domingo, 18 de setembro de 2005

A dose

"Antes o Katrina tivesse passado por mim de uma forma decente."
A frase era repetida inúmeras vezes pelo velho jazzista que teve tudo levado, menos sua existência. Suas opções de escolha de vida, egoístas se pensadas sob a luz do que costumamos ter como referência para o típico homem médio que constitui família, eram resumidas a seu clarinete. A porra do clarinete havia sumido naquela imensidão de terro, água e vento. Reclamava do desastre e parecia só parar de repetir a lamúria quando intercalava o remorso por não ter levado consigo o instrumento ao sair acossado, meio bêbado é claro, do sobrado de arquitetura francesa onde insistiu ficar até o último momento em New Orleans. Coisas de velho. Teimosia irrestrita. Cabeça dura que pode até ser considerada doce e poética para muitos literários, mas na vida real prática só chafurda ao desespero e a conseqüências estúpidas. Mas ainda sim a mantinha de certa forma, parado ali naquele decrépito ponto de ônibus transformado de forma quase mambembe em base e morada, preterido ao ginásio que servia de abrigo a milhares de vítimas da fúria exercida por aquele furacão. Ao seu lado um dos grandes símbolos daqueles dias, que servia de porta tudo: um carrinho de supermercado. Era possível observar famílias inteiras passando com os seus, entupidos como o nível de desespero e nu sob suas grades vazadas de ferro. No caso do velho, nem se dava ao luxo de estar cheio até a metade. Dentro, alguns pertences que nem de longe representavam a importância do clarinete perdido. O objeto musical poderia estar por aí boiando. Poderia estar por aí empenado, esturricado. Era prudente nem pensar muito nisso. Naquele fim de tarde úmido e frio, sua mente vagava pelos bares que havia tocado. Pelas conquistas amorosas que ele e o parceiro clarinete haviam efetuado. Ele já estava bem velho. Mais uma vez, perguntava-se porquê o Katrina não tinha feito o serviço completo. Era até bom naquele momento estar só, pois começaria a ficar realmente insuportável participar dessa chorosa melodia infeliz e repetitiva, se por ventura alguém estivesse partilhando de suas exposições.
Observando o chão, no meio do lixo revirado pela lama viu o pedaço de um rótulo de malte puro. Escocês. Sua boca seca e enrugada encheu-se de saliva. Um trago poderia certamente amenizar suas dores àquele momento. Sempre fora assim mesmo. Perguntava-se e refletia se a opção de não ter casado, não ter construído e constituído família, fora finalmente punida pelos juízes celestiais. Besteira. Pura besteira. Viu que era o pensamento desconexo de quem pensa alguma coisa apenas pra esquecer um desejo que não sai da cabeça, ali no caso, o malte. Seu clarinete seguro em suas frágeis mãos, um copo de um legítimo puro descansando suado num balcão de madeira maciça, seriam sim, imagens completamente celestiais. Sua risada seca e só emitida espontaneamente naquele instante acabou cortada por uma tosse seguida de uma lágrima carregada de ira. Censurou-se veementemente por aquele impulso. Só faltava isso, pensou, um velho sem nem ter onde cair morto, chorando sozinho em um ponto de ônibus abandonado. Não, isso não. Enxugou os olhos, repuxando a pele quase morta de tão ressecada, respirou fundo e olhou para o céu numa atitude instintiva clássica que pode ser observada em praticamente todos seres humanos em momentos como aquele. Ao baixar o olhar para a meia altura que sua posição proporcionara, observou uma senhora de meia idade passando pelo outro lado da calçada. Bela senhora. Havia saído do bar francês que relutava em fechar mesmo naqueles sinistros dias.
O jazzista, apesar de velho, gostava de afirmar que duas coisas em sua existência estavam intactas: sua dignidade e visão. Ele realmente enxergava bem. E foi esse sentido aguçado num corpo frágil e quase sem vida que fez surgir em sua cabeça a história daquele rosto de feições finas, com lábios vivos e olhos claros como o mar da Côte d'Azur. Os passos da senhora se adiantavam enquanto a imaginação do velho comungava e trabalhava em ritmo acelerado, pincelando de maneira muito peculiar o que para ele poderia ter sido a vida da dona daquela bonita e decidida marcha. Romanceou um possível encontro entre eles. Levaria ela pra jantar num restaurante não muito caro, mas aconchegante e a luz de velas. Se ao menos tivesse uns trocados ali com ele, certamente uma dose seria cordialmente apresentada sob a forma de um convite. Esse pensamento ordenou em reflexo uma de suas mãos, que numa desesperada procura pelo bolso constatou que só três moedas, totalizando 27 centavos de dólar americano, formalizavam seu capital. Essa desconcentração momentânea o fez perder o foco. Ao olhar novamente para sua bela senhora, apenas conseguiu tempo pra avistá-la virando a esquina. Divagar sobre onde seria seu destino com aquela caminhada valorizando sua bunda generosa e pernas ainda firmes para sua aparente idade, seria talvez um novo passatempo. Ao perdê-la de vista, imaginou uma melodia com notas musicais contruídas em sua cabeça que poderia certamente oferecer para ela. Mas de forma quase maldita, logo após, lembrou-se novamente de seu clarinete. Já escurecia. Mecanicamente, uma vez mais amaldiçoou o Katrina por não ter passado por ele de forma decente. A nova longa noite seria difícil para o velho, mas agora teria em seus pensamentos falseados e nostálgicos a companhia daquela senhora que nunca sequer havia visto e que um dia cogitou oferecer uma dose.

3 comentários:

Anônimo disse...

...

nem falo nada.

...

Anônimo disse...

As vezes é difícil recomeçar...

Anônimo disse...

Vc e seus textos viajantes! Ctrl + D para vc!