quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Toda essa nossa falta de assunto

Pegou o telefone encardido e ligou.
-Camile?
-Oi. É você Buck?
-Quantos homens te procuram?
-Muitos.
-(silêncio) Queria te convidar para um almoço.
-Como assim? Cê tá bêbado?
-Queria almoçar com você.
-Hoje?
-Sim, mais tarde. Quero comemorar.
-O que? Terminou o livro?
-Não. Queria celebrar toda essa nossa falta de assunto.
Camile riu.


Ainda ensaiou um bolo, mas resolveu aparecer. Estava com um vestido lindo, mas era repetido. Apesar de suas incertezas em relação a Buck, não queria que ele a visse assim. Repetida. Menos pelo que sentia por ele, mais por sua vaidade rasgada.
Depois de receber um belo adiantamento pelo seu quinto romance, Buck estava passando por uma fase que ele conhecia bem e não era nada boa. Estava com mais da metade do livro pronto, sabia exatamente o que queria de cada personagem, mas, justamente por isso não acabava nunca de escrever o dito cujo.

No restaurante, mal puxou a cadeira e os belos olhos de Camile cerraram.
-Agora que você recebeu essa grana está um porre sabia?
-Por que?
-Bebe os melhores vinhos, vai as melhores festas, toma as melhores drogas, usa todo o seu tempo para fazer coisas interessantes e depois fica arrotando esse amorzinho enlatado pra cima de mim.
-Odeio enlatados.
-Eu odeio você.
Camile levantou-se e foi embora. Mais uma vez não esperou a comida chegar. Dessa vez sequer pediram. Como de costume, um chope logo socorreu Buck na mesa. Também não havia pedido. Logo chegaram outros que o ajudaram a aguardar pacientemente a tarde cair. Ele amava aquela mulher.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Reza de porto

Barco vai, barco à toa.
Leva nesse azul de sal nossa dor.
Mar já vem, ave que voa.
Renega todo o perfume que tem.
Santa me ilumina de perto.
Lembre da fé que tenho no peito.
Sou feito de chão, feito de vento.
Respeito esse velho ancião.
Irmão até algum dia incerto.
Vê se teu sangue liga o motor.
Sai de perto das flores do medo.
Busque teu peixe sem mãe nem rancor.
Sou do pé de euforia.
Parto pro porto sem mandinga.
Cheiro de coco me contagia.
Rezo pra João e rezo pra Maria.
Barco vai, barco à toa.
Deixa esse nosso sol se pôr.
Mar já vem, vou na boa.
Levo presentes pro meu amor.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Um dia perfeito

Era um dia perfeito. Dirigi meu velho carro azul até atrás da casa verde como de costume. Peguei drogas baratas. Combinariam perfeitamente com minhas férias baratas. Dava pra sentir a mistura de sol, cocaína e gim passeando pelo meu sangue e saindo por cada um de meus poros. Dava pra sentir o cheiro de todos os livros que queimei no dia anterior. Letras impressas em papéis povoados por gerações de ácaros preguiçosos. Letras cheias de rancor, interesse, oportunismo e vontade de conquistar um coração. Sempre isso. Mas seguia com meus planos de neon em beira de estrada. Nada me afetaria. Respirava gasolina. Meus pensamentos iam ficando mais sujos a cada quilometro que deixava para trás. Dava pra sentir a boca de Alice engolindo a cabeça do meu pau duro como quem morde um pêssego. Acariciar o lado de seu corpo trazia sempre uma felicidade dupla. Dava pra sentir sua pele incrivelmente macia para uma viciadinha, além do alívio de perceber que continuava viva. Mas isso era relativo. Eu estava morto, o cara da recepção do hotel estava morto, todas as mulheres do mundo estavam mortas e até o Jesus Cristo tatuado em meu peito berrava de tão morto. Tudo que o rastro laranja de sol daquele fim de tarde insistia em deixar mais bonito com seu filtro de vida colorida, estava morto. Um quarto gorduroso e poeirento com uma bela buceta, drogas baratas e um puta sol rosa-alaranjado invadindo o carpete e acordando as persianas imundas, conseguia seguir celebrando toda aquela falta de sentido. Era um dia perfeito. Somente um dia perfeito.