terça-feira, 20 de setembro de 2005

O apartamento do Catete

"Tô cansado de ver você se diminuir na minha presença. Cansado de ouvir você debochar da minha suposta inteligência. Já te falei, se eu fosse mesmo inteligente já tinha largado há muito tempo aquele empreguinho de merda que me consome há quase cinco anos. Se eu fosse inteligente não andaria a pé pra lá e pra cá ou engordando a conta bancária dos taxistas mesmo nos dias que nem bebo na hora de voltar pra casa. Mas você insiste em se diminuir com esse seu processo louco de baixa estima que fica sugando toda a minha energia. Se ao menos ainda fôssemos casados, mas nem isso. E já se vão alguns verões até. Porra o que você quer de mim? Minha alma? Não bastou ter me deixado na merda como você me deixou na época que me chutou? Logo você que nunca imaginou terminar comigo. Logo você, com essa vulnerabilidade irritante e esses olhinhos gigantes que quando focalizavam os meus, me detonavam, conseguindo tudo. Porque? Acabou porra. Me esquece. Vai pra noite com suas amigas mal-amadas e fique com meia dúzia de saradinhos metidos a galã. Vai pra Salvador. Não é isso que você sempre quis? Eu queria ir pra Salvador por causa do Pelourinho. Eu queria ir pra Salvador pra chafurdar na história que exala em cada beco da cidade. E queria sim, queria ir para o Camaleão, mas nem lá você deixaria eu cheirar meu lança em paz. E quando eu começasse a mostrar interesse na cultura do local, você ia me chamar de filósofo de merda. Depois ia pela milésima vez se diminuir. Falar que eu não gostava do seu papo, que eu tinha que achar alguma mulher capaz de conversar sobre qualquer assunto comigo. Ia falar que eu era o sabe-tudo. E eu mais uma vez ia ficar puto e imaginar que merda de cara tão inteligente assim eu seria pra ter trinta e poucos anos e ainda sequer ter comprado meu apartamento."
Escutou um barulho na porta. Parou de escrever a carta e foi até lá, lutando contra uma câimbra na perna. Era Cíntia, sua nova namorada que resolvera mudar-se há pouco pro apartamento alugado por Celso no Catete depois de seis meses de um tórrido relacionamento movido a sexo, livros, drogas e Dvd’s. Diretora de cinema e filmes publicitários, patricinha metida a riponga que só, já estava começando a irritar o antes solitário locatário com seus objetos de decoração trazidos a cada novo dia.

Ao voltar pra escrivaninha, com a perna agora formigando, amassou a carta e jogou no lixo. Mais uma vez desistiria de enviar o desabafo escrito pra sua ex-mulher, de quem já era separado há quatro anos. Por falta de um lugar melhor, ali em cima mesmo do caderno agora fechado, preparou duas longas fileiras de cocaína quase pura, pois “pó muito puro é igual a pó muito misturado, um veneno”, costumava repetir sempre.
Ela tinha trazido na bolsa um filme do Almodóvar, um livro de Lolita Pille, 5 gramas de pó e um porta chaves de gosto extremamente duvidoso adquirido numa feirinha de rua próxima dali. Seria mais uma noite alucinada naquele apartamento do Catete.

3 comentários:

Anônimo disse...

Um quê de Tati Bernardi nesse texto!! amei! beijocas!

Anônimo disse...

Bicho...tu leu o livro do Chico...parece que copiou de la!! Como sei que vc nao eh dado a essas coisas, reafirma minha suspeita "veia chiquense"...

Anônimo disse...

Que blz visitar o seu flog e descobrir que o falecido deixou uma bela herança!
Ótimo texto!
Abraço