o saco com os papelotes do branco na outra. Havia deixado cair violentamente o Nextel da cintura durante uma das muitas sessões de pó que rolaram na fria madrugada. Ficou de avisar, dando a letra sobre a avaria no rádio transmissor somente quando fosse passar o plantão. Aquela noite parecia tranqüila e o dono do morro era um grande chegado, não ia bolar nem um pouco com o acontecido. Fatalmente eles iriam até fumar um baseadinho e escutar “Wish you were here” do Pink Floyd, bebendo café passado na hora e comendo pão-doce que algum moleque buscaria na padaria da ladeira. Com a cabeça no pão-doce, apesar de não estar com a mínima fome em virtude da quantidade abissal de cocaína consumida no plantão, sentiu a primeira espetada quente. Não sentiu dor nem nada, mas quando olhou pra sua barriga nua que tanto orgulhava ostentar na favela mesmo em noites frias, sangrando, desesperou-se. “Deram meu nome, maluco. Deram meu nome, maluco”.
Ele sabia que Neto estava preso desde a última semana. Havia rodado de bobeira na praia, durante um tumulto fora reconhecido por um PM. Teve azar, o problema nem era com ele. Mas Neto era um soldadinho de merda e com uma noite de cadeia havia aberto o bico contando tudo o que sabia e que não sabia. De Catuli então, deu todos os detalhes movido pelo recalque sentido em virtude do rancor marcado na história mútua deles com Silvinha da Caxanga. Chorando ao receber choques violentos no anus e nos testículos, gritava o nome da mãe e de Silvinha pra logo então ser ridicularizado na sessão de tortura a berros iguais, “Essa bucetinha deve ser boa mermo hein? Vai dar o endereço dela na favela também pros amigo aqui?”. Não foi difícil imaginar que a soma de um filha da puta xisnove mais um rádio transmissor quebrado traduziram a chegada de cinco policiais do batalhão de operações especiais, conhecido e temido na favela com a abreviatura de BOPE.
Com rostos protegidos por sinistras tocas-ninja e a aproximação sem alarde apropriada para disparos fatais, chegaram pra arregaçar. Nem em seus pesadelos mais terríveis Catuli pensaria um dia morrer sem nem trocar tiro. Revelando-se na verdade um merdinha iniciante, ao receber o segundo tiro só pensara em olhar a ferida, talvez em choque pela noção de ter sido surpreendido e pego tão de perto por aqueles homens de preto que utilizavam uma caveira como símbolo, surgidos do nada. Talvez incrédulo por não ter sido avisado pela salva de fogos de artifício. Abatido, mas com os belos olhos verdes bem abertos, só restou o gosto da pólvora nos lábios misturado à terra batida com a água preta do fino córrego de esgoto que recebeu sua boca e rosto bambo caído sem vida, como uma derradeira cama.
O magro e suado viciado que acabara de chegar no morro pela manhã pra comprar o primeiro papelote da alvorada, percebendo a movimentação estranha da polícia somente ali já tão próximo ao perigo, sentiu-se um tremendo vacilão e logo tentou disfarçar entrando e pedindo um café na birosca do pé do morro. Nesse momento desciam os participantes da operação trazendo com eles o troféu do dia: o corpo do gerente do branco.
Ao passarem pela porta do estabelecimento, o viciado olhou de soslaio fundo nos olhos abertos de um Catuli já morto carregado a caminho de ser jogado na viatura. Se soubesse a quantidade de pó que o bandido cheirara há pouco tempo atrás no plantão da noite, no mínimo teria ficado puto com o desperdício.

imagem: emblema.net/reportage_rochina.htm

quarta-feira, 21 de setembro de 2005

O PlayStation

Apesar de ser uma cidade do interior de Minas Gerais, quase todas as crianças da rua já estavam contaminadas pela febre que os aparelhos eletrônicos exerciam na molecada. Ficava muito difícil sucumbir ao apelo que os maravilhosos videogames cada vez mais modernos possuíam. Os jogos de futebol, antes peculiarmente isentos de times ou referências do Brasil, agora não se faziam de rogados em possuir times brasileiros e até os rostos dos jogadores da seleção eram desenhados à semelhança dos craques canarinho da Europa. Com a inauguração da montadora de automóveis francesa numa cidade próxima há quase dez anos, o nível de vida melhorara bastante naquela cidadezinha de menos de vinte mil habitantes. Com os empregos e salários que moviam a economia do local, era possível perceber a evolução e o progresso pelos cada vez menos raros carros novos, mais obras nas casas e badalada chegada da tevê a cabo, grande novidade pra muitos dali. As tardes, que antes eram sempre de rua cheia e pelada comendo solta até escurecer, agora pareciam reclamar da pouca presença da garotada do bairro. Até as meninas, que demoraram um pouco mais para ceder, ostentando suas bonecas e armando a cozinha de suas imaginações próxima ao meio fio da rua por muito mais tempo, haviam agora se rendido aos prazeres eletrônicos.
Seu Juca, o médico da cidade, conhecido por suas idéias que varavam lá na frente, andava resmungando que os pirralhos estavam engordando. Ele era orgulhosamente formado há quarenta anos pela universidade federal da capital do estado. Contava sempre para quem quisesse ouvir, as aventuras que passou pra conseguir se manter em Belo Horizonte na época dos estudos até se formar com louvor. Fora o primeiro cidadão da cidade a se formar e era motivo de orgulho não só pra família, mas pra todos os conterrâneos. Além de médico, era conhecido por seu hobby na marcenaria. Desde que aprendera com seu velho “pai-que-deus-o-tenha”, se apaixonara pelo ofício juntamente a medicina. Nos dias que o consultório ficava parado, quase as moscas, Seu Juca ia pros fundos da casa e divertia-se fazendo cadeiras, consertando relógios antigos e criando brinquedos.
Seu neto era um dos poucos que não era completamente afetado pela febre de PlayStation que pairava na geração infantil do lugar. Mas o neto também dava suas escapadinhas pra casa dos amigos e participava sempre dos grandes campeonatos de futebol no tal videogame. Campeonatos estes que agora eram muito mais numerosos que os que Manéu da padaria realizava de futebol de botão. O próprio neto de Seu Juca reclamava sempre quando o avô levava-o pra tomar picolé nos fins de tarde. “Manéu, quando vai ter campeonato?”. E o padeiro, com sua voz rouca e cheia do sotaque além-mar, respondia sempre que “em breve meu rapaz. Em breve”. Com o carrinho de madeira de rodas que mexiam de verdade, o moleque ia arrastando o brinquedo e percorria todo o balcão da enorme padaria com Seu Juca segurando-o pela barriga. Depois, o avô mandava o moleque ir escolher a marca da gelada gostosura no freezer, próximo a porta do lugar. Nessas horas, era comum o velho doutor se gabar baixinho para o português dono que seus brinquedos de madeira fascinavam muito mais o neto do que a bugiganga eletrônica que dominava a faixa etária de dígito único na cidade. O bigode de seu Manéu até via sua boca concordar em cumplicidade, mas mesmo o pôrtuga sabia que aquela era uma batalha perdida. “Já era, o PlayStation venceu”, pensava quietinho empacotando seus biscoitos de polvilho com a caneta presa na orelha.

terça-feira, 20 de setembro de 2005

O apartamento do Catete

"Tô cansado de ver você se diminuir na minha presença. Cansado de ouvir você debochar da minha suposta inteligência. Já te falei, se eu fosse mesmo inteligente já tinha largado há muito tempo aquele empreguinho de merda que me consome há quase cinco anos. Se eu fosse inteligente não andaria a pé pra lá e pra cá ou engordando a conta bancária dos taxistas mesmo nos dias que nem bebo na hora de voltar pra casa. Mas você insiste em se diminuir com esse seu processo louco de baixa estima que fica sugando toda a minha energia. Se ao menos ainda fôssemos casados, mas nem isso. E já se vão alguns verões até. Porra o que você quer de mim? Minha alma? Não bastou ter me deixado na merda como você me deixou na época que me chutou? Logo você que nunca imaginou terminar comigo. Logo você, com essa vulnerabilidade irritante e esses olhinhos gigantes que quando focalizavam os meus, me detonavam, conseguindo tudo. Porque? Acabou porra. Me esquece. Vai pra noite com suas amigas mal-amadas e fique com meia dúzia de saradinhos metidos a galã. Vai pra Salvador. Não é isso que você sempre quis? Eu queria ir pra Salvador por causa do Pelourinho. Eu queria ir pra Salvador pra chafurdar na história que exala em cada beco da cidade. E queria sim, queria ir para o Camaleão, mas nem lá você deixaria eu cheirar meu lança em paz. E quando eu começasse a mostrar interesse na cultura do local, você ia me chamar de filósofo de merda. Depois ia pela milésima vez se diminuir. Falar que eu não gostava do seu papo, que eu tinha que achar alguma mulher capaz de conversar sobre qualquer assunto comigo. Ia falar que eu era o sabe-tudo. E eu mais uma vez ia ficar puto e imaginar que merda de cara tão inteligente assim eu seria pra ter trinta e poucos anos e ainda sequer ter comprado meu apartamento."
Escutou um barulho na porta. Parou de escrever a carta e foi até lá, lutando contra uma câimbra na perna. Era Cíntia, sua nova namorada que resolvera mudar-se há pouco pro apartamento alugado por Celso no Catete depois de seis meses de um tórrido relacionamento movido a sexo, livros, drogas e Dvd’s. Diretora de cinema e filmes publicitários, patricinha metida a riponga que só, já estava começando a irritar o antes solitário locatário com seus objetos de decoração trazidos a cada novo dia.

Ao voltar pra escrivaninha, com a perna agora formigando, amassou a carta e jogou no lixo. Mais uma vez desistiria de enviar o desabafo escrito pra sua ex-mulher, de quem já era separado há quatro anos. Por falta de um lugar melhor, ali em cima mesmo do caderno agora fechado, preparou duas longas fileiras de cocaína quase pura, pois “pó muito puro é igual a pó muito misturado, um veneno”, costumava repetir sempre.
Ela tinha trazido na bolsa um filme do Almodóvar, um livro de Lolita Pille, 5 gramas de pó e um porta chaves de gosto extremamente duvidoso adquirido numa feirinha de rua próxima dali. Seria mais uma noite alucinada naquele apartamento do Catete.

Um sol do caralho

Um sol do caralho era inevitável para aquele pedaço de latitude e longitude pertinho da linha do equador. Um sol do caralho. Sempre. Às vezes quando o tempo durante a noite insistia em manter-se quente, era como se o sol estivesse de sacanagem, escondendo-se de preto e baforando aquele ar flamejante no cangote de geral. Mas uma coisa era verdade, ninguém reclamava mais do que o suficiente porque era normal e todos estavam acostumados a sentir aquela temperatura desde que o mundo era mundo pra eles. A cana de açúcar se encarregava de prover o néctar símbolo da rapaziada. O rum. Legítimo, puro e famoso por bandas tão longínquas quanto a capacidade de imaginação de cada matuto bêbado após três ou quatro doses do aperitivo ainda de barriga vazia nos milhares de botecos espalhados pela nação. Misturado com limão, com hortelã, tomado puro, utilizado em receitas, utilizado em típicas garrafadas pra curar os mais variados tipos de doenças e maldições, essa bebida quente podia ser a síntese do clima tropical vigente ali. Uma dessas especialidades era até ostentada com certo orgulho, diziam ser o drink nacional de uma ilha vizinha que contava com um barbudo no poder há mais de quarenta anos e que uma vez chegou a cair, mas apenas quebrara o joelho. O cair fora pejorativo, apesar de tão real e bombado nas TVs mundiais. Riam sempre ao contar o fato transformado em manjada piada uns para os outros. Coisas de república das bananas. Mas não era com o típico produto alheio que eles se regozijavam não. Eles tinham seus heróis também. Um deles era o responsável direto por ter difundido mundialmente o som que saía do rádio velho e engordurado preso na parede do bar naquela tarde. Uma pulsação vibrante de agudos repetitivos e graves dançantes traçando um panorama sonoro complementado por batidas incertas e cativantes. Apesar de curtir a música que o aparelho soprava no ambiente como todo bom jamaicano que prezava a cultura raiz e não a invasão de ritmos histéricos que nos últimos anos se misturara à pureza do reggae, ele baixou o rádio. Um barulho já estava competindo com a sonoridade interna do balcão onde quatro homens de meia idade bebiam seus aperitivos e um deliciava-se com o Mojito, este, mais jovem na faixa dos trinta e exalando um duvidoso e forte cheiro de perfume que denunciava sérios riscos a um eventual mirabolante plano afetivo para depois dali. O também jovem filho do dono do local largou o copo que enxugava, pulou o balcão e alcançou a calçada. Deu pra avistar a chegada do sound-systen, um emaranhado de caixas de som gigantescas com rodinhas embaixo puxadas por um carro popular caindo aos pedaços. Lembrou-se então que era sexta-feira e quase sempre aquele carro de som típico da região fazia ponto próximo ao estabelecimento quando um problema mecânico ou técnico na aparelhagem não impedia a animada estadia. Voltou para o interior do bar. Resignado, mas com um sorriso tímido que denunciava a concordância, desligou o valente radinho. Há essa hora, a música já inundava o balcão e toda a rua. Os passantes começaram a se juntar próximo e já era possível ver jovens dançando e casais abraçados mexendo desavergonhadamente a cintura no ritmo quente do som. Seu pai era cubano, havia morrido há alguns anos, mas ele ainda gostava quando se referiam a ele, como filho do dono do local. Achava que isso era uma forma de respeito. Pra ele seu pai só tinha um defeito: era Fidelista. Ele sabia que se tivesse nascido em Cuba não teria os mesmos parcos confortos pobres que conseguia sustentar na Jamaica, como comprar discos de reggae inglês após economizar um pouco ou manter seu carro de apenas quinze anos de rodagem, com aspecto de novo. Mas respeitava o gosto do pai e não fazia muita questão de tirar da parede desgastada pelas infiltrações a foto empoeirada de Castro. O último cliente pagou sua última dose de Havana Club e retirou-se do bar. Naquela sexta resolveu fechar o bar mais cedo. Juntou-se a multidão que já ali se apresentava e largou-se no ritmo quente daquele reggae roots que explodia nas caixas de som. Estava quente como sempre. Um sol do caralho.

domingo, 18 de setembro de 2005

A dose

"Antes o Katrina tivesse passado por mim de uma forma decente."
A frase era repetida inúmeras vezes pelo velho jazzista que teve tudo levado, menos sua existência. Suas opções de escolha de vida, egoístas se pensadas sob a luz do que costumamos ter como referência para o típico homem médio que constitui família, eram resumidas a seu clarinete. A porra do clarinete havia sumido naquela imensidão de terro, água e vento. Reclamava do desastre e parecia só parar de repetir a lamúria quando intercalava o remorso por não ter levado consigo o instrumento ao sair acossado, meio bêbado é claro, do sobrado de arquitetura francesa onde insistiu ficar até o último momento em New Orleans. Coisas de velho. Teimosia irrestrita. Cabeça dura que pode até ser considerada doce e poética para muitos literários, mas na vida real prática só chafurda ao desespero e a conseqüências estúpidas. Mas ainda sim a mantinha de certa forma, parado ali naquele decrépito ponto de ônibus transformado de forma quase mambembe em base e morada, preterido ao ginásio que servia de abrigo a milhares de vítimas da fúria exercida por aquele furacão. Ao seu lado um dos grandes símbolos daqueles dias, que servia de porta tudo: um carrinho de supermercado. Era possível observar famílias inteiras passando com os seus, entupidos como o nível de desespero e nu sob suas grades vazadas de ferro. No caso do velho, nem se dava ao luxo de estar cheio até a metade. Dentro, alguns pertences que nem de longe representavam a importância do clarinete perdido. O objeto musical poderia estar por aí boiando. Poderia estar por aí empenado, esturricado. Era prudente nem pensar muito nisso. Naquele fim de tarde úmido e frio, sua mente vagava pelos bares que havia tocado. Pelas conquistas amorosas que ele e o parceiro clarinete haviam efetuado. Ele já estava bem velho. Mais uma vez, perguntava-se porquê o Katrina não tinha feito o serviço completo. Era até bom naquele momento estar só, pois começaria a ficar realmente insuportável participar dessa chorosa melodia infeliz e repetitiva, se por ventura alguém estivesse partilhando de suas exposições.
Observando o chão, no meio do lixo revirado pela lama viu o pedaço de um rótulo de malte puro. Escocês. Sua boca seca e enrugada encheu-se de saliva. Um trago poderia certamente amenizar suas dores àquele momento. Sempre fora assim mesmo. Perguntava-se e refletia se a opção de não ter casado, não ter construído e constituído família, fora finalmente punida pelos juízes celestiais. Besteira. Pura besteira. Viu que era o pensamento desconexo de quem pensa alguma coisa apenas pra esquecer um desejo que não sai da cabeça, ali no caso, o malte. Seu clarinete seguro em suas frágeis mãos, um copo de um legítimo puro descansando suado num balcão de madeira maciça, seriam sim, imagens completamente celestiais. Sua risada seca e só emitida espontaneamente naquele instante acabou cortada por uma tosse seguida de uma lágrima carregada de ira. Censurou-se veementemente por aquele impulso. Só faltava isso, pensou, um velho sem nem ter onde cair morto, chorando sozinho em um ponto de ônibus abandonado. Não, isso não. Enxugou os olhos, repuxando a pele quase morta de tão ressecada, respirou fundo e olhou para o céu numa atitude instintiva clássica que pode ser observada em praticamente todos seres humanos em momentos como aquele. Ao baixar o olhar para a meia altura que sua posição proporcionara, observou uma senhora de meia idade passando pelo outro lado da calçada. Bela senhora. Havia saído do bar francês que relutava em fechar mesmo naqueles sinistros dias.
O jazzista, apesar de velho, gostava de afirmar que duas coisas em sua existência estavam intactas: sua dignidade e visão. Ele realmente enxergava bem. E foi esse sentido aguçado num corpo frágil e quase sem vida que fez surgir em sua cabeça a história daquele rosto de feições finas, com lábios vivos e olhos claros como o mar da Côte d'Azur. Os passos da senhora se adiantavam enquanto a imaginação do velho comungava e trabalhava em ritmo acelerado, pincelando de maneira muito peculiar o que para ele poderia ter sido a vida da dona daquela bonita e decidida marcha. Romanceou um possível encontro entre eles. Levaria ela pra jantar num restaurante não muito caro, mas aconchegante e a luz de velas. Se ao menos tivesse uns trocados ali com ele, certamente uma dose seria cordialmente apresentada sob a forma de um convite. Esse pensamento ordenou em reflexo uma de suas mãos, que numa desesperada procura pelo bolso constatou que só três moedas, totalizando 27 centavos de dólar americano, formalizavam seu capital. Essa desconcentração momentânea o fez perder o foco. Ao olhar novamente para sua bela senhora, apenas conseguiu tempo pra avistá-la virando a esquina. Divagar sobre onde seria seu destino com aquela caminhada valorizando sua bunda generosa e pernas ainda firmes para sua aparente idade, seria talvez um novo passatempo. Ao perdê-la de vista, imaginou uma melodia com notas musicais contruídas em sua cabeça que poderia certamente oferecer para ela. Mas de forma quase maldita, logo após, lembrou-se novamente de seu clarinete. Já escurecia. Mecanicamente, uma vez mais amaldiçoou o Katrina por não ter passado por ele de forma decente. A nova longa noite seria difícil para o velho, mas agora teria em seus pensamentos falseados e nostálgicos a companhia daquela senhora que nunca sequer havia visto e que um dia cogitou oferecer uma dose.

sábado, 17 de setembro de 2005

Tudo normal



Acordou deitado, mas logo levantou. Seguindo até o banheiro, observou o dia lindo que fazia lá fora. Após tomar um banho gelado, dividiu-se entre a tarefa de secar-se e aumentar o volume do reggae. Vestido, deu ênfase aos graves no equalisador de seu velho som e pensou nas possíveis novas notícias do jornal. Havaianas no pé, desceu a escada de três em três degraus, não quis esperar o elevador. Na calçada de pedras portuguesas, divertiu-se com um inútil entretenimento visual seguindo as pedras claras. Em pé, parado em frente à banca leu as últimas. Já na fila do pão bocejou, terminando de acordar. Ao chegar em casa preparou um café com canela. Debruçado na janela, rabiscou algo no bloco de notas. Descalço novamente, fez pouco caso da hora. Tomando a bicicleta nas mãos, passou pela segunda vez do dia pela porta da frente. O palito no dente do porteiro mexeu ao cumprimentá-lo, também pela segunda vez naquela manhã. No caminho até a praia, cantarolou Los Hermanos. Ao prender o camelo no bicicletário, cantarolou a melodia de uma música do U2. Esperando o coco verde que pedira, passou os olhos nas opções de batata-frita. Bebendo a água, teve vontade de passar a mão numa bunda que viu. Olhando o mar, sorriu. O calção amarelo tocou a água salgada. Os pés sentiram as conchas. O cabelo molhado reclamou do sol. A pele bronzeada fez pouco caso do filtro solar. O ambulante que vendia mate, descansando observava-o lá da areia. O menino de férias escolares chutava a bola nas costas da senhora aposentada e gorda. Perto da calçada na volta a areia era mais quente que na ida. Dava pra agüentar a sola do pé queimando levemente, mas os lábios inclinados denunciavam que não era tão fácil assim. A rede de vôlei armada e sem jogo, sabia que assim era inútil. O cachorro que voltava pro calçadão naquele mesmo instante, não via maldade em seu passeio na areia. Os meninos de rua passantes, não viam maldade em seu passeio na areia. A velhinha aristocrata andante, via maldade em tudo. A moça meio hippie que oferecia massagem, via equilíbrio em tudo. O imigrante nordestino desempregado sentado com um jornal na mão, via injustiça em tudo. Um cego que passava apalpando uma vareta no caminho, não via nada. O calor chegava igual para todos. Um senhor de óculos grandes de armação típica setentista, por estar de camisa preta sentia um pouco mais de calor que os outros. Tudo isso passaria desapercebido se tivesse acontecendo agora, pois a bicicleta já liberta das correntes, se distanciava da praia. Da esquina já dava pra perceber o palito na boca do porteiro. Não por ser possível enxergar, mas pela certeza de que ele estaria lá. A ducha pra tirar a areia continuava fria. As marcas de molhado no chão eram reclamadas, mas sempre inevitáveis. A bicicleta era leve e logo estava de volta para a área de serviço. Quando o reggae voltou a tocar, não foi preciso regular os graves. Quando a música tocou, não foi preciso adivinhar a faixa. Quando ela telefonou, não foi difícil conter o sorriso. Quando a hora do almoço chegou, o dia já tinha em grande parte se desenvolvido. Quando o sol baixou, apenas histórias pra contar pros amigos. A praia, lá onde ficava a praia, deu uma esvaziada. O lixo da portaria, ali onde ficava a portaria, cresceu com o palito da boca do porteiro. Ele foi ostentado durante quase todo o dia. De manhã foi um e de tarde outro. Como já se encaminhava adiantada a noite, ele fora dispensado. Amanhã vai ter mais palito, mais sol e mais banho gelado. Mais volta de bicicleta e mergulho no mar. Mais coco no quiosque e concha perto da água. Mais cachorro na areia e rede de vôlei armada. Tudo normal.

Pra início de conversa




Resolvi assumir de vez minha neurose letrada. O fotolog ficou com os caracteres muito pequenos pra mim e seu conceito nunca foi o meu objetivo: as tais imagens. Nada contra elas, principalmente quando belas. Meu atual e folclórico prefeito carioca parafraseando o poetinha, já se desculpava da estética feia dizendo que a beleza seria fundamental não é mesmo...? Por essas e outras que vou prestigiar as imagens por aqui também, mas o conceito agora é assumidamente letrado. Paranóias, poesias, textos, rabiscos...tudo na linguagem das letrinhas e com espaço pra você continuar detonando, analisando, parabenizando, interagindo, propondo novos olhares, fazendo isso aqui valer à pena um pouco mais. Neuroses compartilhadas ficam mais interessantes e as clássicas mentiras sinceras me interessam.
Pra quem me acompanha há algum tempo no fotolog, sinta-se em casa, aqui você verá novos textos e a mesma falta de critério de sempre. Vou continuar postando o que estiver amarradão de postar, algumas vezes textos perecíveis com assuntos do dia que me instigaram a espancar o teclado, algumas vezes textos curtos com temas insólitos, algumas vezes poesias, algumas vezes apenas uma frase. Não espere receber desculpas se eu sumir por uns tempos também, fatalmente isso não irá acontecer e não pretendo fazer drama em cima, basta de vez em quando passar por aqui e ver se tá rolando letrinha nova na área. Ah...uma parada: observando anormalidades gramaticais e ortográficas, carta totalmente branca pra correções e até zoações. Pode cair dentro, só não bata muito pois sou publicitário e meu ego te engole fácil.
Pra quem tá chegando agora, sinta-se em casa também, já tenho até uma boa notícia pra você: vou republicar aqui aos poucos e entre textos novos, tudo o que já havia publicado no fotolog. Bom, por enquanto é isso.
Bem vindo ao mundo letrado de Bartoli. Carioca marrento, mas que adora levar banda da literatura.