terça-feira, 14 de julho de 2009

Por toda essa nossa falta de heróis

Depois de alguns dias sem comer, sabia que não poderia atacar aquele prato como o pescoço de uma adúltera. Teria que conquistá-lo aos poucos, quase enganando seu estômago para que pudesse engolir sem grandes consequências, alguns nacos do que havia espalhado pela mesa. Seus dentes estavam moles, suas gengivas sangravam e seus olhos ardiam. Sua pele seca, sem tatuagens, opaca e sem cor, conversava com cada olhar que mirasse ali. Dava respostas confirmando "sim, sou um pária" ou "sim, estou morto". Este último, quando resolvia estar de bom humor. Um maço de papel amassado no bolso trazia uns insights, algumas tentativas ridículas de poesia, o telefone de dois corajosos exemplares do sexo feminino. O rádio alertava em seu bom humor popularesco, convocando atenção a mais um assunto sensacionalista. Depois acalmava em músicas. Pedaços de frios ao chão eram observados a distância pelas baratas e suas antenas, que diziam umas às outras atrás das paredes "Que delícia. Uma verdadeira delícia". Era tudo pelúcia em uma mente confusa e infantil que acabara de acordar. Era tudo sonho em sua boca morta que mastigava, lasciva, redimindo-se do passado. Hoje era dia de dar um pouco de sentido as coisas. Um pouco de ordem. Era dia de atitudes afirmativas. Dignas de um homem. Dia de ir a locadora e alugar um filme de guerra sem perguntar a opinião da mulher, nem escovar os dentes. Preferiu ir voando. Foda-se a discrição. Pousou na esquina e ficou olhando a vitrine com um bando de filmes velhos novos, com o rosto colado na calçada. Seus superpoderes foram logo percebidos por uma criança, que perguntava para uma babá perplexa sobre o significado daquele líquido vermelho saindo de sua cabeça amassada.

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