quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Aquela pia de hotel

Gostava de comê-la na pia do hotel. Nunca gostei de cama na verdade. Camas são muito tradicionais. Não que eu seja arrojado demais, na maioria das vezes me sinto um velho. O problema é que fico com um tesão filha-da-puta quando a pego de jeito ali com minhas mãos cabeludas, cheias de calo e suas perninhas arqueadas. Abertas com o joelhinho de lado sobre a bancada de mármore, com o rabo gostoso apontando pro teto. Boto até uma toalha pra não ficar dolorida ou com a perna marcadinha. E depois tome língua. Depois não. Antes. Pra deixá-la doida. Eita mulher. Uma puta mulher. Tava pra achar uma dessas em minhas andanças erradas procurando o caminho certo.
-Já vai trabalhar?
-Lógico, não sou que nem você: Um filha da puta imprestável e vagabundo.
Nossos diálogos eram poesia pura. Eles só faziam aumentar em minha cabeça o tesão e admiração por aquela morena carnuda.
-Traga malte pra mim, sua putinha, passa no mercado. Minhas garrafas acabaram.
-Tá, mas minha vontade era fazer que nem a mulher do Jobin naquela merda daquele filme sensívelzinho de viado que tu me levou pra ver ontem.
Ela era muito racional. Mas sua estranha racionalidade se baseava em ganhar dinheiro trabalhando como um merda proletariado, na recepção de um hospital, e fazer sexo. Gostava de comer besteiras também, mas a desgraçada ainda assim era magra de ruim. Eu a tinha levado pra ver o filme sobre Vinicius. Umas das melhores cenas era a de um depoimento de Jobin, ao lado de um Vinicius trêbado, onde contava amargurado e de forma sarcástica, o dia que uma vagabunda que ele comia (acho que a mulher dele na época) quebrou umas duas garrafas de malte dele na pia da cozinha. Resignado, ele dizia “tudo bem, mas vou ter que comprar outra né” ou algo assim. Bela cena. Caras reconhecidamente notáveis pelo lirismo poético em relação ao amor, zoando alcoolizados as próprias amantes. Viva a ironia. Respeito eles. Falavam de amor sem parecer um troço pedante. É bonita a obra construída pelos pudins de cachaça da antiga Montenegro. E o que é bonito passando verdade, fica pra sempre.
-Nem um boquetinho antes de ir?
Bam.
O barulho da porta encarregou-se de me dizer não. Tudo bem que era uma bela foda. Tudo bem que eu era um cara rude e cascudo, mas mesmo assim no fundo incomodava-me ser taxado de imprestável e vagabundo por ela toda hora.
Peguei minha mala de couro carcomida no armário e tirei um envelope com meus últimos reais da porra do adiantamento do último livro. Enrolei algumas notas, o suficiente pra puta ficar hospedada ali por mais uma semana e ainda poder comprar alguns proseccos, porra, ela se amarrava nessa merda com morango, e simplesmente saí. Fui procurar outro rumo. Ela que me achasse, ou melhor, tomara que não. Tinha que ligar pra editora. Tinha que ligar pro meu contador. Tinha que ligar pro jornal. Tinha que fazer tanta coisa que me deu vontade de entrar no Bar da porra da rodoviária imunda daquela merda de cidade meio praiana, meio provinciana, meio suburbana, muito no meio pro meu gosto objetivo e carregado de personalidade forte.
Pedi logo um malte e apoiei os cotovelos no balcão de madeira maciça e macia. Minha bolsa ficaria no chão sujo, entre meus pés imundos. Na terceira dose eu já estava pensando nela de novo. Em como eu gostava de comê-la naquela pia de hotel barato.

sábado, 19 de novembro de 2005

Dois corpos num sábado

Matar os próprios pais aquela altura não era mais tão importante quanto o fato de agora procurar uma maneira de sumir com os corpos. Durante todas as suas crises de raiva, onde especulava um dia matá-los, nunca imaginava que o ato em si seria concretizado tão facilmente e o pior mesmo só viria depois. Que matar uma pessoa não era algo corriqueiro ele tinha total noção. Era uma coisa até tão distante, carregando tamanha carga de impossibilidade, que ele nunca havia pensado seriamente em sobre como agir em relação aos corpos. Agora que estava em frente a dois cadáveres na cozinha de seu apartamento, não sabia se ligava pra polícia e se entregava, se esquartejava os corpos em pequenas partes e colocava-os no congelador, se partia eles em partes maiores e embrenhava-se numa alucinada viagem de desova bem longe dali ou se apenas fugia. Que dúvida insuportável. Nem o choque emocional de acabar com a existência de seus progenitores, fez sua cabeça sair do foco desse dilema.
Num gesto inusitado e repentino, pensou em alugar Pulp-Fiction de Tarantino. Sabia que no filme existia uma cena onde chamavam um cara pra ajudar a livrarem-se de um corpo indesejado. Disse calmamente um palavrão pra si mesmo. Ele não era da máfia ou de qualquer forma de organização ilícita pra ter um “cara” a chamar. Amaldiçoou os pais uma vez mais. Será que até na morte eles eram capazes de enlouquecê-lo e tornar sua vida mais difícil?
Como era sábado pela manhã e sua família possuía hábitos reclusos, acalmou-lhe o fato de achar que somente na alvorada de segunda-feira começariam a dar falta do Pai no trabalho. Sua mãe era dona de casa, talvez alguma amiga pudesse querer entrar em contato no final de semana, mas achou que o sumiço repentino dela não ia levantar tantas suspeitas como o não comparecimento do zeloso Pai no escritório de advocacia no início da semana.

Sua experiência com morte era tão nula e vazia, que não tinha sequer a noção de que horas o cheiro fétido dos corpos sem vida começaria a circular pelo ar. Calmamente resolveu abrir o armário, retirando a caixa de seu cereal predileto. Colocou-o sobre a mesa. Da geladeira trouxe o leite gelado. A cumbuca de vidro e a colher já estavam postas a mesa, sua mãe havia iniciado o protocolo do café da manhã momentos antes de ser atacada pelo filho único com o objeto cortante que agora repousava imóvel em seu pulmão esquerdo perfurado.
Desviou do corpo do Pai quase escorregando no líquido grosso, viscoso e vermelho que sua ferida expelia lentamente e sentou-se para saborear o gostoso e clássico preparo matinal. Ao levar a terceira colherada à boca, resolveu colocar mais açúcar de forma exagerada na cumbuca do cereal. Olhou pra mãe instintivamente como que esperando sua repreensão pelo ato nada saudável. Mas ali logo abaixo no chão de cerâmicas pretas e brancas, com nova tonalidade avermelhada recém-inclusa, fez que nem era com ela em toda indiferença de seu corpo morto e ainda nada rígido.

sábado, 5 de novembro de 2005

Surdez

Ela é surda. Não, ela não sofre de surdez não. Mas é surda. Uma preferência, fazer o que? Se sente melhor assim. Na verdade ela não é surda, surdinha também não. Ela escuta as coisas que lhe são convenientes. Aliás, gosta é de transformar as mensagens. Isso, transformar. Não? Não entendeu? Bom, sabe aquele brinquedo lego, de criança? Então. Mal e porcamente pode servir de exemplo. Aqueles trecos não montam e desmontam ao bel prazer da gurizada? Pois é. É mais ou menos por aí. Isso que ela faz com as mensagens. Isso o que faz com o que falam pra ela. Ela gosta até muito mais de exercer essas mexidinhas nas mensagens do que se fazer de surda. Desvirtuar o mundo em que vive é um prato cheio. Um entretenimento. Como se colocasse um tijolinho de cada vez no castelo de fantasia murado que constrói ao seu redor. Saca aqueles tempos feudais? Castelinho com fosso em volta? Portões de madeira grossa pra caramba, isso quando não de ferro, que desciam sustentados por correntes largas de dar inveja em qualquer cantor de hip hop americano de hoje em dia? Pois é. Isso. Mas a diferença é que os portões dela não descem. Sabe como é né? Portão aberto significava trânsito. Trânsito, informações indo e vindo. Nesse sentido, já que ela é quem manda na linguagem, não importa muito a tal troca de idéias. Que nem criança que inventa seu próprio jogo e vira juiz, presidente e diretor geral, mudando as regras no meio da partida. Acho até que tô dando muitos exemplos infantis pra demonstrar seu estilo né? Mas infância lembra criança, que lembra pureza, que lembra...bingo!..lembra I-N-G-E-N-U-I-D-A-D-E. Ingenuidade. Isso. Aliás, não. Isso não. Ingenuidade é uma coisa que ela não tem. Seria o antônimo disso. Ou tipo, imagine um ícone ilustrando o rosto dela, desenhado ao lado daquele símbolo matemático que significa igual carregado com um riscadinho no meio. Diferente. Sabe qual é? Ah...cê sabe, você não é assim tão ruim em matemática como eu. Sim, porque eu sou péssimo em matemática. Sou mesmo. A prova disso é ela! Ela, poxa. A prova disso é ela. Ela e todas as vezes que insisto em subtrair de minha cabeça que me enlouqueceu, fingindo que nada aconteceu. Ela e essa surdez que me irrita de uma maneira tão grande, que acabo assistindo aqueles filmes de serial killer sem nem dormir. Sim, porque quando eu era normal, via esses filmes e dormia sempre antes do fim. Acho esse tipo de filme uma merda. Agora não durmo mais. Parei de fechar os olhinhos, babar, essas coisas. E sabe porquê? Porquê agora me identifico com a raiva dos sádicos. Identifico-me com psicopatas. Pois é, antes não me interessava por achar pura besteira de um roteirista sem nada na cabeça que escrevia cada cena pensando em dar susto na platéia. Agora não. Chego a entender a raiva e a frieza dos caras sabe? Às vezes torço até pra eles escaparem no final. Mas aí também que se dane. Eles se fodem sempre. Se não também não rola né? Quem vai querer pagar ingresso pra ver bandido vencer. A não ser que seja um filme B europeu. Um do Meireles ou daquela bicha do Almodóvar, por exemplo. Um pervertido. Cê já viu os filmes do cara? Só tem coisa bizarra. A merda é que a bichinha consegue prender pela trama. Os filmes do cara tem trama. Trama. Trama. Trama, trama, trama...mmmm...você deve estar me achando um neurótico ou no mínimo um sexista né? Pois é. Ah! Sim! Claro! Silogismo puro. Como não pude lembrar! Woody porra. Woody, Woody Allen. Aquele magrelo judeuzinho que comeu a enteada, sei lá. Porra, o Woody. Esse cara sim. Esse é mestre de neurose. No hall da fama dos neuróticos ele é “o cara”. Na calçada da fama dos neuróticos ele deve ter a primeira marca das mãos lá e no lugar mais destacado. O Oscar dos neuróticos deve se chamar Woody. Até consigo imaginar um figurão da indústria dizendo no púlpito “and the Woody goes to”. Neurose. E falando em classificações, significados e coisas do tipo, essa palavra podia facilmente ser traduzida no dicionário como algo do tipo “efeito que algumas mulheres impõe aos homens”. Mas eu comecei isso tudo falando em surdez né? Pois é. Nossa. Como a cabeça devaneia às vezes. Tô com fome. Acho que vou fazer um sanduíche. Será que dá tempo? Ela sempre demora mil anos pra se arrumar mesmo.
Jorge largou o boneco de plástico do Batman, de seu filho, que ouvia pacientemente o monólogo de seu esquizofrênico discurso ao sofá e adentrou a cozinha pra preparar seu lanche. Ao abrir o armário e buscar um prato onde pretendia repousar o sanduíche que acabara de fazer, ela apareceu. Nervosa e finalmente arrumada, não descansou enquanto Jorge não desistiu do pedaço de pão com queijo, assediando-o a deixá-lo na pia. Saíram pra noite da ópera. Jorge odiava ópera desde a faculdade. Helena sabia disso, mas não se importava. Apesar de escutar, ela era surda.