quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Clara

Leve era sua vida. Clara era seu nome. Andava saltitando pela calçada recheada de pedras portuguesas com o vigor e toda alegria que uma criança despreocupada pode ter. Escrevia poemas inocentes em papéis de carta coloridos e trocava no recreio com amigas. Trocava pulseiras, figurinhas, adesivos e tudo aquilo que era grande por trás de uma futilidade sadia e colorida. Seu cabelo escorrido voava e bagunçava ao sabor do vento e da velocidade que suas pernas finas impunham ao chão. Tinha quatro cachorros vira-latas que tratava com o pedigree de quem ama bichos do fundo do coração. Já seu coração, esse tinha dono, e era do menino mais bonito da escola.
Gostava de ouvir histórias, escrever na agenda e dançar música alta no quarto. Disso sua mãe não gostava muito, mas ai de quem quisesse discutir com a energia que emanava de seu pequeno peito de criança metida a crescida. Tinha duas botas, uma preta e outra rosa, que adorava “de paixão”. Tinha um cordão de ouro que portava com orgulho, carregando uma cruz como todo bom cristão. Ria um riso gostoso vendo filmes de comédia e comendo pipoca com coca-cola nas tardes longas dos dias que sobravam após aprontar o dever de casa. Namorava pela vitrine o papagaio branco de uma espécie esquisita e diferente na lojinha de filhotes da outra rua. Queria tê-lo. Sonhava alto como toda criança sonha, falava alto como toda criança fala. Fazia besteiras. Gostava de empurrar pneu junto com os meninos no pátio da escola. Gostava de bala de frutas e chiclete de bola. De sanduíche de presunto e do pastel de queijo da padaria do Seu Luís. Gostava de velhinhos e tinha saudade de seu avô, aquele que batia com a cabeça no teto de tão alto. Tinha tantos vestidos que não saberia contar, mas gostava mais de um de flores estampadas. Chegava da escola com a mãe, mas esperava ela se pesar na balança da farmácia. Já pequena, pesava-se junto, com o rosto sujo das estripulias do dia na sala de aula. Mas ainda sim era leve. Leve era sua vida. Clara era seu nome.

sábado, 17 de dezembro de 2005

A covardia

Usava aquela mesa feita em jacarandá sempre que escrevia algo bonito pra ela. Nessas horas sentava-se na cadeira velha de madeira e deixava o sol entrar batendo em seu rosto. Abria bem a janela e a cortina de palha. Depois colocava a poesia presa junto à porta, para encontrá-la ao chegar.
Aquele clima da praia multiplicava em seu astral toda miríade de significados que traduziam o sentimento que emanava em seu ser. Sua caneta de estimação amaciava os dedos grossos e afiados, em cumplicidade, transcrevendo ao papel sentimentos tão livres que pareceria difícil imaginar um dia terem pertencido somente a ele ou que sequer houvessem tido dono. Seu tradicional suco de limão com rum descansava dentro de um copo suando de gelado, formando mais uma mancha quase redonda na tábua da mesa, que observava quietinha sua inspiração brotar em forma de palavras variadas. Mas de vez em quando aconteciam uns barulhinhos permitidos, liberados pelos rangidos oriundos do gelo de seu copo, que teimavam em voltar lentamente ao estado líquido, imersos na temperatura quente que só um recinto inundado de paixão como aquele poderia ter.
Sua mão amarelada de fumo lhe fazia bem. O mar e seu balanço, lhe faziam bem. A areia em seus pés santos, lhe faziam bem. Tudo ali parecia compactuar quase como um balé orquestrado para que cada novo dia fosse um capítulo feliz dentro de um sonho que quiçá algum poeta um dia pudesse ter escrito ao demonstrar tanta beleza utópica num pobre pedaço de papel branco.

Mas assim tão de repente, sem nexo, tão sem razão aparente. Ele morreu. Simplesmente morreu. Caiu e morreu. De uma forma que soaria estúpida, até mesmo banal. Seu coração, tão mal-acostumado, acabou traindo-o. Seu corpo cooperou com desgosto e deixou-se levar pela natureza física da matéria, derramando-se à frente da mesa que sempre gostou de sentar-se ao escrever coisas bonitas pra ela. Daria pra dizer que o suco de limão foi ficando azedo bem mais rápido que o normal a partir dali. Impossível seria não perceber que até a fruta ácida predileta sabia o que estava acontecendo.
A protagonista involuntária de toda aquela inspiração lírica, sua Maria, chegaria só no final de tarde. Já escuro seria. Nem a claridade traria conforto, faria companhia, incapaz de presenciar tamanha tristeza. Uma noite eterna e sem estrelas no céu estava pra começar naquela praia maldita . O dia em que até o sol tornar-se-ia um covarde.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

Black

Olhava sua mochila e ela só conseguia representar a vontade de ir pra outro lugar. Queria sair de casa. Ela já tinha saído há muito. Na verdade ela nunca morara ali. Viveram muitos momentos nesse espaço constituído de cama, som e sonhos perdidos. Sonhos que voavam pela janela a esmo.
Perguntava-se pra quê sonhar se ela não mais poderia compartilhar deles. Perguntava tantas coisas. Suas perguntas, que antes eram carregadas de respostas plausíveis, agora se perdiam entre as folhas secas de um vento de outono frio. Suas lágrimas desciam não como um choro forte, mas como um sopro de morte. Suas noites eram muito mais pretas. Sua tatuagem não brilhava mais e suas calças viviam sujas. Pra quê lavar os jeans? Pra quê sorrir?
Saber que ela não seria mais sua, confortava sua garganta seca em cada gole desumano num copo de ilusão sincera. Seus amigos significavam tanto que tinha medo de cair num abismo imensurável se apenas perdesse-os de vista. Tudo isso embalado dentro de uma caixa de presente fechada, lacrada, com um laço indefectível e vivo. Escondida dentro de um ambiente úmido com chão de tábuas de madeira corrida podre, no sótão de uma casa perdida numa cidade qualquer abandonada entre a serra e o mar. Com o cheiro da maresia das viagens que fizera com ela pra praia. Com o frescor gelado do clima das trips feitas pro mato e montanha. Apenas resquícios vivos de memória apagada. Antiguidades que acabavam de serem lançadas. Pedras cheias de limo. Duras, impenetráveis.
Até a porra da mochila o fazia lembrá-la. Mesmo multidões não o faziam esquecê-la. Sentar pra ouvir a música parecia ser o mesmo que jogar um jogo, sabendo-se e sentindo-se o perdedor desde o início. Era tudo assim. Tudo triste. Tudo cinza. Um leite sem açúcar. Um café aguado. Alguns carros virados numa calçada em plena contra-mão. Meia dúzia de beijos roubados com luzes piscando num teto vermelho. Uma dezena de noites mal dormidas com direito a olhadas pro espelho. Algum sexo sem amor, sem pudor, com direito a poesia feita sem dor.
Tudo sem vontade e trazendo umas empolgações magníficas, carregadas da obviedade de serem falsas. Flanelas em tecidos xadrez guardadas numa lembrança de infância. Até fatos vividos antes de conhecê-la permitiam inclusões apenas pra se sentir falta. Estava em todos os lugares e mesmo assim em lugar algum. Ela não representava a solidão. Representava o papo chato de início de relacionamento novo. Representava a falta de vontade de fazer cafuné nas outras. Representava a falta de coragem de perceber que dali em diante nada seria mais igual. Representava saber que seria feliz com outra pessoa, seja lá o que diabos ser feliz significasse aquela altura. Significava clichês mórbidos, rasteiros e baratos. Significava não ter ninguém para ir a lugar algum. Significava mirar lá no alto pra não acertar ninguém. Significava a falta de assunto. O breu soturno do lugarejo mais profundo. O nada. A certeza do futuro sem promessa de mudança. A certeza que a vida sem ela não valia de nada. Tudo preto. Tudo cinza. De mãos dadas e sorrindo. Num parque. Numa praia. Num verão. Num reveillon. Num céu azul. Pintado a mão. Como os quadros infantis dela. Como seu sorriso que o fez parar de sorrir. Como quarenta mil pessoas. E somente duas juntas em pensamento.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Um serviço para Gonzo

Junto com o gole desceu uma parte de todo rancor distribuído, somado ao líquido destilado. Sentado ali naquele bar no meio do deserto mexicano, seu único companheiro fiel era o sol. Mesmo assim era só até a noite, o que provava que o companheirismo estava completamente fora de moda. O sal e o limão faziam com certa passividade seu papel naquele lenga-lenga que antecedia e precedia mais uma dose de tequila.
Quase como um clichê estampado em néon em seus pensamentos escaldados e paranóicos, uma bela mexicana com um par de coxas que intimidavam qualquer um naquele recinto adornado em reboco sentou-se ao seu lado com um sorriso sincero brotando de sua falsa existência. Ela trazia um bilhete de Gonzo. Antes quisesse passar a noite ao seu lado, pensou. Passou a mão na barba por fazer a dias e, olhando para sua cintura fina que apontava para uma bunda arredondada e fascinante, observou-a retirando-se. Com suas mãos sujas que culminavam em unhas também sujas, abriu o papel de gramatura grossa e aspecto velho, fazendo surgir para seus olhos a informação que não queria encontrar. Ia ter que fazer o serviço, mesmo tendo a pretensão de largar tudo depois da ocasião com o mariachi da aldeia que passara um longo período até cinco meses atrás.
Pediu uma última tequila, mas bebeu sem a viadagem do ritual de mistura cítrica e salgada. Deixou notas sujas em cima de um balcão poeirento, mas limpo, e saiu do bar com a cabeça erguida. Não devia nada a ninguém, a não ser um último acerto para Gonzo. Pensou em ir para o aeroporto e se mandar dali, mas logo viu que até os homens mais dignos como ele, às vezes eram assombrados por pensamentos covardes. Cuspiu no chão um catarro grosso, amarelo-esverdeado e viscoso, como a raiva que aquele sopro de covardia o fez sentir.
Antes de entrar no velho Dodge Monaco azul, olhou uma vez mais para a porta do bar por puro instinto e, pra sua surpresa, ela estava lá com suas rendas, cintura, bunda e todo o pacote de atrativos que o enlouquecera momentos antes. Olhava pra ele sorrindo e insinuava-se.
Recolocou a chave no bolso e passou a mão pela barba por fazer novamente. O sol nitidamente começava a querer abandoná-lo. Andando em cima do próprio rastro de suas pegadas marcadas no chão de areia e terra batida, encaminhou-se até ela. A noite seria quente, como tudo ali. O serviço para Gonzo seria feito com esmero, mas apenas na manhã seguinte.