quarta-feira, 21 de setembro de 2005

O PlayStation

Apesar de ser uma cidade do interior de Minas Gerais, quase todas as crianças da rua já estavam contaminadas pela febre que os aparelhos eletrônicos exerciam na molecada. Ficava muito difícil sucumbir ao apelo que os maravilhosos videogames cada vez mais modernos possuíam. Os jogos de futebol, antes peculiarmente isentos de times ou referências do Brasil, agora não se faziam de rogados em possuir times brasileiros e até os rostos dos jogadores da seleção eram desenhados à semelhança dos craques canarinho da Europa. Com a inauguração da montadora de automóveis francesa numa cidade próxima há quase dez anos, o nível de vida melhorara bastante naquela cidadezinha de menos de vinte mil habitantes. Com os empregos e salários que moviam a economia do local, era possível perceber a evolução e o progresso pelos cada vez menos raros carros novos, mais obras nas casas e badalada chegada da tevê a cabo, grande novidade pra muitos dali. As tardes, que antes eram sempre de rua cheia e pelada comendo solta até escurecer, agora pareciam reclamar da pouca presença da garotada do bairro. Até as meninas, que demoraram um pouco mais para ceder, ostentando suas bonecas e armando a cozinha de suas imaginações próxima ao meio fio da rua por muito mais tempo, haviam agora se rendido aos prazeres eletrônicos.
Seu Juca, o médico da cidade, conhecido por suas idéias que varavam lá na frente, andava resmungando que os pirralhos estavam engordando. Ele era orgulhosamente formado há quarenta anos pela universidade federal da capital do estado. Contava sempre para quem quisesse ouvir, as aventuras que passou pra conseguir se manter em Belo Horizonte na época dos estudos até se formar com louvor. Fora o primeiro cidadão da cidade a se formar e era motivo de orgulho não só pra família, mas pra todos os conterrâneos. Além de médico, era conhecido por seu hobby na marcenaria. Desde que aprendera com seu velho “pai-que-deus-o-tenha”, se apaixonara pelo ofício juntamente a medicina. Nos dias que o consultório ficava parado, quase as moscas, Seu Juca ia pros fundos da casa e divertia-se fazendo cadeiras, consertando relógios antigos e criando brinquedos.
Seu neto era um dos poucos que não era completamente afetado pela febre de PlayStation que pairava na geração infantil do lugar. Mas o neto também dava suas escapadinhas pra casa dos amigos e participava sempre dos grandes campeonatos de futebol no tal videogame. Campeonatos estes que agora eram muito mais numerosos que os que Manéu da padaria realizava de futebol de botão. O próprio neto de Seu Juca reclamava sempre quando o avô levava-o pra tomar picolé nos fins de tarde. “Manéu, quando vai ter campeonato?”. E o padeiro, com sua voz rouca e cheia do sotaque além-mar, respondia sempre que “em breve meu rapaz. Em breve”. Com o carrinho de madeira de rodas que mexiam de verdade, o moleque ia arrastando o brinquedo e percorria todo o balcão da enorme padaria com Seu Juca segurando-o pela barriga. Depois, o avô mandava o moleque ir escolher a marca da gelada gostosura no freezer, próximo a porta do lugar. Nessas horas, era comum o velho doutor se gabar baixinho para o português dono que seus brinquedos de madeira fascinavam muito mais o neto do que a bugiganga eletrônica que dominava a faixa etária de dígito único na cidade. O bigode de seu Manéu até via sua boca concordar em cumplicidade, mas mesmo o pôrtuga sabia que aquela era uma batalha perdida. “Já era, o PlayStation venceu”, pensava quietinho empacotando seus biscoitos de polvilho com a caneta presa na orelha.

Um comentário:

Anônimo disse...

É triste mesmo...

Abs,

Bruno.