quinta-feira, 22 de setembro de 2005

O desperdício


Plantado no movimento desde as três da manhã, Catuli caprichava na coca pra dentro das narinas já feridas. Tinha que ficar alerta. Tinha que ficar acordado. Foi mantendo o respeito e demonstrando toda coragem, às vezes violenta e gratuita, que conseguira chegar a gerência do branco no morro. Ali ficava e seu medo delirante se juntava ao efeito eufórico da cocaína impedindo seus olhos de enxergarem o belíssimo nascer do sol que crescia no horizonte suburbano carioca cheio de casas e prédios como tapete. Ria sozinho um riso nervoso quando lembrava do sexo feito antes de pegar no movimento de madrugada, com Silvinha da Caxanga. Em sua cabeça apesar dela ser uma tremenda piranha, conseguiria transformá-la em princesa logo que pedisse sua mão em casamento e eles fugissem daquela loucura que tinha virado a favela de uns tempos pra cá. Somente com uma pistola 765 na mão, reclamava sempre que aquilo não era arma de bandido de verdade. Queria coisa mais potente. Durante esse pirracento debate bélico filosófico interior, nem sequer imaginava que tinham dado seu nome naquela madrugada.
Neto era seu maior inimigo da favela. Vivia brigando com ele desde os tempos de moleque, mas foi a bucetinha de Silvinha da Caxanga que fomentou a discórdia entre eles de vez. Sempre as mulheres. Sempre elas. Mas afinal, não tinha jeito, “Sujeito homem taí sujeito a essas desavenças mermo” dizia sem o menor remorso de trocar o s pelo r, nem repetir palavras na mesma frase. Se fosse um universitário interpelado, fatalmente questionaria sorrindo a premissa de quais eram as palavras que nunca haviam sido repetidas, num deboche renato-russensse típico de quem pensa rápido e talvez tenha tido boa base escolar. Mas Catuli era um bandido e estava alheio a questões do mundo acadêmico. Apenas se concentrava em manter a pistola numa mão e o saco com os papelotes do branco na outra. Havia deixado cair violentamente o Nextel da cintura durante uma das muitas sessões de pó que rolaram na fria madrugada. Ficou de avisar, dando a letra sobre a avaria no rádio transmissor somente quando fosse passar o plantão. Aquela noite parecia tranqüila e o dono do morro era um grande chegado, não ia bolar nem um pouco com o acontecido. Fatalmente eles iriam até fumar um baseadinho e escutar “Wish you were here” do Pink Floyd, bebendo café passado na hora e comendo pão-doce que algum moleque buscaria na padaria da ladeira. Com a cabeça no pão-doce, apesar de não estar com a mínima fome em virtude da quantidade abissal de cocaína consumida no plantão, sentiu a primeira espetada quente. Não sentiu dor nem nada, mas quando olhou pra sua barriga nua que tanto orgulhava ostentar na favela mesmo em noites frias, sangrando, desesperou-se. “Deram meu nome, maluco. Deram meu nome, maluco”.
Ele sabia que Neto estava preso desde a última semana. Havia rodado de bobeira na praia, durante um tumulto fora reconhecido por um PM. Teve azar, o problema nem era com ele. Mas Neto era um soldadinho de merda e com uma noite de cadeia havia aberto o bico contando tudo o que sabia e que não sabia. De Catuli então, deu todos os detalhes movido pelo recalque sentido em virtude do rancor marcado na história mútua deles com Silvinha da Caxanga. Chorando ao receber choques violentos no anus e nos testículos, gritava o nome da mãe e de Silvinha pra logo então ser ridicularizado na sessão de tortura a berros iguais, “Essa bucetinha deve ser boa mermo hein? Vai dar o endereço dela na favela também pros amigo aqui?”. Não foi difícil imaginar que a soma de um filha da puta xisnove mais um rádio transmissor quebrado traduziram a chegada de cinco policiais do batalhão de operações especiais, conhecido e temido na favela com a abreviatura de BOPE.
Com rostos protegidos por sinistras tocas-ninja e a aproximação sem alarde apropriada para disparos fatais, chegaram pra arregaçar. Nem em seus pesadelos mais terríveis Catuli pensaria um dia morrer sem nem trocar tiro. Revelando-se na verdade um merdinha iniciante, ao receber o segundo tiro só pensara em olhar a ferida, talvez em choque pela noção de ter sido surpreendido e pego tão de perto por aqueles homens de preto que utilizavam uma caveira como símbolo, surgidos do nada. Talvez incrédulo por não ter sido avisado pela salva de fogos de artifício. Abatido, mas com os belos olhos verdes bem abertos, só restou o gosto da pólvora nos lábios misturado à terra batida com a água preta do fino córrego de esgoto que recebeu sua boca e rosto bambo caído sem vida, como uma derradeira cama.
O magro e suado viciado que acabara de chegar no morro pela manhã pra comprar o primeiro papelote da alvorada, percebendo a movimentação estranha da polícia somente ali já tão próximo ao perigo, sentiu-se um tremendo vacilão e logo tentou disfarçar entrando e pedindo um café na birosca do pé do morro. Nesse momento desciam os participantes da operação trazendo com eles o troféu do dia: o corpo do gerente do branco.
Ao passarem pela porta do estabelecimento, o viciado olhou de soslaio fundo nos olhos abertos de um Catuli já morto carregado a caminho de ser jogado na viatura. Se soubesse a quantidade de pó que o bandido cheirara há pouco tempo atrás no plantão da noite, no mínimo teria ficado puto com o desperdício.

imagem: emblema.net/reportage_rochina.htm

Um comentário:

Anônimo disse...

cara, quando tu vai publicar estas "merdas"???

eu viajo sem ter que usar nenhum tipo de droga!

rsrsrsrsrsrsrsrs..........

putaqueopariu!!!

"eu sou fã do Róbson."
esse é o novo título.

tem que escrever um texto sobre a rapaziada farpada...

rsrsrsrsrsrsrsrs.........

abraço.

xixita boxota
(amigo, irmão e fã do Róbson)