sábado, 16 de setembro de 2006

Shakespeare and Company

São livros entulhados até o teto em estantes de madeira escura, pela imaginação que uma foto antiga nos faz crer. Mobílias cuidadosamente espalhadas por um espaço relativamente ralo. Belamente povoado por excitantes calhamaços, pedaços de letras, quem sabe partes até de histórias inacabadas ou ocultas, pelo chão. Uma mesa redonda, esta sim, indiscutivelmente negra, serve de pousada para cotovelos de notáveis anônimos ou não, que divagam sobre poesia, literatura ou assuntos corriqueiros trajando uma vã contemporaneidade. Sinto-me como um boxeador, poeta, imerso em uma grosseria estúpida que vez ou outra faz aflorar belas palavras. Sim, em certos momentos belas palavras. Mas penso no bigode manchado de cigarro de uma intragável visita não convidada em um café e reflito se realmente é possível obtermos escolha quando palavras são tão violentamente regurgitadas, como a vontade de achincalhar um fanfarrão. Essa pobreza que me consome e tira-me o sono, enriquece minhas vielas e minhas noites de livro, com luzes de luminária em meu quarto grátis. Ainda grátis. Questionam-me sobre carreira, contas e dívidas. Questionam-me sobre meu diploma, meus objetivos e meus sonhos. Porém muitas vezes não querem nem realmente ouvir minhas idéias. Verdadeiramente não. Dá-me sono a cambada de excêntricos chatos que povoam essas mazelas diárias de falta de lirismo. Mas tudo melhora quando ainda vejo em mim o tal boxeador poeta. Sou um pouco fruto dessas marcas em meu rosto, em meus punhos. Sou minhas histórias, minhas mentiras e minhas paixões inventadas. Sou eu numa cama amarrada. Sou eu querendo surrar e querendo editar calhamaços. Sou eu insistindo em ser condizente com minha linguagem pouco compreendida e muito julgada. Poderia ser eu ali, entre Joyce, Sylvia Beach e Monnier. Falando um francês terceiro-mundista e talvez sendo alvo de olhares exóticos preconceituosos. Ou possuindo um malte em mãos e organizando uma ingênua aventura em alguma das reuniões que povoam minha cabeça cheia de idéias e festas bobas. Quando penso em Hem lamentando o enforcamento de um conhecido pintor em alusão a metáfora das sementes, pergunto-me porquê esse caminho também ele escolheu. Covarde, preferiu uma espingarda. Mais rápida. Escritores são os seres corajosos mais covardes que conheço. Sempre prontos a inundar um papel de letras alinhadas a todo tipo de crítica ou em demasiado estreitamento com seu próprio umbigo, ávidos por belos elogios. Volto a divagar pelos livros e chego a sentir o fedor de Ford Madox Ford ao meu lado. Por instantes sinto-me ali, procurando talvez uma légitime ou régulière que me faça ter a mesma vontade de partir para casa antes da noite virar sol. Sigo dando leves goles pra esquecer que não existe pecado em se punir por vontade de fazer poesia pra quantas luas puderem existir, por mais bela que cada uma delas possa parecer. Que não se ouse instigar uma suposta proibição de olhar o luar. Pra isso já basta o cretinismo que há de se conviver e compartilhar com quem quer que seja. Volto-me novamente para a foto. Penso em como poderia olhar e imaginar-me ali por horas a fio. Eu e meu traje surrado e amassado em frente a Shakespeare and Company. Provavelmente expatriado.

segunda-feira, 4 de setembro de 2006

Cinema

Atravessando ruas buscava uma história, mas pairava seus brancos de recesso lírico em calçadas estreitas, vitrines alouradas, bares estranhamente limpos demais e música. Para os sons que colhia, necessário seria debate-los só. Monólogos independentes de toda aquela cena organizada. Tamanha complexidade das melodias que juntavam-se uma a uma sem permissão, mas com propriedade e elegância. Rostos eram molduras pálidas de leste europeu ou rosadas e felizes como infâncias de berço. Podiam ser irônicas como as putas inseguras, negras como um Zimbábue livre ou maquiadas num estilo mambembe de circo. Obviamente existiam aquelas frontes sujas de variados pós, fuligem e até mesmo alguns retalhos feitos por armas brancas. Uma infinidade de esboços vivos de emoções estampadas em pele remexida. Dava até vontade de colecioná-las em fotos, montando uma exposição de quadros presos nas paredes de uma mente branda qualquer cheia de lamúrias. Cheiros eram protagonistas de sensações e universos que surgiam e desapareciam conforme a visão. Solitárias flagrâncias da cidade. Aquela cena urbana soava a natureza morta, mas letreiros e sinais de trânsito faziam tudo voltar à vida. Facas e pólvoras com fogo disputando espaço com damas, senhores empresários e aposentados acovardados em ares de abandono. Bancos. Espaços perseguidos pelo cansaço do viajante, pelo questionamento do passante. Mendigos como fauna. Origem brutal que diferencia espécies. Flora composta por canteiros, jornais, folhas secas e marquises infiltradas de concreto e vida. Apenas ruas de um centro latinoamericano sitiado numa cidade com stencils clamando por um Spike Lee menos racista, mas fascinantemente bairrista. Pombos e trocos e tudo que irrita fazendo pirraça na chuva que deságua em rios, em bueiros. Esgoto de grana que circula por cada idéia genial inspiradora, boa de firmar nova prosa em cerveja gelada. Balcões riscados por olhares mestiços de luta. Suores de pano sujo, de costura humilde. Sapatos caros travando pernas de músculos caídos. Risadas ecoando sem trazer malditas histórias. Nada traria. Nem atravessar malditas avenidas todo dia. Nada traria.