terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Poltrona 56

Entrando no trem atrasado, a cada passo reto em direção ao fundo daquela caixa uma pessoa diferente encarava-me com a mesma idéia original: rosnar em olhares de reprovação. Eram boas vindas que me deixavam a vontade para seguir avançando pelo corredor estreito, cabeça baixa, analisando o carpete sujo, chutando guimbas e pedaços de bilhetes velhos até encontrar minha cabine. Quanto mais me arrastava dentro daquele monte de ferrugem, a distância me fazia crer efusivamente nas letras garrafais que meu bilhete sustentava como sobrenome: classe econômica.
Há quase um ano sem ver minha mulher, ficava imaginando se ainda existiria uma quando chegasse em casa. Em minhas piores noites de bebedeira sempre tinha o mesmo sonho: estava lá eu, de pé, mas apesar do mesmo recinto, invisível para as outras pessoas. Num quarto decorado com papel de parede mofado, apenas um pôster com aquela língua dos Stones existia, preso com fita crepe próximo a um sofá velho. Nele uma ex de pernas abertas e sempre um cara diferente sem rosto, comendo a vadia com uma bestialidade dantesca. Eu disfarçava meu desespero contando a quantidade de espinhas na bunda dos caras. Nunca conseguia terminar de contar, acordando sempre empapado em suor, com a respiração ofegante e olhos vidrados. Era um sonho bem escroto.
Com a proximidade da cabine, minhas mãos começavam a derreter em um nervosismo não declarado, vergonhoso e infantil. Torcia para não me deparar com um obeso mórbido na poltrona 56. Também não agüentaria mais o cheiro de um representante daquele país colorido e me pegava, pasmem, rezando por um gringo ao meu lado ou um ser humano com higiene básica ocidental. Sentia-me podre, carcamano, moralista, quase um rato fascista. Foi então que me deparei com aquele par de olhos cor de piscina. Uma dona de coxas grossas com dentes tão brancos e alinhados, que cada divisão daquele sorriso lindo parecia contar com uma letra formando a frase bem-vindo-a-boceta-mais-rosa-de-sua-vida.
Tempos depois me divertiria respondendo as cartas de seu marido. Ela era casada com um pintor americano gordo e sensível, de nome havaiano, que, não me pergunte como nem por que, descobrira nosso rápido caso no banheiro daquele trem imundo. Durante meses ele seguiria me escrevendo ressentido, com um discurso afetado em moralismo, clamando por uma ética tão inocente quanto sua retórica. Esse cara não imagina como enriqueceu minhas noites de chuva com sua visão bebê-chorão da vida. É preciso sufocar a pena quando tratamos com sofredores convictos. São como baratas. Difíceis de morrer eles rodeiam os cantos de nossa existência, em busca de restos, assustando moças bonitas que só querem homens de verdade e um pouco de diversão enquanto não acham o amor de suas vidas.