terça-feira, 2 de junho de 2009

O filho da puta

Era um daqueles fins de tarde de sexta-feira em que o sol já descia prometendo vingança. Movia-se impassível, pincelando contornos alaranjados por toda a cidade, imaginando o que as cores da noite fariam com seu trabalho. Debaixo disso, um senhor bem vestido seguia deixando pra trás velhos degraus num corredor estreito, protegido dos raios de luz que indicavam a saída e as formas de uma criança atrapalhando a passagem lá embaixo. Ganhou a calçada olhando fixo nos olhos do menino prostrado à porta, que agora tinha cheiro, feições e ossos, muitos ossos à mostra. “Nessa vida o nome que damos a algumas coisas às vezes não combina com o que os nossos olhos veem". Não sei se o tom profético e apressado ajudou, mas nunca mais o menino esqueceria disso.
Tal recinto era na verdade um grande sobrado de cuidadosa arquitetura francesa. Ficava ali pelas redondezas do Beco do Rato, geograficamente falando: uma coisa assim meio Lapa, meio Glória. Do alto de seus oito anos de idade, o pedaço de gente e testemunha das palavras do enrugado cliente que deixara o local há pouco, jamais tivera notícias de quem haviam sido seus pais. Até mesmo quando esse assunto teimava em rodear a cabeça de sua tia como moscas em volta de um bolo de laranja fresco, ela cismava em contar uma história diferente a cada dia. E que histórias. Eram prosas tão fascinantes que, em certa tarde chuvosa de março, o moleque chegou a se pegar, pasmem, agradecendo a Deus por ser um rebento sem família. Só e simplesmente pelo prazer de se perder naquela imaginação de Tia Chica. Uma morena dona de colos fartos e meia-dúzia de corações graúdos, que cuidava daquele projeto de homem como se o franzino tivesse saído da própria repartição pública existente embaixo de suas saias. Todos naquela rua encarpetada em pedras sabiam que arrumar problema com o menino de Chica era garantir uma encrenca das boas.
A casa onde tudo acontecia era frequentada por políticos, funcionários públicos, advogados e, no início do mês, por ordas de assalariados de menor status, ávidos por gastar seu dinheiro suado, suando um pouquinho mais. Ali o moleque aprendia o significado das palavras. Sabia que Ivo via a uva na sala de aula, mas quando seus pés encardidos subiam as escadas barulhentas do sobrado, aprendia degrau por degrau todo um dicionário recheado de signos, frases e comportamentos que professorinha nenhuma conseguiria explicar. Não raro chegava ao ponto de entrar inclusive no campo das fundamentações filosóficas. Sabia o que era uma puta, mas sabia muito bem diferenciar o adjetivo que na rua tinha função vexatória, para o significado real daquelas mulheres de seu convívio.
Mulheres que cozinhavam, pediam por ele no terreiro, lavavam sua roupa e o ajudavam até com as tarefas mais difíceis, como seu dever de casa. Sabia que sua tia era uma delas, mas sabia também que sem ela seu horizonte seria bem mais limitado que o horário de estada em cada um daqueles quartos. Minutos cronometrados que terminavam com socos nas portas, quando um crioulo chamado Felisberto, de uns 5 metros de altura, segundo seus cálculos, avisava gentilmente aos clientes sobre o fim da visita. E no lugar onde puta podia significar mãe, e zona, uma família, ser xingado na rua transformava-se quase em motivo de orgulho, mesmo quando ninguém ousava fazê-lo com ele. Mas como até o notório Felisberto estava cansado de saber, "se tem uma coisa que o tempo nunca teve, é a preguiça".
Assim os anos se passaram, o local ganhou um outro tipo de família, essa de verdade, daquelas mais tradicionais, e perdeu um bocado do charme de outros tempos. O menino crescido agora virara um sambista pela sobra de talento e pela falta de escola. Falta de escola-escola mesmo, aquela de verdade, com boletim, chamada e essas outras coisas dispensáveis. Porque a vida sim, essa nunca negara a ele um pingo de conhecimento e explicação pra tudo quanto é coisa.
Entre um samba e os socos que as portas continuavam tomando da vida, mostrando que as coisas terminam porque assim elas foram feitas pra ser, recebeu um telefonema. E do outro lado da linha aquela conversa estranha que, ele sabia direitinho, quando não dizia nada, dizia muita coisa, colocara-o no táxi que agora deixava o leito do hospital onde sua tia repousava. Fazia tempos ela estava de mal com o tempo, que, sem ninguém para puxar sua orelha, maltratava-a.
Agora o moleque crescido estava ali em frente ao sobrado, taxímetro ligado, olhos marejados. Achando graça ao saber pela boca de quem acabara de morrer que na versão final das histórias de Tia Chica sobre seus pais, a partir daquela manhã tinha ele um motivo real pra se orgulhar eternamente de sua mãe. Era um belo dum filho da puta.

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