segunda-feira, 24 de março de 2008

Passado presente

Pego um táxi e você fica para trás. Ali num passado presente, ainda tão difícil de dissociar da lista das coisas que mais gosto. Conheço pessoas diferentes, com anseios novos, medos antigos e aquelas mesmas utopias inocentes que me encantam. A gente vai ficando assim mais velho, ficando meio bobo, meio encantado demais com aquelas novidades que não se impõem, chegam sem forçar a barra. São sentimentos de uma doação sem aquela pretensão de pedir algo em troca. Mesmo que seja apenas um ainda. Um estágio inicial que carrega um frescor, em sintonia com novos cheiros, novas músicas e com as novas histórias que preciso. Vou desafogando e minha alma se purificando enquanto você fica pra trás. Vão passando jardins, grafites e pessoas em pontos de ônibus. Vão passando árvores, pássaros e a cor do asfalto. Vão passando as decisões que preciso tomar todos os dias e uma nova trilha segue encantando meu peito, com o francês e esse hebraico que não deixa meus ouvidos mais em paz. Ainda sinto você aqui perto de mim, mesmo tão longe. Ainda sinto muitas coisas e isso é bom. Essa capacidade de me emocionar ou a forma como os pêlos de meus braços se eriçam não deixam dúvidas quanto àquilo que sinto. Toda minha poesia foi feita pra te abraçar e me sinto mais homem assim. Sinto-me completo assim. Por mais que você a cada dia vá ficando mais e mais para trás. Num passado tão presente.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Notas do cotidiano nº36

O inferno deve estar cheio de restaurantes a quilo. Não existe lugar que represente mais o comodismo derrotista da individualidade humana. Velhas decrépitas sebosas carregadas por suas babás grosseiras bipolares chegam como crianças famintas em um fast food. Às vezes vêm de roupão, vindas da hidroginástica, às vezes com vestidos opacos cheios de manchas da sopa da janta do dia anterior. Atravancando a fila, vão deixando seus restos pelo caminho como quem divide uma herança que ninguém pediu para receber. São fios de cabelo em tonalidades de cinza variadas e pedaços de coisas indecifráveis grudadas em suas peles durante um tempo predeterminado o suficiente para cair nas bandejas seguintes. Além de cascas de feridas, um monte de cascas, cascas suficientes pra alimentar uma indústria de seitas de magia negra.
Com a irritante mania que a maturidade consumista criou, todos ali se vêem no direito de tocar, trocar, cheirar e até lamber a comida na fila de composição de seus pratos. Parece tudo liberado, bastando um pouco de imaginação, falta de senso e o fantasma de algum advogado de direitos do consumidor a tira colo. Do jeito que mexem na comida que não necessariamente vão levar, a impressão é que você está condenado a comer sempre alguma coisa que não passou pelo teste de qualidade da pessoa a sua frente.
Crianças parecem desenvolver centenas de dedos, já que não se contentam com seus irritantes sorrisos mesclados em choros, momentos de fúria e gozo quase sem limite de lógica no tempo e espaço. Elas estão ali como polvos descobrindo os prazeres do sentido do tato. Correm aonde não existe espaço e se mantém no limite de provocar um desastre. Às vezes sonho com uma cena dantesca: uma bandeja de feijão quente cai sobre minhas pernas e como uma espécie de ácido, segue derretendo meus jeans surrados. Acredite, não acho a mínima graça nisso. Meu analista diz que a falta de ferro que o feijão acaba me privando, fora de minha dieta desde que o sonho tornou-se recorrente, contribui pra minha aversão às traduções francesas dos obrigatórios russos de minha biblioteca. Eu acho isso pura frescura e continuo sem dizer que já voltei a comer feijão só para escutar esse tipo de observação tola e sem sentido que segue dragando meu dinheiro a cada nova sessão.
Têm as mulheres depressivas também, geralmente secretárias, bibliotecárias ou apenas mal comidas com sujeira de batom nos dentes. Entram na fila com suas grandes preocupações sempre alimentando a existência e seus manequins vazios: gordura, gordura e gordura. Acabo simpatizando mais com as gordinhas e suas misturas coloridas nonsense de carboidratos com proteínas. Uma vez uma dessas ancudas preparou uma verdadeira obra de arte, que culminava com um quilo de purê de batata, mais o grand finale: um imponente e grandioso morango em cima de tudo, num cume de uma aberração tão sem sentido que quase me forçou a pedi-la em casamento.

Mas confesso que nada até hoje superou um yuppie no final do verão passado. O cara surtou. Acho que trabalhava no mercado financeiro, mas comia ali de vez em quando por algum desses motivos que a gente nunca vai saber direito. Naquele dia de sol acachapante o bacana escondeu a própria pica no meio de dois rolinhos primavera e entregou o prato pra moça do peso. Antes de ser contido por meia dúzia de heróis do meio-dia, ainda conseguiu a proeza de arriar suas calças até os joelhos, terminando o tal número de circo sentado em uma travessa de pudim. Aquilo foi realmente estranho, mas deu mais sentido ao gosto de traseiro que a sobremesa daquele lugar sempre me lembrou.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Dali de onde ainda não dá pra me ver

Por trás dessa vontade de digerir meus textos ainda insistem existindo, uma penca de coisas pela frente. E ao contrário da obviedade sem sal associativa, dá pra enxergar muita coisa ali daquele ponto meio novo, discretamente ingênuo, meio na lanterna: daquele lugar de quem chegou agora na minha vida. Esse caminho todo que você pode querer percorrer não é tão emocionante como pensas. É cheio das histórias como as que a gente conta um pro outro quase de brincadeira, depois de tanta felicidade dividida, olhando pro teto e sem a menor vontade de entender o mundo logo ali fora. Normal que seja assim, estranho seria vestir-se como um soneto pedante e medroso, cheio de botões pra desabotoar, rimas mansas, declamações em mesas de bares da moda ou cheio de falsas verdades pra se redimir.
Esse caminho todo é menos perigoso do que pensas também. Até porque ele é completa e cuidadosamente moldado pra ser assim. A antologia do poetinha já diria isso como uma espécie de alcorão, bíblia ou guardanapo manchado, antes de sequer nos permitirmos provar desse mal. É um desastre certo que não chega a pedir, porque clama. É choro de profusão e fluído que se espalha entre nossos corpos nus e por cima de tudo o que nunca mais vai fazer sentido depois de provarmos cheios de curiosidade, aquilo que deixamos acontecer. Fica combinado que pro dia nascer feliz a gente precisa de bem menos que isso. Acaba sendo sempre muito mais do que imaginamos. Parece fácil, mas é uma pena só percebermos tal coisa quando estamos com as mãos tão atadas fora de nós. Com passagens de volta tão racionalmente reservadas, chegando a flertar com uma silenciosa rebeldia tediosa.
É de uma sujeira apaixonante esse pedaço de preguiça gostosa que me invade. Anda tudo tão rápido ultimamente que dou de ombros. Solto aquele riso gostoso de quem estava tão acostumado ao erro, que acabou deixando tudo virar um emaranhado de acertos levianos. Nem tenta me entender, as respostas mais completas que tenho estão bem ali: num lugar onde ainda não dá pra me ver.