domingo, 24 de outubro de 2010

Duas frases num esparadrapo preso no espelho

Libertário ou indecente? Libertário ou indecente? Minha cabeça insiste em pensar sozinha, engasgada, enquanto meus olhos vidram o chão que treme em movimento. Estou meio adormecido, numa cadeira de rodas, com um esparadrapo no antebraço que delata a recente volta de um coma alcoólico e tento em vão, classificar meus originais enquanto um enfermeiro guia aquele veículo tosco de metal pra fora da festa de uma gravadora. Não consigo ficar de pé. Apago novamente.
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Acordo com alguém batendo na porta. Já é dia. Estou num sofá, sem camisa e com a parte superior da calça jeans úmida. Não sinto cheiro de urina. Relembro flashes de uma bolsa de gelo sendo aplicada na região da minha barriga. Encontro uma luva cirúrgica dentro da minha cueca. Isso não pode ser coisa boa. Murmuro um palavrão e a escondo no bolso. Mais batidas na porta. Uma linda garota com maquiagem borrada surge coçando os olhos e me puxa pro quarto. Eu apago mais uma vez.
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Desperto com uma voz grave, rouca e feminina, saindo por uma fresta da porta. Acho que estou sonhando. Sinto frio. Puxo um lençol amarrotado no pé da cama e cubro metade do meu corpo. A voz continua a vir da porta. Tento fazer aquele barulho parar com o poder da mente. Sou ridículo. Não consigo. Puxo o lençol até o pescoço pra não assustar quem quer que seja com minhas tatuagens. É a faxineira. Deve trabalhar pro meu anjo da guarda. A senhora pergunta se eu estou morto e diz que o quarto está fedendo. Digo que estou vivo e peço pra ela me deixar ali. Escuto algo incompreensível e ela vai embora do apartamento. Volto a dormir.
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Acordo com beijos em minhas pálpebras. Reconheço o disco de Claudia Dorei tocando suave, vindo da sala. Meu corpo dói. Ela beija minhas orelhas, meu pescoço e começa a dar mordidas em meu peito. Meu Deus, um homem deveria ser acordado assim todos os dias. Ela deixa um copo de Club Soda no criado mudo e vai andando pra porta. Some. Olho a marca de agulha em meu braço. É indecente. Alcanço uma caneta e escrevo duas frases no esparadrapo que acabei de arrancar do meu corpo. Aproveito sua cola pra prendê-lo num espelho, tiro minha calça e lembro-me de alguém que preciso esquecer urgente. Enquanto dou um gole faminto no copo gelado, minhas urgências continuam querendo me sabotar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Degustação

Acordei com frio. Corpo tenso, dentro da geladeira, num copo de uísque vazio. “Meu Deus, como vim parar aqui?”. Tentei não entrar em desespero. Desci pro andar de baixo, outra prateleira, até conseguir alcançar a porta. Fiquei por quase duas horas ali, enrolado num pedaço de plástico de embalagem de pão, tentando me aquecer. Alternava momentos sonolentos e certa vertigem, torcia pra tudo não passar de um sonho. De repente um estampido. Uma luz branca atingiu-me como uma bomba. Mesmo com pálpebras fechadas jamais sentira algo igual. Uma tentativa frustrada de avistar algo cegou-me completamente. Senti-me indefeso, vulnerável, pulei e corri trôpego como um rato bêbado por entre as pernas de um insone ladrão de geladeira, o salvador de minha existência. Reconheci a sala do meu próprio apartamento. Duas mulheres gigantes dormiam nuas como anjos enroscados no sofá. Pelo chão cheio de revistas espalhadas, uma mancha gigantesca de vinho desenhava-se como uma lagoa. Sua fonte era uma taça caída, virada em cima de um jornal. Abaixei-me com sede como quem bebe num espelho d'agua e logo estava entorpecido. Deitado e misturado, mexia e brincava infantilmente com meus pés e braços dentro daquela piscina rasa etílica. Masturbei-me fitando o par de bundas imóveis. Eram grandiosas e perfeitas, voluptuosas, do tamanho de um prédio de quatro andares. Sequei meu corpo roxo num pedaço de guardanapo sujo e continuei andando pelo apê. Ao chegar a meu quarto estranhei minha própria versão em grande escala dormindo, só e de cuecas. O ambiente carregava a mistura de um cheiro enjoado e agridoce de álcool, cigarros e suor, que inundava meu pequeno nariz. Fiquei olhando aquele corpo grotesco, confuso, tentando entender tudo aquilo, tentando entender como poderia ter ido parar na geladeira dentro de um copo vazio. Pela primeira vez senti medo, uma espécie de solidão e algum calafrio. Imaginava como agir se topasse com algum inseto. Tentei fazer algumas flexões, cantei desafinado, corri de um lado pro outro e mijei no canto da cama, pra matar o tempo. De repente meu eu gigante acordou, coçou os olhos, esticou as mãos como quem se espreguiça e sem piscar, veio diretamente em minha busca. Paralizado, apenas assisti. Meus dedos gigantes seguravam-me com cuidado, levantaram-me até a altura dos meus olhos e logo um som ensurdecedor tentou dizer algo sem sucesso. Era uma pressão sonora densa, tão alta como graves estourando as caixas de um soundsystem jamaicano. Gritei, tentei conversar, mas nada adiantou, minha voz provavelmente valia menos que os decibéis de um zunido de mosquito. De carona na palma de minha própria mão fui levado até a sala e depositado com cuidado dentro da taça de vinho vazia que estava largada pelo chão. Observei enquanto meu Big-me acordava as duas moças com cuidado, beijo nas testas, gesticulando e apontando pra mim. Lá estava eu como uma atração freak de circo: nu, do tamanho de um cigarro, vulnerável e preso numa vitrine. As duas gostosas sorriam enquanto andavam lentamente em minha direção. Meu corpo arrepiava-se. Pensei em alertá-las sobre a minha porra no chão da sala, mas desisti. Olharam-me como duas gatas fitam um peixe dando sopa. Confabularam por instantes e com um ar sexy e malicioso, abraçaram com seus dedos finos uma garrafa ao meu lado, apontando seu gargalo pra mim. Era uma sensação indescritível tomar uma ducha de Rivalta, que despejado, lambia meu corpo até o nível do vinho ultrapassar minha cabeça. Poderia partir assim, pensei, num mar tinto, sob o poder de duas lindas mulheres nuas. Todos os meus dias de sofrimento, minhas desilusões, empregos de merda, desamores, originais rejeitados, derrotas...tudo isso teria valido mais a pena. De repente a taça começou a rodar. Estava realmente feliz. Em instantes seria degustado por uma puta sem nome, ávida por sentir o gosto do meu corpo em sua língua feminina.

sábado, 2 de outubro de 2010

Mulheres que escrevem

Elas têm uma segurança que ameaça. Uma inteligência que intimida. Geralmente sabem se vestir muito bem de um jeito que não acompanha a moda cafona das vitrines. Esse alvoroço não combina com elas. Confesso que todas mexem comigo. Sinto-me indefeso, meio deslumbrado, acho que vou ser desmascarado a qualquer minuto. Minhas convicções em sentir-me uma farsa são baseadas integralmente nelas. As danadas me emocionam. Esse lado quase negro da vida surge como um segredo entre nós. Não acreditamos no mundinho perfeito, nas famílias da TV com casais de filhos e suas medalhas de judô. A gente até quer acreditar nisso (elas um pouco mais). A gente até pode acabar assim. Mas é mais divertido e lógico esse nosso costume de enxergar a beleza da vida sem filtros. A gente curte essa escrotidão. Mesmo porque achamos o belo em si realisticamente encantador. Os desvios de caráter, as atitudes intempestivas ou movidas pela pressão, as maldições do amor, a marginalidade intelectual. Tudo isso é real, é visceral, é dia a dia, e em alguns casos, pasmem, até status quo. Acredito nesse clichê bunda-mole que prega não existir personagens de papel único por aí. Seria tedioso demais. É de uma inocência grotesca achar que as pessoas podem fazer parte de algum script. Por isso em nosso sangue corre essa coragem besta que nos afasta do medo. Por isso elas me conquistam como um manifesto mal escrito, como jovens seios duros, como dezenas de primeiros discos, como um corpo nu nos segundos que precedem um esporro. Prefiro as sarcásticas, as despudoradas, as loucas, as de passado duvidoso. Prefiro as putas, as neuróticas, as mimadas, as que já não têm esperança. São somente elas que podem me divertir enquanto sigo deixando claro pro mundo o quanto posso fazê-lo sorrir. São elas que me deixam de pau duro, cabelos arrepiados e mudos, com a boca seca de tanto querer. Elas são toda essa lama viva que invade minha cabeça quando busco alguma compreensão. Elas são a mãe que nunca tive e a família perfeita que o mundo inteiro jamais vai ter. São minha fonte, meu desejo, toda essa nossa vontade de foder. São elas, malditas, as mulheres que escrevem. Responsáveis pelo pouco sentido que os bares têm, em motivar conversas ridículas, aos doces momentos que, pródigos, podem bicar pra longe o infame medo de errar. Nosso hábito de discordar em conluio me liberta. E elas seguem tolerando minha farsa por acreditar que todos os meus eu te amo etílicos, nasceram sonhando em ser ditos no altar.