terça-feira, 5 de outubro de 2010

Degustação

Acordei com frio. Corpo tenso, dentro da geladeira, num copo de uísque vazio. “Meu Deus, como vim parar aqui?”. Tentei não entrar em desespero. Desci pro andar de baixo, outra prateleira, até conseguir alcançar a porta. Fiquei por quase duas horas ali, enrolado num pedaço de plástico de embalagem de pão, tentando me aquecer. Alternava momentos sonolentos e certa vertigem, torcia pra tudo não passar de um sonho. De repente um estampido. Uma luz branca atingiu-me como uma bomba. Mesmo com pálpebras fechadas jamais sentira algo igual. Uma tentativa frustrada de avistar algo cegou-me completamente. Senti-me indefeso, vulnerável, pulei e corri trôpego como um rato bêbado por entre as pernas de um insone ladrão de geladeira, o salvador de minha existência. Reconheci a sala do meu próprio apartamento. Duas mulheres gigantes dormiam nuas como anjos enroscados no sofá. Pelo chão cheio de revistas espalhadas, uma mancha gigantesca de vinho desenhava-se como uma lagoa. Sua fonte era uma taça caída, virada em cima de um jornal. Abaixei-me com sede como quem bebe num espelho d'agua e logo estava entorpecido. Deitado e misturado, mexia e brincava infantilmente com meus pés e braços dentro daquela piscina rasa etílica. Masturbei-me fitando o par de bundas imóveis. Eram grandiosas e perfeitas, voluptuosas, do tamanho de um prédio de quatro andares. Sequei meu corpo roxo num pedaço de guardanapo sujo e continuei andando pelo apê. Ao chegar a meu quarto estranhei minha própria versão em grande escala dormindo, só e de cuecas. O ambiente carregava a mistura de um cheiro enjoado e agridoce de álcool, cigarros e suor, que inundava meu pequeno nariz. Fiquei olhando aquele corpo grotesco, confuso, tentando entender tudo aquilo, tentando entender como poderia ter ido parar na geladeira dentro de um copo vazio. Pela primeira vez senti medo, uma espécie de solidão e algum calafrio. Imaginava como agir se topasse com algum inseto. Tentei fazer algumas flexões, cantei desafinado, corri de um lado pro outro e mijei no canto da cama, pra matar o tempo. De repente meu eu gigante acordou, coçou os olhos, esticou as mãos como quem se espreguiça e sem piscar, veio diretamente em minha busca. Paralizado, apenas assisti. Meus dedos gigantes seguravam-me com cuidado, levantaram-me até a altura dos meus olhos e logo um som ensurdecedor tentou dizer algo sem sucesso. Era uma pressão sonora densa, tão alta como graves estourando as caixas de um soundsystem jamaicano. Gritei, tentei conversar, mas nada adiantou, minha voz provavelmente valia menos que os decibéis de um zunido de mosquito. De carona na palma de minha própria mão fui levado até a sala e depositado com cuidado dentro da taça de vinho vazia que estava largada pelo chão. Observei enquanto meu Big-me acordava as duas moças com cuidado, beijo nas testas, gesticulando e apontando pra mim. Lá estava eu como uma atração freak de circo: nu, do tamanho de um cigarro, vulnerável e preso numa vitrine. As duas gostosas sorriam enquanto andavam lentamente em minha direção. Meu corpo arrepiava-se. Pensei em alertá-las sobre a minha porra no chão da sala, mas desisti. Olharam-me como duas gatas fitam um peixe dando sopa. Confabularam por instantes e com um ar sexy e malicioso, abraçaram com seus dedos finos uma garrafa ao meu lado, apontando seu gargalo pra mim. Era uma sensação indescritível tomar uma ducha de Rivalta, que despejado, lambia meu corpo até o nível do vinho ultrapassar minha cabeça. Poderia partir assim, pensei, num mar tinto, sob o poder de duas lindas mulheres nuas. Todos os meus dias de sofrimento, minhas desilusões, empregos de merda, desamores, originais rejeitados, derrotas...tudo isso teria valido mais a pena. De repente a taça começou a rodar. Estava realmente feliz. Em instantes seria degustado por uma puta sem nome, ávida por sentir o gosto do meu corpo em sua língua feminina.

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