segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Um catarro na poltrona da sala ou Johnny Rotten crisis parte II

Não deu nem tempo de achar que foi um sonho. Foi só tomar coragem pra sair e jogar o lixo fora que aconteceu. Porta entreaberta, passos de bêbado que não quer acordar a mulher e voilá: meu cuspe sentado na poltrona da sala, impassível. Não sei se o álcool remanescente em meu sangue (ou vice versa) tranquilizou-me, mas agi com uma naturalidade quase blasé. Peguei o caderno de esportes do jornal, sentei no sofá bem a sua frente e dobrei calmamente o calhamaço de folhas em quatro, depois de acender um cigarro. Ameacei começar a ler a matéria sobre o jogo do dia anterior, mas achei demais iniciar um mise-en-scéne tosco. Porra, não dava pra negar a realidade: o caralho do meu catarro estava vivo, na minha frente, sentado na minha sala. O tipo de situação que me fazia repensar meu ateísmo. Queria pelo menos poder fechar os olhos e crer em alguma coisa, sei lá, pedir pra alguém vestido de branco resolver as coisas por mim. Mas não, nem isso. Pelo menos o infeliz viscoso parecia menor do que ontem. Pelo menos ele não falava encostando, mas que diabos, apesar de redundância, o infeliz cuspia. Um perdigoto por vogal. As vezes a cada consoante. Cuspia como um ator em sua primeira fila. Como um cachorro secando seus pêlos. Fazer o que. Já passei por coisas piores. Pelo menos não me pedia dinheiro emprestado. Ficamos conversando até a noite cair. Depois de algumas garrafas de vinho cheguei até a achar o cara legal. Não podia ser diferente. Impossível não cair nessa armadilha. Aquele troço tinha saído de mim. Talvez fosse meu lado punk. Meu lado mais primata, mais inadestrável. Suas palavras eram objetivas, sagazes, de uma personalidade dilacerante. Acordei no meio da madrugada, dentes roxos, mesma roupa de dois dias atrás, o catarro esparramado no corredor. Cheguei a confundi-lo com minha bile, mas o danado respirava: estava dormindo. Abri uma cerveja e me dei conta que tinha furado com Cíntia. No celular, três ligações perdidas. Orgulhosa, jamais ligaria trezentas vezes. Gosto de mulheres assim. Mas ela não gostaria de saber que furei porque fiquei bebâdo conversando com meu próprio catarro. Fazendo a barba com um cuidado adolescente, inventei umas cinco desculpas diferentes pra não ter atendido suas ligações. Mas já sabia: ela não acreditaria em nenhuma delas.

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