sábado, 17 de setembro de 2005

Tudo normal



Acordou deitado, mas logo levantou. Seguindo até o banheiro, observou o dia lindo que fazia lá fora. Após tomar um banho gelado, dividiu-se entre a tarefa de secar-se e aumentar o volume do reggae. Vestido, deu ênfase aos graves no equalisador de seu velho som e pensou nas possíveis novas notícias do jornal. Havaianas no pé, desceu a escada de três em três degraus, não quis esperar o elevador. Na calçada de pedras portuguesas, divertiu-se com um inútil entretenimento visual seguindo as pedras claras. Em pé, parado em frente à banca leu as últimas. Já na fila do pão bocejou, terminando de acordar. Ao chegar em casa preparou um café com canela. Debruçado na janela, rabiscou algo no bloco de notas. Descalço novamente, fez pouco caso da hora. Tomando a bicicleta nas mãos, passou pela segunda vez do dia pela porta da frente. O palito no dente do porteiro mexeu ao cumprimentá-lo, também pela segunda vez naquela manhã. No caminho até a praia, cantarolou Los Hermanos. Ao prender o camelo no bicicletário, cantarolou a melodia de uma música do U2. Esperando o coco verde que pedira, passou os olhos nas opções de batata-frita. Bebendo a água, teve vontade de passar a mão numa bunda que viu. Olhando o mar, sorriu. O calção amarelo tocou a água salgada. Os pés sentiram as conchas. O cabelo molhado reclamou do sol. A pele bronzeada fez pouco caso do filtro solar. O ambulante que vendia mate, descansando observava-o lá da areia. O menino de férias escolares chutava a bola nas costas da senhora aposentada e gorda. Perto da calçada na volta a areia era mais quente que na ida. Dava pra agüentar a sola do pé queimando levemente, mas os lábios inclinados denunciavam que não era tão fácil assim. A rede de vôlei armada e sem jogo, sabia que assim era inútil. O cachorro que voltava pro calçadão naquele mesmo instante, não via maldade em seu passeio na areia. Os meninos de rua passantes, não viam maldade em seu passeio na areia. A velhinha aristocrata andante, via maldade em tudo. A moça meio hippie que oferecia massagem, via equilíbrio em tudo. O imigrante nordestino desempregado sentado com um jornal na mão, via injustiça em tudo. Um cego que passava apalpando uma vareta no caminho, não via nada. O calor chegava igual para todos. Um senhor de óculos grandes de armação típica setentista, por estar de camisa preta sentia um pouco mais de calor que os outros. Tudo isso passaria desapercebido se tivesse acontecendo agora, pois a bicicleta já liberta das correntes, se distanciava da praia. Da esquina já dava pra perceber o palito na boca do porteiro. Não por ser possível enxergar, mas pela certeza de que ele estaria lá. A ducha pra tirar a areia continuava fria. As marcas de molhado no chão eram reclamadas, mas sempre inevitáveis. A bicicleta era leve e logo estava de volta para a área de serviço. Quando o reggae voltou a tocar, não foi preciso regular os graves. Quando a música tocou, não foi preciso adivinhar a faixa. Quando ela telefonou, não foi difícil conter o sorriso. Quando a hora do almoço chegou, o dia já tinha em grande parte se desenvolvido. Quando o sol baixou, apenas histórias pra contar pros amigos. A praia, lá onde ficava a praia, deu uma esvaziada. O lixo da portaria, ali onde ficava a portaria, cresceu com o palito da boca do porteiro. Ele foi ostentado durante quase todo o dia. De manhã foi um e de tarde outro. Como já se encaminhava adiantada a noite, ele fora dispensado. Amanhã vai ter mais palito, mais sol e mais banho gelado. Mais volta de bicicleta e mergulho no mar. Mais coco no quiosque e concha perto da água. Mais cachorro na areia e rede de vôlei armada. Tudo normal.

2 comentários:

Anônimo disse...

"E quem te vê... lendo jornal, na fila do pão..."

Anônimo disse...

texto magnífico que me fez viajar até a praia mais próxima...

tu sabe que sou seu fã e sou suspeito para falar...

mas tu é FODA!!!

abraço, irmão.

leléo tá voltando!!!