quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Enquanto não estamos nus
domingo, 19 de dezembro de 2010
O casamento
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Aclive
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Poema rouco
domingo, 7 de novembro de 2010
Nós
domingo, 24 de outubro de 2010
Duas frases num esparadrapo preso no espelho
terça-feira, 5 de outubro de 2010
Degustação
Acordei com frio. Corpo tenso, dentro da geladeira, num copo de uísque vazio. “Meu Deus, como vim parar aqui?”. Tentei não entrar em desespero. Desci pro andar de baixo, outra prateleira, até conseguir alcançar a porta. Fiquei por quase duas horas ali, enrolado num pedaço de plástico de embalagem de pão, tentando me aquecer. Alternava momentos sonolentos e certa vertigem, torcia pra tudo não passar de um sonho. De repente um estampido. Uma luz branca atingiu-me como uma bomba. Mesmo com pálpebras fechadas jamais sentira algo igual. Uma tentativa frustrada de avistar algo cegou-me completamente. Senti-me indefeso, vulnerável, pulei e corri trôpego como um rato bêbado por entre as pernas de um insone ladrão de geladeira, o salvador de minha existência. Reconheci a sala do meu próprio apartamento. Duas mulheres gigantes dormiam nuas como anjos enroscados no sofá. Pelo chão cheio de revistas espalhadas, uma mancha gigantesca de vinho desenhava-se como uma lagoa. Sua fonte era uma taça caída, virada em cima de um jornal. Abaixei-me com sede como quem bebe num espelho d'agua e logo estava entorpecido. Deitado e misturado, mexia e brincava infantilmente com meus pés e braços dentro daquela piscina rasa etílica. Masturbei-me fitando o par de bundas imóveis. Eram grandiosas e perfeitas, voluptuosas, do tamanho de um prédio de quatro andares. Sequei meu corpo roxo num pedaço de guardanapo sujo e continuei andando pelo apê. Ao chegar a meu quarto estranhei minha própria versão em grande escala dormindo, só e de cuecas. O ambiente carregava a mistura de um cheiro enjoado e agridoce de álcool, cigarros e suor, que inundava meu pequeno nariz. Fiquei olhando aquele corpo grotesco, confuso, tentando entender tudo aquilo, tentando entender como poderia ter ido parar na geladeira dentro de um copo vazio. Pela primeira vez senti medo, uma espécie de solidão e algum calafrio. Imaginava como agir se topasse com algum inseto. Tentei fazer algumas flexões, cantei desafinado, corri de um lado pro outro e mijei no canto da cama, pra matar o tempo. De repente meu eu gigante acordou, coçou os olhos, esticou as mãos como quem se espreguiça e sem piscar, veio diretamente em minha busca. Paralizado, apenas assisti. Meus dedos gigantes seguravam-me com cuidado, levantaram-me até a altura dos meus olhos e logo um som ensurdecedor tentou dizer algo sem sucesso. Era uma pressão sonora densa, tão alta como graves estourando as caixas de um soundsystem jamaicano. Gritei, tentei conversar, mas nada adiantou, minha voz provavelmente valia menos que os decibéis de um zunido de mosquito. De carona na palma de minha própria mão fui levado até a sala e depositado com cuidado dentro da taça de vinho vazia que estava largada pelo chão. Observei enquanto meu Big-me acordava as duas moças com cuidado, beijo nas testas, gesticulando e apontando pra mim. Lá estava eu como uma atração freak de circo: nu, do tamanho de um cigarro, vulnerável e preso numa vitrine. As duas gostosas sorriam enquanto andavam lentamente em minha direção. Meu corpo arrepiava-se. Pensei em alertá-las sobre a minha porra no chão da sala, mas desisti. Olharam-me como duas gatas fitam um peixe dando sopa. Confabularam por instantes e com um ar sexy e malicioso, abraçaram com seus dedos finos uma garrafa ao meu lado, apontando seu gargalo pra mim. Era uma sensação indescritível tomar uma ducha de Rivalta, que despejado, lambia meu corpo até o nível do vinho ultrapassar minha cabeça. Poderia partir assim, pensei, num mar tinto, sob o poder de duas lindas mulheres nuas. Todos os meus dias de sofrimento, minhas desilusões, empregos de merda, desamores, originais rejeitados, derrotas...tudo isso teria valido mais a pena. De repente a taça começou a rodar. Estava realmente feliz. Em instantes seria degustado por uma puta sem nome, ávida por sentir o gosto do meu corpo em sua língua feminina.
sábado, 2 de outubro de 2010
Mulheres que escrevem
Elas têm uma segurança que ameaça. Uma inteligência que intimida. Geralmente sabem se vestir muito bem de um jeito que não acompanha a moda cafona das vitrines. Esse alvoroço não combina com elas. Confesso que todas mexem comigo. Sinto-me indefeso, meio deslumbrado, acho que vou ser desmascarado a qualquer minuto. Minhas convicções em sentir-me uma farsa são baseadas integralmente nelas. As danadas me emocionam. Esse lado quase negro da vida surge como um segredo entre nós. Não acreditamos no mundinho perfeito, nas famílias da TV com casais de filhos e suas medalhas de judô. A gente até quer acreditar nisso (elas um pouco mais). A gente até pode acabar assim. Mas é mais divertido e lógico esse nosso costume de enxergar a beleza da vida sem filtros. A gente curte essa escrotidão. Mesmo porque achamos o belo em si realisticamente encantador. Os desvios de caráter, as atitudes intempestivas ou movidas pela pressão, as maldições do amor, a marginalidade intelectual. Tudo isso é real, é visceral, é dia a dia, e em alguns casos, pasmem, até status quo. Acredito nesse clichê bunda-mole que prega não existir personagens de papel único por aí. Seria tedioso demais. É de uma inocência grotesca achar que as pessoas podem fazer parte de algum script. Por isso em nosso sangue corre essa coragem besta que nos afasta do medo. Por isso elas me conquistam como um manifesto mal escrito, como jovens seios duros, como dezenas de primeiros discos, como um corpo nu nos segundos que precedem um esporro. Prefiro as sarcásticas, as despudoradas, as loucas, as de passado duvidoso. Prefiro as putas, as neuróticas, as mimadas, as que já não têm esperança. São somente elas que podem me divertir enquanto sigo deixando claro pro mundo o quanto posso fazê-lo sorrir. São elas que me deixam de pau duro, cabelos arrepiados e mudos, com a boca seca de tanto querer. Elas são toda essa lama viva que invade minha cabeça quando busco alguma compreensão. Elas são a mãe que nunca tive e a família perfeita que o mundo inteiro jamais vai ter. São minha fonte, meu desejo, toda essa nossa vontade de foder. São elas, malditas, as mulheres que escrevem. Responsáveis pelo pouco sentido que os bares têm, em motivar conversas ridículas, aos doces momentos que, pródigos, podem bicar pra longe o infame medo de errar. Nosso hábito de discordar em conluio me liberta. E elas seguem tolerando minha farsa por acreditar que todos os meus eu te amo etílicos, nasceram sonhando em ser ditos no altar.
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
Sem título II
Vem chegando a manhã em que vamos pagar todos os nossos pecados. Doando brinquedos, rasgando trapos em pensamentos vazios e sem direção. Foi anunciada sua derrota e o poder vai trocar finalmente de mãos. E ele está comigo, nos balcões de bar, nos poetas magros, nos andrógenos e bizarros. Agora é hora de rasgar todas as suas telas presunçosas com paisagens perfeitas, cuspir em quem anda dizendo por aí que a arte é uma grife, como tudo que leva assinatura fácil. Dá pra escutar seus gritos, seus pedidos de perdão e clemência. Mas eles vêm vindo. Eles estão determinados. São como caçadores, justiceiros, mercenários. Em nada absurda ternura carregam flores, palavras de amor, garrafas de vodka, bandeiras sem brasão e induzem quem passa ao ópio que vai inverter suas formas de pensar. Os de alma pequena, os embustes, as prostitutas intelectuais, os calhamaços falastrões, aqueles que sabem que sua farsa será descoberta. Todos estes choram, correm pros seus ursos de pelúcia, pra sua infância perfeita, pra suas lembranças da Disney. Agora não temos mais tempo pra temer as rédeas. Elas simplesmente não existem mais. Não, não fuja. Não seja ridículo, sua depressão faz parte dessa história. Seu trunfo pode ser justamente saber que também pode estar errado. Seu trunfo é rir de toda essa sua insegurança patológica, de todos esses seus remédios incríveis. Suas partes mais sujas foram abençoadas e transformaram seu mundo injusto em realidade divina. Você está livre, não tenha pena de si, ninguém vai te odiar nem cobrar nada. Mas ninguém o perdoará se continuar agindo como um peão sem direção aparente. Pode sorrir, eles estão por vir. Será fácil reconhecê-los. E suas mãos estarão sempre extendidas a quem nunca entendeu muito bem como ainda se pode cair na armadilha de preferir uma vida medíocre.
terça-feira, 28 de setembro de 2010
De mãos dadas ninguém pensa em morrer
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
De tudo
De tudo o que foi feito
só pra mim,
você passou e resisti.
Ficou o gosto, seu corpo
todo se escreveu
de novo em mim.
Estendeu-se em novo
um abraço,
um novo jeito meu
meio nosso jeito de criar
um velho jeito de lembrar
de tudo.
Se o que foi feito já acabou
fica assim
fica bem
vá andando
tô te olhando
não vou deixar você cair.
De tudo o que prometo
sei menos hoje
sou menos hoje
sei mais de mim.
Assim disfarço em riso.
Sorrindo
de todo grande defeito.
Se de todo jeito
de tudo o que foi feito
o que se fez
bem feito,
ficou.
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Noites tropicais
Ficava sentada em cima da mesa da cozinha, pernas cruzadas, cigarro na boca e queixo quase apontando pro teto. Aquele seu mesmo jeito estranho e sexy de me desafiar. Queria porque queria tatuar logo a perna direita, adorava aqueles desenhos old school. Mas mal tinha terminado de cicatrizar o último, já reclamava sem parar daquele peso assimétrico atrás de si. Sua boca dançava entre palavras vulgares, entre fortes e densas baforadas pra baixo. Concentrava-me no barulho alto da geladeira ligada. Funcionava como um mantra. Com a temperatura quente e úmida, tornava-me burro, lento e defensivo. Era como vertigem sua voz misturada ao zunido do motor, fumaça, luzes fortes refletidas desenhando um rastro pelo azulejo e cerâmica. Apesar de rara, acidentalmente surgia uma brisa, circulando por entre nossos corpos como um espírito amigo refrescando alguns instantes de pensamentos vazios. Ficava ali deitado no chão com pena do mundo, no mesmo lugar de sempre, estupidamente distraído. Solenemente despreocupado com sua voz aguda após a quinta ou sexta palavra mais alta. Deixava a doida ferver como uma panela prestes a explodir, para levantar de repente e, sem avisar, levá-la pelo colo até nossa banheira. Depositava seu corpo escultural e nu em água quase fria, que se comportava como peixe voltando ao rio. Ensaiava protestos em sussurros, em palavrões, antes de refugar, trôpega e sem relutar, seguir minhas ordens como uma cadelinha. Meus passos molhados riscavam um mapa de volta à cozinha. Agora sozinho preparava como um rei sob um chão de tabuleiro outra dose generosa de uísque com bastante gelo. Não precisaria nem tornar a pisar no tapete surrado do banheiro para prever o futuro. O castanho dos meus olhos veria suas mãos em sexo, seu rosto perdido e suas pernas balançando em gotas, como um convite de dedo indicador. Hora de jogar minhas roupas longe e reescrever outra noite como se fosse a última vez que faríamos amor.
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Interlúdio
O sol na cara cria um filtro meio Grains de beauté nos primeiros segundos do dia. Seu sorriso sincero afasta as nuvens do corredor. Afasta o mal. Afasta a dor. Passo a reconhecer os feirantes. Dou bom dia com os olhos, caminhando por um asfalto cheio de aromas. Já não brigo mais com meu despertador. De repente você me traz essa vontade de cuidar da minha saúde. Absurdo. Acho graça dos tapas que recebo na pele rabiscada. Acho graça da nossa vida. Nos meus braços, sem espaço, a tinta fica mais forte. Minha cor torna-se rubra e invade meu branco de sangue. Minha língua invade e traduz-se dentro de seu corpo. Ela fala sozinha. Você geme. O tempo corre lento: anda zombando da gente. E me pego falando sozinho. Desenhando corpos nus. Eles correm, tatuados, debochados. Sigo escrevendo. Protestando. Deixando meus livros caídos pelo quarto. Deixando a janela aberta. Tudo com esse filtro meio Grains de beauté. Tudo com essa música tocando pela milésima vez. Respiro forte. Fica fácil fazer poesia assim, com sua perna em cima da minha, louça suja na pia e aquele quadro triste e inacabado, pedindo atenção no outro canto do nosso quarto.
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Um catarro na poltrona da sala ou Johnny Rotten crisis parte II
Não deu nem tempo de achar que foi um sonho. Foi só tomar coragem pra sair e jogar o lixo fora que aconteceu. Porta entreaberta, passos de bêbado que não quer acordar a mulher e voilá: meu cuspe sentado na poltrona da sala, impassível. Não sei se o álcool remanescente em meu sangue (ou vice versa) tranquilizou-me, mas agi com uma naturalidade quase blasé. Peguei o caderno de esportes do jornal, sentei no sofá bem a sua frente e dobrei calmamente o calhamaço de folhas em quatro, depois de acender um cigarro. Ameacei começar a ler a matéria sobre o jogo do dia anterior, mas achei demais iniciar um mise-en-scéne tosco. Porra, não dava pra negar a realidade: o caralho do meu catarro estava vivo, na minha frente, sentado na minha sala. O tipo de situação que me fazia repensar meu ateísmo. Queria pelo menos poder fechar os olhos e crer em alguma coisa, sei lá, pedir pra alguém vestido de branco resolver as coisas por mim. Mas não, nem isso. Pelo menos o infeliz viscoso parecia menor do que ontem. Pelo menos ele não falava encostando, mas que diabos, apesar de redundância, o infeliz cuspia. Um perdigoto por vogal. As vezes a cada consoante. Cuspia como um ator em sua primeira fila. Como um cachorro secando seus pêlos. Fazer o que. Já passei por coisas piores. Pelo menos não me pedia dinheiro emprestado. Ficamos conversando até a noite cair. Depois de algumas garrafas de vinho cheguei até a achar o cara legal. Não podia ser diferente. Impossível não cair nessa armadilha. Aquele troço tinha saído de mim. Talvez fosse meu lado punk. Meu lado mais primata, mais inadestrável. Suas palavras eram objetivas, sagazes, de uma personalidade dilacerante. Acordei no meio da madrugada, dentes roxos, mesma roupa de dois dias atrás, o catarro esparramado no corredor. Cheguei a confundi-lo com minha bile, mas o danado respirava: estava dormindo. Abri uma cerveja e me dei conta que tinha furado com Cíntia. No celular, três ligações perdidas. Orgulhosa, jamais ligaria trezentas vezes. Gosto de mulheres assim. Mas ela não gostaria de saber que furei porque fiquei bebâdo conversando com meu próprio catarro. Fazendo a barba com um cuidado adolescente, inventei umas cinco desculpas diferentes pra não ter atendido suas ligações. Mas já sabia: ela não acreditaria em nenhuma delas.
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Duas ou três poesias e o vento
E bate a mesma sensação de tempo perdido. Macaco velho, fico dando voltas dentro de minha própria cabeça. Recuperando arquivos. Checando novas possibilidades para buscar algum sentido em todo esse nosso fracasso. Até derramar tudo. Até me sentir vazio. Aí bate a onda. Porque é estranho não me sentir leve desse jeito. Tá foda não admitir que tô feliz. Já não me assusto ao perceber as risadas que andam freqüentando a rádio do meu peito. Não tô mais pagando jabá pra entrar nessa vibe. Bate até uma pena por esquecer você tão rápido, mas esse papo de sofrer por sofrer ficou perdido entre os meus vinte e poucos anos. A boa do dia? Já não quero mais te mandar pro inferno. Porque minhas manhãs agora têm outros cheiros, outros ventos, outros planos. Tô legal de motivos. Deixo você colecionar sozinha todos os que te fizeram sentir raiva de mim. Se já não tenho a menor pretensão de achar que vou fazer falta na sua vida, é porque cansei de abdicar da minha.
. . .
Lindo, ela diz. A preguiça de falar me reduz a um aceno, contraindo meu rosto até formar uma espécie de agradecimento com minhas expressões. Mas acabo sussurrando algo. Digo que ainda o acho meio frágil. Que preciso pedalar um ou outro tom nesse novo texto. Ela caga um balde pra isso e pula em cima de mim. Começamos a nos beijar. Deixo meu caderno deslizar e cair como se naquele momento reduzisse nosso compromisso ao nada. O vento levanta duas ou três poesias inacabadas que, sortudas, testemunham um casal com vontade quase literal de se comer.
sábado, 5 de junho de 2010
Três putinhas e uma Bic
Priscila era a mais porca das três. Só não a expulsava daquele chiqueiro porque a danada tinha uma dicção sensacional. Até hoje me pergunto como uma pessoa que sabe ler tão bem pode ter tido uma vida tão fracassada. Ela vivia em minha cozinha. Dormia por ali mesmo em cima dos restos, migalhas e jornais velhos. De vez em quando adorava sentar ao seu lado e observar a bagunça que as formigas faziam ao seu redor. Quando estava bêbado o bastante de gim ficava ali, rente a seu corpo morto e flácido, vendo a farra dos insetinhos insolentes. Acho que até essas criaturas ridículas tinham nojo dela. Passavam desenhando sua anatomia, como aquelas pinturas policiais de cadáveres no chão. Contornavam a puta, mas não encostavam nela. Jamais encostavam nela. Vivia com minha aposentadoria, mais uma gorda bufunfa recebida por um acidente sofrido numa loja de departamentos. Uma bela quantia acrescida de juros e correção monetária, por causa de uma bola perdida na sessão de caça e pesca. A bola, no caso, era uma de minhas duas mesmo. Tomei um tiro bem no meio do meu caralho. Não exatamente no centro a ponto desse texto ser assinado por um eunuco. Foi mais pra esquerda. Certeiro na minha bola esquerda. O filha da puta engomadinho do meu advogado era ganancioso e sabia das coisas. Me disse que aquele rifle jamais poderia estar carregado. Perdi uma bola, mas meu pau ainda podia levantar. Com o dinheiro que ganhei, pude viver por uns trinta anos tomando minha cerveja barata e comendo os cozidos que Karina preparava. Karina, Karina, a viciadinha. Ficava um porre quando a abstinência batia pesado. Uma vez bateu uma fissura daquelas na pobre coitada, no meio de uma final de campeonato. Lembro de seu corpo pesado, sua expressão como a de um gorila, espumando. Tive que trancá-la dentro de casa e assistir o jogo no boteco da rua. Foi quando conheci e tomei um porre com Laura. Nossa certidão de casamento foi feita em um pedaço do cardápio. Tudo muito romântico. Dali em diante, acabamos formando o que seria uma das famílias mais estranhas do apartamento 401 do 59: eu e minhas três putinhas. Pri, Karina e Laurinha não se importavam em me dividir. E eu não era lá o que se pode chamar de um ótimo partido. Mas deixava as três viverem ali sem pagar o aluguel, fazia vista grossa para as suas escapulidas e contentava-me com o que realmente me fazia feliz: ouvir meus textos lidos em voz alta. Sentia-me melhor que Bandini. Sentia-me vivo. Sentia-me lido. Todo escritor, do mais fajuto carinha que joga uma vergonha alheia num guardanapo e pede pro garçom entregar à uma bela senhorita no outro lado do bar, até o cara que recebe um pomposo cheque pelo adiantamento de um virtual novo best seller. Todo escritor, todos, sem a menor sombra de dúvidas: querem ser lidos. E ser lido em voz alta, meu camarada, não é ter o guardanapo dobrado e colocado no bolso ou um novo livro comprado e jogado na estante. Ser lido em voz alta é ter realmente seu texto saboreado, fodido, esquartejado, cagado, dispersado ou, quando se consegue chegar a mais suprema consagração: ser lido em voz alta para você, que o escreveu. É como o paraíso. O cumprimento de uma missão terrena. Os segundos após você tirar a calcinha da mulher de seus sonhos e que antecedem a melhor foda da sua vida. É mais ou menos isso.
Foi difícil deixar aquele lugar e ter que fugir da polícia depois dos sessenta. Sempre achei que essa idade me traria juízo. Que estaria na Itália criando cabras ou sei lá, com dígitos de sobra no banco, morrendo em alguma espelunca de overdose por misturar ecstasy, pó e remédio pra impotência. Mas encrenquei com um imbecil que deixava bilhetes anônimos por baixo da minha porta, falando mal dos textos que minhas putinhas liam em voz alta. No começo achei até simpático o cara me elogiar em meio a palavrões e xingamentos. Depois encheu o saco. Foi fácil demais achar o desgraçado, devia existir algum tipo de sadismo no cara pro otário deixar tantas pistas sobre como chegar até ele. Fora a ridícula idéia de ter ido pessoalmente deixar os bilhetes um a um debaixo de minha porta. Matei-o com uma caneta Bic no pescoço. Aprendi isso num daqueles filmes horríveis que passam de madrugada. É impressionante o que a televisão pode ensinar pras pessoas hoje em dia.
domingo, 23 de maio de 2010
Roland Garros
Saibro. Não me dava bem no saibro. Meu pai e toda aquela merda de bons modos e escolas caras e etiqueta no jantar me empurraram pra porra do tênis. Só serviu pra comer uma ou duas gatinhas com o cuzinho recheado de grana que, pra variar um pouquinho, desistiram de mim quando não me adaptei ao modus operandi de ser tratado como uma de suas novas bolsas de grife. Mas uma delas até que era bem gostosa. Cretina da pele cor de leite desnatado.
Saibro. Nunca me dei bem no saibro. Escorregava demais. Chegava em casa com canelas vermelhas, arranhões e a risada do meu instrutor martelando na cabeça. Deitado naquele buraco com as mãos amarradas foi exatamente nisso que uma espécie de Google mental localizou quando aquele filho da puta escorregou. Saibro. Alguns podem chamar isso de milagre. Eu chamo isso de um dia bom. A bala disparada por ele na queda deve ter passado ao lado da minha costela, pude sentir o calor da desgraçada. A cabeça do cretino não teve o que podemos chamar de sorte. Uma das pedras daquele buraco, meu portal para o inferno, era do tamanho de uma manga e abriu uma boceta maior que a de uma puta velha em cima de seu olho esquerdo. Após isso tudo seguiu em paz em uma longa noite de espera. Era quase romântico. Seu sangue quente jorrando em meu peito, enquanto eu ficava lembrando da porra das aulas de tênis. Da porra do saibro. Do cu de uma daquelas patricinhas. E foi assim que livrei meu traseiro daquela maldita cova rasa. De manhã cedo um viciado achou estranho quando viu aquele negão em cima de mim. Ainda em estado de choque me tirou debaixo daquele monte de carne podre. É impressionante como a gente fede. É impressionante como quando nossa alma resolve tirar umas férias, nosso corpo vira um monte de fezes. É isso que nós somos sem alma. Fezes.
Lá no serviço até hoje todo mundo me considera um cara de sorte. Ninguém entende como me livrei dessa. E sempre quando tiram uma bala nova do meu corpo, geralmente na manhã seguinte a uma noite daquelas, dá pra ouvir de longe o pessoal sussurrando. Os urubus mal sabem falar sua língua mãe, mas me chamam de “Roland Garros”. Falam que eu tenho o corpo fechado. Tô cagando pra isso.
domingo, 9 de maio de 2010
Saideira
Abriu os olhos após um micro cochilo no balcão de seu boteco preferido. Demorou certo tempo para cair a ficha de que toda a população da Terra havia sido dizimada. Acordou com uma baita vontade de tomar um grau e se divertiu por alguns dias saqueando garrafas de cachaça dali mesmo e da mercearia na esquina, até se dar conta do tamanho da encrenca. O pique esconde sem precedentes garantiu o sumiço inclusive dos pobres animais. Nem o sarnento sem nome, aquele vira lata que sempre mijava na árvore de natal da loja de departamentos da rua, tinha sido poupado. Pra ele, animais, mesmo os do tipo que mijam em presentes cenográficos, mereciam uma espécie de clemência.
Foram meses se masturbando, bebendo e apreciando uma dieta especial: exatamente tudo o que uma nutricionista indicaria ao contrário. Morrendo de tédio e abstinência pelo fim do estoque de cana em seu quarteirão, resolveu se aventurar pelo bairro. Já havia desenvolvido certa habilidade para lidar com esse monte de dias iguais e até com a falta de luz, gás e água encanada. Diferente de todos os filmes e histórias de fim do mundo, ali as pessoas pareciam ter se desintegrado num estalo de dedos. Não existia um panorama de caos, guerra ou luta pela sobrevivência. Ninguém precisou se digladiar ou comer um bife da bunda de seu vizinho. As pessoas pareciam ter simplesmente sumido. Coisa de um peido. Baita peido, aliás.
Um ano após o dia que o planeta despachou todos os seres humanos como um adolescente se livra de suas obrigações, seu, até ali, único condômino, avistou uma grande porta brilhante. Ao seu lado: um homem de terno. Pensou em correr pra lá. Tinha tanta coisa pra perguntar, pra conversar, pra compartilhar. Mas paranóico por todo aquele tempo sozinho, resolveu chegar mais perto e apenas estudar o terreno. O homem de terno fazia as honras como uma espécie de porteiro ou leão de chácara. Impassível, seguia guardando a tal entrada. Obviamente para ninguém, pois não havia alma viva no planeta para aparecer de pulseira vip no braço e adentrar o recinto.
Alguns dias depois, com a barba gigantesca, a mesma camisa do Flamengo de um ano antes, mas com uma confiança nova e contundente transbordando em seus olhos, resolveu dirigir-se até a porta. Não pôde deixar de notar a surpresa do homem de terno, que parecia conhecê-lo. Ao chegar até sua frente, disparou:
“Como é que eu faço para entrar aí, meu camarada?”
“Mermão, acho que agora tu se fodeu. Mas vá lá, pode entrar”
Finalmente voltou para casa. Ficou sem a mulher, mas até hoje ela jura que o canalha contou essa história sem gaguejar, nem piscar uma só vez.
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Restart
No corpo dela, quase todo coberto por tatuagens, ainda sobrava espaço pra muita pele vermelha. Daquele tipo rubro pós tapa. Distante da poesia, simplificara seu ímpeto criativo tomando vodka. Escolhia muito bem quem tolerar ao seu lado, era preciso passar no teste: não ser sacal. Impossível impressioná-la com um carro ou uma conta bancária generosa, já que a umidade em sua boceta não costumava ter ligação direta com medalhas sociais. Isso pelo menos não me tirava do jogo. Ainda não a conhecia quando esbofetei seu drink e quase joguei seu corpo frágil pro outro lado do balcão. Naquele ponto duas únicas coisas chamaram minha atenção. 1) A pin up na pele branca de uma de suas lindas pernas. 2) Os cacos de vidro da caneca quebrada em meu queixo, pousados na madeira podre do chão do Saloon. Prazer. Lá estava eu conhecendo uma nova mulher com ótimas credenciais pra começar uma conversa: nocauteado, bêbado e, talvez a única coisa mais próxima de um leve romantismo, jogado aos seus pés.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Por todo esse barulho que o silêncio faz
O silêncio faz um barulho danado quando a gente insiste em não pensar mais naquilo que, tá na cara, não vai sair da cabeça tão cedo. Cada parágrafo, cada poro e toda referência seguem impregnados. Desassociar sentimentos soa tão patético como separar a cola de um Jack após preparar a porra do drink. É impressionante como é impossível estar pronto pra um momento que, não importa como, vai te machucar. São socos no queixo em seqüência, murros no nariz entortando uma zona de conforto, num desconforto que te tira de órbita. Aí você fica vagando pelo espaço à procura de um cheiro, de alguns adoráveis defeitos e de cada um dos planos que insistiu em fazer. De que adianta saber que é preciso viver o hoje? Pra que essa merda de cagação de regra? Todo mundo no fundo sabe que a maioria dos planos nunca chega a ser cumprido. São quadros de cores belíssimas, com pinturas esquecidas em porões que ninguém vai conseguir admirar jamais. Sonhos que flertam com uma inocência bendita. De um romantismo quase ultrajante. E suas desvantagens insistem em se fantasiar de vantagens. E outra vez o chão treme. Outro barulho seco. Outra vez você está na lona. Posso sentir o aroma de minha sina. Ele é acre, abafado, me causa asma. Mas é entrecortado por uma série de perigosos flashes. São nocautes magníficos onde ganho fama, aplausos de merda, um pouco de dinheiro, bocetas e algumas fotos de jornal. Contudo, o que ainda segue me atraindo é a droga desse chão, que se assume tão mais infinito que o céu. Não me ensinaram a olhar pra cima, então fico andando por aí cabisbaixo. Sigo revestido por uma coragem falsa, dentro desse meu medo de tropeçar de novo. Tenho tanta fé que tudo vai acabar bem, que meu peito deixa de morrer um pouco mais hoje, só pra escrever sobre a falta que me faz o seu amor.
terça-feira, 16 de março de 2010
Jacira e a italianada
quarta-feira, 3 de março de 2010
Loop
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
Croix Faubin
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
Pronto pra morrer de novo
Alheia a tudo, alheia a sua vida, distraída de nascimento, Marie propôs um brinde. Me recusei e fui fumar um cigarro na cozinha. Chiara me beijou assim, sem motivo, com sua boca exalando novidade. Da pequena janela ao lado de um quadro espelhado antigo, rachado e cheio de rococós, pudemos assistir toda a bela covardia laranjoroseada do sol saindo de cena pelos fundos de um apartamento virado pra uma rua triste. Depois era domingo, depois seria terça e seria quarta e seria a chuva que traria nossa consagrada tristeza ao cair de um novo dia. Depois tudo ficaria a sorte do tédio e de nossa vontade contínua de deitar no colo de nossos pais. Mas quem nasceu com pés tão perfeitos como Emanuelle, com a distração tão inocente de Marie ou com a leveza de fazer qualquer chuva parar, como Chiara, jamais poderia chorar seus desesperos por assisistir o tempo passar tão rápido. Nossa estupidez estava reunida numa foto instantânea. Nossa estupidez era o que nos mantinha vivos, livre dos aparelhos. Celebrei minha fuga. Celebrei cada um de meus fracassos. Celebrei tudo isso colorindo o que me deram de presente sem prazo de validade. Meus valores eram ainda minha grande arma. Meus discos estavam a salvo. Minha poesia carregava aquele ridículo gostoso, aquela vergonha alheia que enrubesce a face, aquela preguiça de sair pra comprar gelo.
Bebi um pouco de água e levei meu corpo rabiscado pra caminhar. Era preciso um pouco de fôlego para continuar perdendo o ar. Chiara soava perfeita ao meu lado. Bastava me olhar pro mundo aceitar esperar um pouco mais. Resolvi sem pensar muito dedicar tudo o que havia escrito até hoje, pra ela, com Third do Portishead como testemunha, no máximo. Mais uma prova de superação. Era possível avançar em nossa própria estupidez todos os dias. Éramos eu e meu sorriso mais apaixonado, ali, prontos pra morrer um pouquinho de novo.
sábado, 16 de janeiro de 2010
Um buraco no teto
II.Aquela garota era realmente especial. Não tinha medo de mim, de meu sobrenome raso e de meus poucos dias fora da prisão. Gostava realmente de ficar comigo naquele sofá velho aprendendo a montar e desmontar aquele antigo rifle. Enquanto mirávamos para alvos inventados por nosso tédio, seu cheiro de sabão e leve colônia elevavam meu espírito e transformavam minhas narinas em dois escravos daquela menina. Meus pensamentos vagueavam entre o sacro e o profano com ela ao meu lado. Sentia-me puro ao seu lado. Sentia-me puro e longe de meus infernos perto de sua pele rosada em inocência.
III.Um tiro é disparado e um pouco de reboco cai do buraco feito no teto da antiga casa. Um cachorro late ao longe até o forte calor convencer sua cabeça animal que não vale a pena tanto esforço. Um rádio gorduroso toca uma música espanhola cheia de ritmo e cordas, enquanto duas pessoas transformam seus corpos em alguma coisa parecida com a Disneylândia. O rifle assiste tudo ainda quente, largado ao chão, exalando cheiro de pólvora e munição velha.