quarta-feira, 28 de setembro de 2005
Bloqueio criativo
Era um escritor angustiado. Nos últimos tempos evitava ao máximo sair de sua cobertura em Ipanema. Mais de uma vez por dia ficava acompanhando abismado seus e-mails e o volume de sua gorda conta corrente pela Internet. Parecia não conseguir digerir muito bem os acontecimentos recentes. Sua fiel escudeira Zazá, era uma governanta que de tão burra, mas tão burra, despertava nele uma admiração profunda. Ultimamente só confiava nela. Ele achava que as pessoas burras eram sacras, sofriam menos, mas não costumava ficar falando isso, pois era politicamente incorreto classificar alguém de burro. Sua angústia na verdade pairava sobre as últimas críticas e análise de seus livros. Apesar de tarimbado, já na casa dos cinqüenta e aclamado pelos leitores, preocupava-se com elas como um jovem poeta iniciante cheio de espinhas na cara. Andavam fazendo uma retrospectiva sobre suas cinco obras, fato que estava gerando-lhe uma enorme dor de cabeça. Seu trabalho estava em evidência na mídia, particularmente o último livro que estava na lista dos dez mais em primeiro lugar há três semanas, desde que fora lançado. Diziam que seu jeito de escrever denunciava aspectos de sua personalidade. Que um pouco do que ele abraçava em vida sob a ingerência de valores e crenças, era apresentado ali em seus personagens nas entrelinhas. Era quase como falar que suas obras eram diários com nome trocado. Na primeira vez que leu tal bobagem, lembrou de Ubaldo amaldiçoando a tal da perigosa “entrelinha” numa coluna recente de domingo e apenas riu. Mas riu um riso meio sem graça. Depois, aquilo começou a lhe incomodar. Em pouco tempo consumia-o. Apesar de ser um escritor de ficção com um texto de costumes tipicamente carioca, estava sendo editado em mais de quinze línguas. Quando lembrava disso, imaginava o mundo na figura de um psicanalista gigante olhando pra ele pequenininho, deitado num divã cheio de frio e com vergonha de levantar o dedo pedindo pra ir no banheiro. Nessas horas soltava um palavrão pra ele mesmo, como forma de iniciar um pensamento, e aí começava seu monólogo interior desesperado. Lembrar que seus últimos protagonistas de sucesso eram uma puta com mania de limpeza, um padre esquizofrênico e um ladrão que fazia tudo por sua mãe deixava-o ainda mais angustiado. Onde será que viam semelhança com ele? Será que se passasse pela Atlântica de madrugada na segunda marcha as prostitutas iam olhar de rabo de olho pra ele com admiração? Será que quando fosse comprar jornal um coroinha ia olhá-lo com reprovação e na saída da banca ainda pisaria no seu pé fingindo ser acidente? Será que os maconheiros do posto nove um belo dia apareceriam com seu último livro, abordando-o quando estivesse comprando um Sucolé do Claudinho de manga, pra pedir um autógrafo a pedidos do Dono do Morro do Vidigal? Nessa hora lembrou-se daqueles papos sob bloqueio criativo que vira e mexe eram assunto corrente nas mesas do café da livraria da esquina. Ele nunca havia sentido esse tal bloqueio, achava até coisa de escritor maricas. Mas agora, entre baforadas no charuto e a risada dos amigos, andava jurando pra qualquer um que dava tudo pra trocar o perrengue desses últimos dias pela tal merda do bloqueio criativo.
terça-feira, 27 de setembro de 2005
Jazz
Itália. Havia deixado tudo pra trás. Havia deixado um amor. Alguns sonhos. Possibilidades. A bossa. A praia. O samba. Como ia deixando as ruas de pedra pra trás na descida de uma ladeira quase rosada, passando por belas construções coloridas num amanhecer de uma noite que não deveria ter terminado nunca. Talvez o sol nascendo naquela cidade praiana ao sul da terra de seu avô poderia conseguir uma permissão favorável no que dissesse respeito a invadir a noite, tamanha a beleza de sua incorporação ao ambiente. Era uma bagunça organizada, tamanha a quantidade de tons de cores, vermelhos, rosas, amarelos, laranjas. Aquelas tonalidades se mesclavam aos paralelepípedos, paredes, sacadas, as barracas de frutas sendo armadas e aos pescadores mais atrasados, que se encaminhavam para a praia e pareciam terminar de constituir um cenário que se assemelhava ao jazz. O jazz sim era uma bagunça organizada, pensava. Havia parado de escutar reggae por uns tempos. Estava se dedicando ao jazz. Cooljazz. Chet baker o fascinava. Já Bird, conseguia traduzir palavras impossíveis de sequer serem soletradas com seus solos. Não havia abandonado a música caribenha, nem havia parado de pensar em uma possível ida a Ibiza, ou quem sabe a Grécia. Essa dúvida o incomodava, mas não tanto quanto a noite que havia terminado e deixado em sua boca um gosto de novidade. Parecia haver tomado uma bebida nova preparada de maneira desconhecida. Tinha o gosto perigoso da liberdade. Esse gosto começava a fasciná-lo. Observou de forma incomum um cigarro apagado amassado ao chão. Parecia seu passado. As coisas pareciam acontecer de forma rápida. Ali, só o sol tinha permissão para nascer lentamente. Itália. Havia deixado tudo pra trás.
Dezembro de 2004 ®
Dezembro de 2004 ®
segunda-feira, 26 de setembro de 2005
O outro lado do túnel
Paulo era um rapaz normal. Tímido, possuía o cacoete de ajeitar seus óculos na face rosada sempre quando escutava algo que o deixasse sem graça. Tinha aquele riso preso, contido, típico de quem procura ser discreto até nos momentos de exposição das emoções mais orgânicas. Não tinha muitos amigos. Mas isso não dava pra saber se era por escolha própria, por imposição da vida ou por não ter tido morada fixa até os quinze anos de idade mais ou menos. Seu pai era representante comercial de uma grande empresa multinacional. Em virtude disso já havia morado em cinco estados brasileiros diferentes. Inclusive quando queria chamar a atenção das pessoas, costumava dizer que esse fato dava a ele uma maior noção da diversidade cultural brasileira. No Rio, última morada fixa nesses vai e vens, assim que chegara à cidade era possível espiar pela porta do quarto e vê-lo treinando no espelho do armário antes de ir para uma festinha da escola, o tal comentário manjado da diversidade cultural.
Como não construía laços onde passava por sempre estar de passagem, acabou contraindo uma predisposição a leitura. Mas não lia de tudo não, na verdade não lia quase nada, gostava só de pulp ficcion vagabundos e das revistas de quadrinhos eróticos de Zéfiro. Essas sacanagens ilustradas que anos depois dos lançamentos originais, ganharam até um referencial cult, pra ele tiveram status de iniciação sexual. Além das que tivera acesso dos colegas da rua, conseguiu comprar três velhos exemplares num sebo de Belém, um mês antes de se mudar pro Recife. Em Pernambuco teve sua primeira experiência na cama. Por causa disso, o sotaque nordestino ficaria peculiarmente eternizado em sua cabeça com um quê de malicioso por todo o sempre. Personagens nordestinas de novela eram certeza de uma infinidade de punhetas por parte de Paulo.
Já no início da faculdade de economia, conseguira estágio numa empresa de consultoria do centro da cidade. No pouco tempo que estava lá, a firma, que passava por um processo de crescimento e expansão, fechou o escritório no velho prédio pra inaugurar um andar inteiro num moderno edifício comercial a algumas quadras dali. Nessa época ele estava namorando uma menina muito pudica do Grajaú. Tinha tirado sua virgindade no início do namoro, uns oito meses antes. Paulo, que morava no Flamengo, desde que chegara ao Rio só havia transado com garotas da Zona Norte. Até gostava das meninas da Zona Sul, mas achava que do outro lado do túnel as coisas eram mais quentes. A ironia era justamente Sandrinha, que mesmo oriunda das arborizadas ruas do bucólico Grajaú, chupava seu pau sem lá muito talento e negava-se a lhe dar a bundinha. Desconsiderando isso por achar ser fruto da inexperiência da morena de coxas grossas, dizia pra si mesmo que logo, logo, a colocaria nos eixos. Os meses foram passando e Paulo, que costumava ser fiel às namoradas, amargava o fracasso das tentativas de investida às intactas pregas de sua garota.
Um belo dia, repassando sua última tentativa da noite anterior e praticamente resignando-se em não comer uma bunda tão cedo, viu uma imagem divina ao abrirem-se as portas automáticas do moderno elevador do novo edifício comercial de seu estágio. Monique era uma ruivinha que jurava de pé junto e por todos os santos imagináveis não ter dado mole pra ele naquele primeiro dia de encontro ao acaso. Em pouco tempo estavam íntimos. Com a rotina ajustada pelos dois de maneira suíça pontualmente pra sempre poderem se encontrar nos horários de chegada, almoço e saída do trabalho, Monique não precisou impressionar somente pela sua beleza o tímido estagiário de economia: ela morava na Tijuca. Noiva, a safadinha tijucana estava pra casar, mas após três semanas de confidências mútuas sobre seus relacionamentos via internet, se viram na escada de serviço do edifício em pleno horário de almoço mútuo, numa troca de beijos e carícias que perigava fazer soar o moderno alarme de incêndio do prédio high tech. Era uma sexta feira e Paulo havia planejado uma viajem pra Búzios com Sandrinha, iriam partir depois do expediente. Monique estava naqueles dias, mas como a temperatura era vulcânica no antes glacial vão do décimo segundo andar, ofereceu de forma catedrática o orificiozinho que fazia parte dos sonhos mais adolescentes do futuro economista, arrebitando a linda bundinha de costas e segurando firme no corrimão das escadas.
Na manhã seguinte, já na praia, Sandrinha estranhava a sociabilidade de Paulo para com ela. Havia desistido do futebol com o sogro pra ficar embaixo da barraca e repetiu umas cinco vezes “eu te amo” até ela resolver parar de contar. Naquela faixa de areia e mar em Geribá, ele não era o mesmo homem do dia anterior. Havia finalmente comido um belo, quente e amistoso cu.
Como não construía laços onde passava por sempre estar de passagem, acabou contraindo uma predisposição a leitura. Mas não lia de tudo não, na verdade não lia quase nada, gostava só de pulp ficcion vagabundos e das revistas de quadrinhos eróticos de Zéfiro. Essas sacanagens ilustradas que anos depois dos lançamentos originais, ganharam até um referencial cult, pra ele tiveram status de iniciação sexual. Além das que tivera acesso dos colegas da rua, conseguiu comprar três velhos exemplares num sebo de Belém, um mês antes de se mudar pro Recife. Em Pernambuco teve sua primeira experiência na cama. Por causa disso, o sotaque nordestino ficaria peculiarmente eternizado em sua cabeça com um quê de malicioso por todo o sempre. Personagens nordestinas de novela eram certeza de uma infinidade de punhetas por parte de Paulo.
Já no início da faculdade de economia, conseguira estágio numa empresa de consultoria do centro da cidade. No pouco tempo que estava lá, a firma, que passava por um processo de crescimento e expansão, fechou o escritório no velho prédio pra inaugurar um andar inteiro num moderno edifício comercial a algumas quadras dali. Nessa época ele estava namorando uma menina muito pudica do Grajaú. Tinha tirado sua virgindade no início do namoro, uns oito meses antes. Paulo, que morava no Flamengo, desde que chegara ao Rio só havia transado com garotas da Zona Norte. Até gostava das meninas da Zona Sul, mas achava que do outro lado do túnel as coisas eram mais quentes. A ironia era justamente Sandrinha, que mesmo oriunda das arborizadas ruas do bucólico Grajaú, chupava seu pau sem lá muito talento e negava-se a lhe dar a bundinha. Desconsiderando isso por achar ser fruto da inexperiência da morena de coxas grossas, dizia pra si mesmo que logo, logo, a colocaria nos eixos. Os meses foram passando e Paulo, que costumava ser fiel às namoradas, amargava o fracasso das tentativas de investida às intactas pregas de sua garota.
Um belo dia, repassando sua última tentativa da noite anterior e praticamente resignando-se em não comer uma bunda tão cedo, viu uma imagem divina ao abrirem-se as portas automáticas do moderno elevador do novo edifício comercial de seu estágio. Monique era uma ruivinha que jurava de pé junto e por todos os santos imagináveis não ter dado mole pra ele naquele primeiro dia de encontro ao acaso. Em pouco tempo estavam íntimos. Com a rotina ajustada pelos dois de maneira suíça pontualmente pra sempre poderem se encontrar nos horários de chegada, almoço e saída do trabalho, Monique não precisou impressionar somente pela sua beleza o tímido estagiário de economia: ela morava na Tijuca. Noiva, a safadinha tijucana estava pra casar, mas após três semanas de confidências mútuas sobre seus relacionamentos via internet, se viram na escada de serviço do edifício em pleno horário de almoço mútuo, numa troca de beijos e carícias que perigava fazer soar o moderno alarme de incêndio do prédio high tech. Era uma sexta feira e Paulo havia planejado uma viajem pra Búzios com Sandrinha, iriam partir depois do expediente. Monique estava naqueles dias, mas como a temperatura era vulcânica no antes glacial vão do décimo segundo andar, ofereceu de forma catedrática o orificiozinho que fazia parte dos sonhos mais adolescentes do futuro economista, arrebitando a linda bundinha de costas e segurando firme no corrimão das escadas.
Na manhã seguinte, já na praia, Sandrinha estranhava a sociabilidade de Paulo para com ela. Havia desistido do futebol com o sogro pra ficar embaixo da barraca e repetiu umas cinco vezes “eu te amo” até ela resolver parar de contar. Naquela faixa de areia e mar em Geribá, ele não era o mesmo homem do dia anterior. Havia finalmente comido um belo, quente e amistoso cu.
sexta-feira, 23 de setembro de 2005
Astro Rei
Fez-se abrir o sol na morada dos nossos pensamentos. A luz invadia a sala e estendia-se até o quarto. Na cama, dormia toda imperfeição de ideais que não celebravam a positividade. Ao lado, na cômoda, havia um relógio que despertava tocando reggae em manhãs como aquela. Em tempos de chuva não funcionava, deixava os sonhos tornarem-se a prioridade do dia amaciando a jornada com um leve e grave dub. Da porta do quarto, dava pra ver um pouco dos tênis escondidos por debaixo da fronha da cama, escorrida entre o hiato da armação de madeira e o chão. Surrados, eram responsáveis pelas caminhadas feitas para se distanciar de tudo aquilo que não fazia bem. Quando precisavam chegar perto das coisas boas, eles ajudavam na corrida. Da janela, desenrolando-se quase como um solo de sax num cooljazz, era possível ver desde toda a imensidão das vontades sadias às possibilidades das histórias mais vadias. Apoiar-se naquela moldura de madeira era ter a fundamental certeza e entendimento que não se pode ficar parado havendo tanto espaço. Tudo aquilo, até aquelas coisas inanimadas que se podia avistar bem ao longe, ganhava vida própria na imaginação do sopro rei. Mesmo sem aparentar o stress típico das grandes responsabilidades, sem aquela carga pesada de um blues que clama piedade, o astro divertia-se todas as manhãs adubando vida e sonhos por onde seus raios alcançassem. Fazia isso todo o dia há infinitas gerações. Era energia pura em constante movimento. Antídoto antimarasmo à prova do tempo.
Repaginada em antiga poesia original de 2004. Bartoli.® Todos os direitos reservados.
Repaginada em antiga poesia original de 2004. Bartoli.® Todos os direitos reservados.
quinta-feira, 22 de setembro de 2005
O desperdício

Plantado no movimento desde as três da manhã, Catuli caprichava na coca pra dentro das narinas já feridas. Tinha que ficar alerta. Tinha que ficar acordado. Foi mantendo o respeito e demonstrando toda coragem, às vezes violenta e gratuita, que conseguira chegar a gerência do branco no morro. Ali ficava e seu medo delirante se juntava ao efeito eufórico da cocaína impedindo seus olhos de enxergarem o belíssimo nascer do sol que crescia no horizonte suburbano carioca cheio de casas e prédios como tapete. Ria sozinho um riso nervoso quando lembrava do sexo feito antes de pegar no movimento de madrugada, com Silvinha da Caxanga. Em sua cabeça apesar dela ser uma tremenda piranha, conseguiria transformá-la em princesa logo que pedisse sua mão em casamento e eles fugissem daquela loucura que tinha virado a favela de uns tempos pra cá. Somente com uma pistola 765 na mão, reclamava sempre que aquilo não era arma de bandido de verdade. Queria coisa mais potente. Durante esse pirracento debate bélico filosófico interior, nem sequer imaginava que tinham dado seu nome naquela madrugada.
Neto era seu maior inimigo da favela. Vivia brigando com ele desde os tempos de moleque, mas foi a bucetinha de Silvinha da Caxanga que fomentou a discórdia entre eles de vez. Sempre as mulheres. Sempre elas. Mas afinal, não tinha jeito, “Sujeito homem taí sujeito a essas desavenças mermo” dizia sem o menor remorso de trocar o s pelo r, nem repetir palavras na mesma frase. Se fosse um universitário interpelado, fatalmente questionaria sorrindo a premissa de quais eram as palavras que nunca haviam sido repetidas, num deboche renato-russensse típico de quem pensa rápido e talvez tenha tido boa base escolar. Mas Catuli era um bandido e estava alheio a questões do mundo acadêmico. Apenas se concentrava em manter a pistola numa mão e o saco com os papelotes do branco na outra. Havia deixado cair violentamente o Nextel da cintura durante uma das muitas sessões de pó que rolaram na fria madrugada. Ficou de avisar, dando a letra sobre a avaria no rádio transmissor somente quando fosse passar o plantão. Aquela noite parecia tranqüila e o dono do morro era um grande chegado, não ia bolar nem um pouco com o acontecido. Fatalmente eles iriam até fumar um baseadinho e escutar “Wish you were here” do Pink Floyd, bebendo café passado na hora e comendo pão-doce que algum moleque buscaria na padaria da ladeira. Com a cabeça no pão-doce, apesar de não estar com a mínima fome em virtude da quantidade abissal de cocaína consumida no plantão, sentiu a primeira espetada quente. Não sentiu dor nem nada, mas quando olhou pra sua barriga nua que tanto orgulhava ostentar na favela mesmo em noites frias, sangrando, desesperou-se. “Deram meu nome, maluco. Deram meu nome, maluco”.
Ele sabia que Neto estava preso desde a última semana. Havia rodado de bobeira na praia, durante um tumulto fora reconhecido por um PM. Teve azar, o problema nem era com ele. Mas Neto era um soldadinho de merda e com uma noite de cadeia havia aberto o bico contando tudo o que sabia e que não sabia. De Catuli então, deu todos os detalhes movido pelo recalque sentido em virtude do rancor marcado na história mútua deles com Silvinha da Caxanga. Chorando ao receber choques violentos no anus e nos testículos, gritava o nome da mãe e de Silvinha pra logo então ser ridicularizado na sessão de tortura a berros iguais, “Essa bucetinha deve ser boa mermo hein? Vai dar o endereço dela na favela também pros amigo aqui?”. Não foi difícil imaginar que a soma de um filha da puta xisnove mais um rádio transmissor quebrado traduziram a chegada de cinco policiais do batalhão de operações especiais, conhecido e temido na favela com a abreviatura de BOPE.
Com rostos protegidos por sinistras tocas-ninja e a aproximação sem alarde apropriada para disparos fatais, chegaram pra arregaçar. Nem em seus pesadelos mais terríveis Catuli pensaria um dia morrer sem nem trocar tiro. Revelando-se na verdade um merdinha iniciante, ao receber o segundo tiro só pensara em olhar a ferida, talvez em choque pela noção de ter sido surpreendido e pego tão de perto por aqueles homens de preto que utilizavam uma caveira como símbolo, surgidos do nada. Talvez incrédulo por não ter sido avisado pela salva de fogos de artifício. Abatido, mas com os belos olhos verdes bem abertos, só restou o gosto da pólvora nos lábios misturado à terra batida com a água preta do fino córrego de esgoto que recebeu sua boca e rosto bambo caído sem vida, como uma derradeira cama.
O magro e suado viciado que acabara de chegar no morro pela manhã pra comprar o primeiro papelote da alvorada, percebendo a movimentação estranha da polícia somente ali já tão próximo ao perigo, sentiu-se um tremendo vacilão e logo tentou disfarçar entrando e pedindo um café na birosca do pé do morro. Nesse momento desciam os participantes da operação trazendo com eles o troféu do dia: o corpo do gerente do branco.
Ao passarem pela porta do estabelecimento, o viciado olhou de soslaio fundo nos olhos abertos de um Catuli já morto carregado a caminho de ser jogado na viatura. Se soubesse a quantidade de pó que o bandido cheirara há pouco tempo atrás no plantão da noite, no mínimo teria ficado puto com o desperdício.
imagem: emblema.net/reportage_rochina.htm
quarta-feira, 21 de setembro de 2005
O PlayStation
Apesar de ser uma cidade do interior de Minas Gerais, quase todas as crianças da rua já estavam contaminadas pela febre que os aparelhos eletrônicos exerciam na molecada. Ficava muito difícil sucumbir ao apelo que os maravilhosos videogames cada vez mais modernos possuíam. Os jogos de futebol, antes peculiarmente isentos de times ou referências do Brasil, agora não se faziam de rogados em possuir times brasileiros e até os rostos dos jogadores da seleção eram desenhados à semelhança dos craques canarinho da Europa. Com a inauguração da montadora de automóveis francesa numa cidade próxima há quase dez anos, o nível de vida melhorara bastante naquela cidadezinha de menos de vinte mil habitantes. Com os empregos e salários que moviam a economia do local, era possível perceber a evolução e o progresso pelos cada vez menos raros carros novos, mais obras nas casas e badalada chegada da tevê a cabo, grande novidade pra muitos dali. As tardes, que antes eram sempre de rua cheia e pelada comendo solta até escurecer, agora pareciam reclamar da pouca presença da garotada do bairro. Até as meninas, que demoraram um pouco mais para ceder, ostentando suas bonecas e armando a cozinha de suas imaginações próxima ao meio fio da rua por muito mais tempo, haviam agora se rendido aos prazeres eletrônicos.
Seu Juca, o médico da cidade, conhecido por suas idéias que varavam lá na frente, andava resmungando que os pirralhos estavam engordando. Ele era orgulhosamente formado há quarenta anos pela universidade federal da capital do estado. Contava sempre para quem quisesse ouvir, as aventuras que passou pra conseguir se manter em Belo Horizonte na época dos estudos até se formar com louvor. Fora o primeiro cidadão da cidade a se formar e era motivo de orgulho não só pra família, mas pra todos os conterrâneos. Além de médico, era conhecido por seu hobby na marcenaria. Desde que aprendera com seu velho “pai-que-deus-o-tenha”, se apaixonara pelo ofício juntamente a medicina. Nos dias que o consultório ficava parado, quase as moscas, Seu Juca ia pros fundos da casa e divertia-se fazendo cadeiras, consertando relógios antigos e criando brinquedos.
Seu neto era um dos poucos que não era completamente afetado pela febre de PlayStation que pairava na geração infantil do lugar. Mas o neto também dava suas escapadinhas pra casa dos amigos e participava sempre dos grandes campeonatos de futebol no tal videogame. Campeonatos estes que agora eram muito mais numerosos que os que Manéu da padaria realizava de futebol de botão. O próprio neto de Seu Juca reclamava sempre quando o avô levava-o pra tomar picolé nos fins de tarde. “Manéu, quando vai ter campeonato?”. E o padeiro, com sua voz rouca e cheia do sotaque além-mar, respondia sempre que “em breve meu rapaz. Em breve”. Com o carrinho de madeira de rodas que mexiam de verdade, o moleque ia arrastando o brinquedo e percorria todo o balcão da enorme padaria com Seu Juca segurando-o pela barriga. Depois, o avô mandava o moleque ir escolher a marca da gelada gostosura no freezer, próximo a porta do lugar. Nessas horas, era comum o velho doutor se gabar baixinho para o português dono que seus brinquedos de madeira fascinavam muito mais o neto do que a bugiganga eletrônica que dominava a faixa etária de dígito único na cidade. O bigode de seu Manéu até via sua boca concordar em cumplicidade, mas mesmo o pôrtuga sabia que aquela era uma batalha perdida. “Já era, o PlayStation venceu”, pensava quietinho empacotando seus biscoitos de polvilho com a caneta presa na orelha.
Seu Juca, o médico da cidade, conhecido por suas idéias que varavam lá na frente, andava resmungando que os pirralhos estavam engordando. Ele era orgulhosamente formado há quarenta anos pela universidade federal da capital do estado. Contava sempre para quem quisesse ouvir, as aventuras que passou pra conseguir se manter em Belo Horizonte na época dos estudos até se formar com louvor. Fora o primeiro cidadão da cidade a se formar e era motivo de orgulho não só pra família, mas pra todos os conterrâneos. Além de médico, era conhecido por seu hobby na marcenaria. Desde que aprendera com seu velho “pai-que-deus-o-tenha”, se apaixonara pelo ofício juntamente a medicina. Nos dias que o consultório ficava parado, quase as moscas, Seu Juca ia pros fundos da casa e divertia-se fazendo cadeiras, consertando relógios antigos e criando brinquedos.
Seu neto era um dos poucos que não era completamente afetado pela febre de PlayStation que pairava na geração infantil do lugar. Mas o neto também dava suas escapadinhas pra casa dos amigos e participava sempre dos grandes campeonatos de futebol no tal videogame. Campeonatos estes que agora eram muito mais numerosos que os que Manéu da padaria realizava de futebol de botão. O próprio neto de Seu Juca reclamava sempre quando o avô levava-o pra tomar picolé nos fins de tarde. “Manéu, quando vai ter campeonato?”. E o padeiro, com sua voz rouca e cheia do sotaque além-mar, respondia sempre que “em breve meu rapaz. Em breve”. Com o carrinho de madeira de rodas que mexiam de verdade, o moleque ia arrastando o brinquedo e percorria todo o balcão da enorme padaria com Seu Juca segurando-o pela barriga. Depois, o avô mandava o moleque ir escolher a marca da gelada gostosura no freezer, próximo a porta do lugar. Nessas horas, era comum o velho doutor se gabar baixinho para o português dono que seus brinquedos de madeira fascinavam muito mais o neto do que a bugiganga eletrônica que dominava a faixa etária de dígito único na cidade. O bigode de seu Manéu até via sua boca concordar em cumplicidade, mas mesmo o pôrtuga sabia que aquela era uma batalha perdida. “Já era, o PlayStation venceu”, pensava quietinho empacotando seus biscoitos de polvilho com a caneta presa na orelha.
terça-feira, 20 de setembro de 2005
O apartamento do Catete
"Tô cansado de ver você se diminuir na minha presença. Cansado de ouvir você debochar da minha suposta inteligência. Já te falei, se eu fosse mesmo inteligente já tinha largado há muito tempo aquele empreguinho de merda que me consome há quase cinco anos. Se eu fosse inteligente não andaria a pé pra lá e pra cá ou engordando a conta bancária dos taxistas mesmo nos dias que nem bebo na hora de voltar pra casa. Mas você insiste em se diminuir com esse seu processo louco de baixa estima que fica sugando toda a minha energia. Se ao menos ainda fôssemos casados, mas nem isso. E já se vão alguns verões até. Porra o que você quer de mim? Minha alma? Não bastou ter me deixado na merda como você me deixou na época que me chutou? Logo você que nunca imaginou terminar comigo. Logo você, com essa vulnerabilidade irritante e esses olhinhos gigantes que quando focalizavam os meus, me detonavam, conseguindo tudo. Porque? Acabou porra. Me esquece. Vai pra noite com suas amigas mal-amadas e fique com meia dúzia de saradinhos metidos a galã. Vai pra Salvador. Não é isso que você sempre quis? Eu queria ir pra Salvador por causa do Pelourinho. Eu queria ir pra Salvador pra chafurdar na história que exala em cada beco da cidade. E queria sim, queria ir para o Camaleão, mas nem lá você deixaria eu cheirar meu lança em paz. E quando eu começasse a mostrar interesse na cultura do local, você ia me chamar de filósofo de merda. Depois ia pela milésima vez se diminuir. Falar que eu não gostava do seu papo, que eu tinha que achar alguma mulher capaz de conversar sobre qualquer assunto comigo. Ia falar que eu era o sabe-tudo. E eu mais uma vez ia ficar puto e imaginar que merda de cara tão inteligente assim eu seria pra ter trinta e poucos anos e ainda sequer ter comprado meu apartamento."
Escutou um barulho na porta. Parou de escrever a carta e foi até lá, lutando contra uma câimbra na perna. Era Cíntia, sua nova namorada que resolvera mudar-se há pouco pro apartamento alugado por Celso no Catete depois de seis meses de um tórrido relacionamento movido a sexo, livros, drogas e Dvd’s. Diretora de cinema e filmes publicitários, patricinha metida a riponga que só, já estava começando a irritar o antes solitário locatário com seus objetos de decoração trazidos a cada novo dia.
Ao voltar pra escrivaninha, com a perna agora formigando, amassou a carta e jogou no lixo. Mais uma vez desistiria de enviar o desabafo escrito pra sua ex-mulher, de quem já era separado há quatro anos. Por falta de um lugar melhor, ali em cima mesmo do caderno agora fechado, preparou duas longas fileiras de cocaína quase pura, pois “pó muito puro é igual a pó muito misturado, um veneno”, costumava repetir sempre.
Ela tinha trazido na bolsa um filme do Almodóvar, um livro de Lolita Pille, 5 gramas de pó e um porta chaves de gosto extremamente duvidoso adquirido numa feirinha de rua próxima dali. Seria mais uma noite alucinada naquele apartamento do Catete.
Escutou um barulho na porta. Parou de escrever a carta e foi até lá, lutando contra uma câimbra na perna. Era Cíntia, sua nova namorada que resolvera mudar-se há pouco pro apartamento alugado por Celso no Catete depois de seis meses de um tórrido relacionamento movido a sexo, livros, drogas e Dvd’s. Diretora de cinema e filmes publicitários, patricinha metida a riponga que só, já estava começando a irritar o antes solitário locatário com seus objetos de decoração trazidos a cada novo dia.
Ao voltar pra escrivaninha, com a perna agora formigando, amassou a carta e jogou no lixo. Mais uma vez desistiria de enviar o desabafo escrito pra sua ex-mulher, de quem já era separado há quatro anos. Por falta de um lugar melhor, ali em cima mesmo do caderno agora fechado, preparou duas longas fileiras de cocaína quase pura, pois “pó muito puro é igual a pó muito misturado, um veneno”, costumava repetir sempre.
Ela tinha trazido na bolsa um filme do Almodóvar, um livro de Lolita Pille, 5 gramas de pó e um porta chaves de gosto extremamente duvidoso adquirido numa feirinha de rua próxima dali. Seria mais uma noite alucinada naquele apartamento do Catete.
Um sol do caralho
Um sol do caralho era inevitável para aquele pedaço de latitude e longitude pertinho da linha do equador. Um sol do caralho. Sempre. Às vezes quando o tempo durante a noite insistia em manter-se quente, era como se o sol estivesse de sacanagem, escondendo-se de preto e baforando aquele ar flamejante no cangote de geral. Mas uma coisa era verdade, ninguém reclamava mais do que o suficiente porque era normal e todos estavam acostumados a sentir aquela temperatura desde que o mundo era mundo pra eles. A cana de açúcar se encarregava de prover o néctar símbolo da rapaziada. O rum. Legítimo, puro e famoso por bandas tão longínquas quanto a capacidade de imaginação de cada matuto bêbado após três ou quatro doses do aperitivo ainda de barriga vazia nos milhares de botecos espalhados pela nação. Misturado com limão, com hortelã, tomado puro, utilizado em receitas, utilizado em típicas garrafadas pra curar os mais variados tipos de doenças e maldições, essa bebida quente podia ser a síntese do clima tropical vigente ali. Uma dessas especialidades era até ostentada com certo orgulho, diziam ser o drink nacional de uma ilha vizinha que contava com um barbudo no poder há mais de quarenta anos e que uma vez chegou a cair, mas apenas quebrara o joelho. O cair fora pejorativo, apesar de tão real e bombado nas TVs mundiais. Riam sempre ao contar o fato transformado em manjada piada uns para os outros. Coisas de república das bananas. Mas não era com o típico produto alheio que eles se regozijavam não. Eles tinham seus heróis também. Um deles era o responsável direto por ter difundido mundialmente o som que saía do rádio velho e engordurado preso na parede do bar naquela tarde. Uma pulsação vibrante de agudos repetitivos e graves dançantes traçando um panorama sonoro complementado por batidas incertas e cativantes. Apesar de curtir a música que o aparelho soprava no ambiente como todo bom jamaicano que prezava a cultura raiz e não a invasão de ritmos histéricos que nos últimos anos se misturara à pureza do reggae, ele baixou o rádio. Um barulho já estava competindo com a sonoridade interna do balcão onde quatro homens de meia idade bebiam seus aperitivos e um deliciava-se com o Mojito, este, mais jovem na faixa dos trinta e exalando um duvidoso e forte cheiro de perfume que denunciava sérios riscos a um eventual mirabolante plano afetivo para depois dali. O também jovem filho do dono do local largou o copo que enxugava, pulou o balcão e alcançou a calçada. Deu pra avistar a chegada do sound-systen, um emaranhado de caixas de som gigantescas com rodinhas embaixo puxadas por um carro popular caindo aos pedaços. Lembrou-se então que era sexta-feira e quase sempre aquele carro de som típico da região fazia ponto próximo ao estabelecimento quando um problema mecânico ou técnico na aparelhagem não impedia a animada estadia. Voltou para o interior do bar. Resignado, mas com um sorriso tímido que denunciava a concordância, desligou o valente radinho. Há essa hora, a música já inundava o balcão e toda a rua. Os passantes começaram a se juntar próximo e já era possível ver jovens dançando e casais abraçados mexendo desavergonhadamente a cintura no ritmo quente do som. Seu pai era cubano, havia morrido há alguns anos, mas ele ainda gostava quando se referiam a ele, como filho do dono do local. Achava que isso era uma forma de respeito. Pra ele seu pai só tinha um defeito: era Fidelista. Ele sabia que se tivesse nascido em Cuba não teria os mesmos parcos confortos pobres que conseguia sustentar na Jamaica, como comprar discos de reggae inglês após economizar um pouco ou manter seu carro de apenas quinze anos de rodagem, com aspecto de novo. Mas respeitava o gosto do pai e não fazia muita questão de tirar da parede desgastada pelas infiltrações a foto empoeirada de Castro. O último cliente pagou sua última dose de Havana Club e retirou-se do bar. Naquela sexta resolveu fechar o bar mais cedo. Juntou-se a multidão que já ali se apresentava e largou-se no ritmo quente daquele reggae roots que explodia nas caixas de som. Estava quente como sempre. Um sol do caralho.
domingo, 18 de setembro de 2005
A dose
"Antes o Katrina tivesse passado por mim de uma forma decente."
A frase era repetida inúmeras vezes pelo velho jazzista que teve tudo levado, menos sua existência. Suas opções de escolha de vida, egoístas se pensadas sob a luz do que costumamos ter como referência para o típico homem médio que constitui família, eram resumidas a seu clarinete. A porra do clarinete havia sumido naquela imensidão de terro, água e vento. Reclamava do desastre e parecia só parar de repetir a lamúria quando intercalava o remorso por não ter levado consigo o instrumento ao sair acossado, meio bêbado é claro, do sobrado de arquitetura francesa onde insistiu ficar até o último momento em New Orleans. Coisas de velho. Teimosia irrestrita. Cabeça dura que pode até ser considerada doce e poética para muitos literários, mas na vida real prática só chafurda ao desespero e a conseqüências estúpidas. Mas ainda sim a mantinha de certa forma, parado ali naquele decrépito ponto de ônibus transformado de forma quase mambembe em base e morada, preterido ao ginásio que servia de abrigo a milhares de vítimas da fúria exercida por aquele furacão. Ao seu lado um dos grandes símbolos daqueles dias, que servia de porta tudo: um carrinho de supermercado. Era possível observar famílias inteiras passando com os seus, entupidos como o nível de desespero e nu sob suas grades vazadas de ferro. No caso do velho, nem se dava ao luxo de estar cheio até a metade. Dentro, alguns pertences que nem de longe representavam a importância do clarinete perdido. O objeto musical poderia estar por aí boiando. Poderia estar por aí empenado, esturricado. Era prudente nem pensar muito nisso. Naquele fim de tarde úmido e frio, sua mente vagava pelos bares que havia tocado. Pelas conquistas amorosas que ele e o parceiro clarinete haviam efetuado. Ele já estava bem velho. Mais uma vez, perguntava-se porquê o Katrina não tinha feito o serviço completo. Era até bom naquele momento estar só, pois começaria a ficar realmente insuportável participar dessa chorosa melodia infeliz e repetitiva, se por ventura alguém estivesse partilhando de suas exposições.
Observando o chão, no meio do lixo revirado pela lama viu o pedaço de um rótulo de malte puro. Escocês. Sua boca seca e enrugada encheu-se de saliva. Um trago poderia certamente amenizar suas dores àquele momento. Sempre fora assim mesmo. Perguntava-se e refletia se a opção de não ter casado, não ter construído e constituído família, fora finalmente punida pelos juízes celestiais. Besteira. Pura besteira. Viu que era o pensamento desconexo de quem pensa alguma coisa apenas pra esquecer um desejo que não sai da cabeça, ali no caso, o malte. Seu clarinete seguro em suas frágeis mãos, um copo de um legítimo puro descansando suado num balcão de madeira maciça, seriam sim, imagens completamente celestiais. Sua risada seca e só emitida espontaneamente naquele instante acabou cortada por uma tosse seguida de uma lágrima carregada de ira. Censurou-se veementemente por aquele impulso. Só faltava isso, pensou, um velho sem nem ter onde cair morto, chorando sozinho em um ponto de ônibus abandonado. Não, isso não. Enxugou os olhos, repuxando a pele quase morta de tão ressecada, respirou fundo e olhou para o céu numa atitude instintiva clássica que pode ser observada em praticamente todos seres humanos em momentos como aquele. Ao baixar o olhar para a meia altura que sua posição proporcionara, observou uma senhora de meia idade passando pelo outro lado da calçada. Bela senhora. Havia saído do bar francês que relutava em fechar mesmo naqueles sinistros dias.
O jazzista, apesar de velho, gostava de afirmar que duas coisas em sua existência estavam intactas: sua dignidade e visão. Ele realmente enxergava bem. E foi esse sentido aguçado num corpo frágil e quase sem vida que fez surgir em sua cabeça a história daquele rosto de feições finas, com lábios vivos e olhos claros como o mar da Côte d'Azur. Os passos da senhora se adiantavam enquanto a imaginação do velho comungava e trabalhava em ritmo acelerado, pincelando de maneira muito peculiar o que para ele poderia ter sido a vida da dona daquela bonita e decidida marcha. Romanceou um possível encontro entre eles. Levaria ela pra jantar num restaurante não muito caro, mas aconchegante e a luz de velas. Se ao menos tivesse uns trocados ali com ele, certamente uma dose seria cordialmente apresentada sob a forma de um convite. Esse pensamento ordenou em reflexo uma de suas mãos, que numa desesperada procura pelo bolso constatou que só três moedas, totalizando 27 centavos de dólar americano, formalizavam seu capital. Essa desconcentração momentânea o fez perder o foco. Ao olhar novamente para sua bela senhora, apenas conseguiu tempo pra avistá-la virando a esquina. Divagar sobre onde seria seu destino com aquela caminhada valorizando sua bunda generosa e pernas ainda firmes para sua aparente idade, seria talvez um novo passatempo. Ao perdê-la de vista, imaginou uma melodia com notas musicais contruídas em sua cabeça que poderia certamente oferecer para ela. Mas de forma quase maldita, logo após, lembrou-se novamente de seu clarinete. Já escurecia. Mecanicamente, uma vez mais amaldiçoou o Katrina por não ter passado por ele de forma decente. A nova longa noite seria difícil para o velho, mas agora teria em seus pensamentos falseados e nostálgicos a companhia daquela senhora que nunca sequer havia visto e que um dia cogitou oferecer uma dose.
A frase era repetida inúmeras vezes pelo velho jazzista que teve tudo levado, menos sua existência. Suas opções de escolha de vida, egoístas se pensadas sob a luz do que costumamos ter como referência para o típico homem médio que constitui família, eram resumidas a seu clarinete. A porra do clarinete havia sumido naquela imensidão de terro, água e vento. Reclamava do desastre e parecia só parar de repetir a lamúria quando intercalava o remorso por não ter levado consigo o instrumento ao sair acossado, meio bêbado é claro, do sobrado de arquitetura francesa onde insistiu ficar até o último momento em New Orleans. Coisas de velho. Teimosia irrestrita. Cabeça dura que pode até ser considerada doce e poética para muitos literários, mas na vida real prática só chafurda ao desespero e a conseqüências estúpidas. Mas ainda sim a mantinha de certa forma, parado ali naquele decrépito ponto de ônibus transformado de forma quase mambembe em base e morada, preterido ao ginásio que servia de abrigo a milhares de vítimas da fúria exercida por aquele furacão. Ao seu lado um dos grandes símbolos daqueles dias, que servia de porta tudo: um carrinho de supermercado. Era possível observar famílias inteiras passando com os seus, entupidos como o nível de desespero e nu sob suas grades vazadas de ferro. No caso do velho, nem se dava ao luxo de estar cheio até a metade. Dentro, alguns pertences que nem de longe representavam a importância do clarinete perdido. O objeto musical poderia estar por aí boiando. Poderia estar por aí empenado, esturricado. Era prudente nem pensar muito nisso. Naquele fim de tarde úmido e frio, sua mente vagava pelos bares que havia tocado. Pelas conquistas amorosas que ele e o parceiro clarinete haviam efetuado. Ele já estava bem velho. Mais uma vez, perguntava-se porquê o Katrina não tinha feito o serviço completo. Era até bom naquele momento estar só, pois começaria a ficar realmente insuportável participar dessa chorosa melodia infeliz e repetitiva, se por ventura alguém estivesse partilhando de suas exposições.
Observando o chão, no meio do lixo revirado pela lama viu o pedaço de um rótulo de malte puro. Escocês. Sua boca seca e enrugada encheu-se de saliva. Um trago poderia certamente amenizar suas dores àquele momento. Sempre fora assim mesmo. Perguntava-se e refletia se a opção de não ter casado, não ter construído e constituído família, fora finalmente punida pelos juízes celestiais. Besteira. Pura besteira. Viu que era o pensamento desconexo de quem pensa alguma coisa apenas pra esquecer um desejo que não sai da cabeça, ali no caso, o malte. Seu clarinete seguro em suas frágeis mãos, um copo de um legítimo puro descansando suado num balcão de madeira maciça, seriam sim, imagens completamente celestiais. Sua risada seca e só emitida espontaneamente naquele instante acabou cortada por uma tosse seguida de uma lágrima carregada de ira. Censurou-se veementemente por aquele impulso. Só faltava isso, pensou, um velho sem nem ter onde cair morto, chorando sozinho em um ponto de ônibus abandonado. Não, isso não. Enxugou os olhos, repuxando a pele quase morta de tão ressecada, respirou fundo e olhou para o céu numa atitude instintiva clássica que pode ser observada em praticamente todos seres humanos em momentos como aquele. Ao baixar o olhar para a meia altura que sua posição proporcionara, observou uma senhora de meia idade passando pelo outro lado da calçada. Bela senhora. Havia saído do bar francês que relutava em fechar mesmo naqueles sinistros dias.
O jazzista, apesar de velho, gostava de afirmar que duas coisas em sua existência estavam intactas: sua dignidade e visão. Ele realmente enxergava bem. E foi esse sentido aguçado num corpo frágil e quase sem vida que fez surgir em sua cabeça a história daquele rosto de feições finas, com lábios vivos e olhos claros como o mar da Côte d'Azur. Os passos da senhora se adiantavam enquanto a imaginação do velho comungava e trabalhava em ritmo acelerado, pincelando de maneira muito peculiar o que para ele poderia ter sido a vida da dona daquela bonita e decidida marcha. Romanceou um possível encontro entre eles. Levaria ela pra jantar num restaurante não muito caro, mas aconchegante e a luz de velas. Se ao menos tivesse uns trocados ali com ele, certamente uma dose seria cordialmente apresentada sob a forma de um convite. Esse pensamento ordenou em reflexo uma de suas mãos, que numa desesperada procura pelo bolso constatou que só três moedas, totalizando 27 centavos de dólar americano, formalizavam seu capital. Essa desconcentração momentânea o fez perder o foco. Ao olhar novamente para sua bela senhora, apenas conseguiu tempo pra avistá-la virando a esquina. Divagar sobre onde seria seu destino com aquela caminhada valorizando sua bunda generosa e pernas ainda firmes para sua aparente idade, seria talvez um novo passatempo. Ao perdê-la de vista, imaginou uma melodia com notas musicais contruídas em sua cabeça que poderia certamente oferecer para ela. Mas de forma quase maldita, logo após, lembrou-se novamente de seu clarinete. Já escurecia. Mecanicamente, uma vez mais amaldiçoou o Katrina por não ter passado por ele de forma decente. A nova longa noite seria difícil para o velho, mas agora teria em seus pensamentos falseados e nostálgicos a companhia daquela senhora que nunca sequer havia visto e que um dia cogitou oferecer uma dose.
sábado, 17 de setembro de 2005
Tudo normal

Acordou deitado, mas logo levantou. Seguindo até o banheiro, observou o dia lindo que fazia lá fora. Após tomar um banho gelado, dividiu-se entre a tarefa de secar-se e aumentar o volume do reggae. Vestido, deu ênfase aos graves no equalisador de seu velho som e pensou nas possíveis novas notícias do jornal. Havaianas no pé, desceu a escada de três em três degraus, não quis esperar o elevador. Na calçada de pedras portuguesas, divertiu-se com um inútil entretenimento visual seguindo as pedras claras. Em pé, parado em frente à banca leu as últimas. Já na fila do pão bocejou, terminando de acordar. Ao chegar em casa preparou um café com canela. Debruçado na janela, rabiscou algo no bloco de notas. Descalço novamente, fez pouco caso da hora. Tomando a bicicleta nas mãos, passou pela segunda vez do dia pela porta da frente. O palito no dente do porteiro mexeu ao cumprimentá-lo, também pela segunda vez naquela manhã. No caminho até a praia, cantarolou Los Hermanos. Ao prender o camelo no bicicletário, cantarolou a melodia de uma música do U2. Esperando o coco verde que pedira, passou os olhos nas opções de batata-frita. Bebendo a água, teve vontade de passar a mão numa bunda que viu. Olhando o mar, sorriu. O calção amarelo tocou a água salgada. Os pés sentiram as conchas. O cabelo molhado reclamou do sol. A pele bronzeada fez pouco caso do filtro solar. O ambulante que vendia mate, descansando observava-o lá da areia. O menino de férias escolares chutava a bola nas costas da senhora aposentada e gorda. Perto da calçada na volta a areia era mais quente que na ida. Dava pra agüentar a sola do pé queimando levemente, mas os lábios inclinados denunciavam que não era tão fácil assim. A rede de vôlei armada e sem jogo, sabia que assim era inútil. O cachorro que voltava pro calçadão naquele mesmo instante, não via maldade em seu passeio na areia. Os meninos de rua passantes, não viam maldade em seu passeio na areia. A velhinha aristocrata andante, via maldade em tudo. A moça meio hippie que oferecia massagem, via equilíbrio em tudo. O imigrante nordestino desempregado sentado com um jornal na mão, via injustiça em tudo. Um cego que passava apalpando uma vareta no caminho, não via nada. O calor chegava igual para todos. Um senhor de óculos grandes de armação típica setentista, por estar de camisa preta sentia um pouco mais de calor que os outros. Tudo isso passaria desapercebido se tivesse acontecendo agora, pois a bicicleta já liberta das correntes, se distanciava da praia. Da esquina já dava pra perceber o palito na boca do porteiro. Não por ser possível enxergar, mas pela certeza de que ele estaria lá. A ducha pra tirar a areia continuava fria. As marcas de molhado no chão eram reclamadas, mas sempre inevitáveis. A bicicleta era leve e logo estava de volta para a área de serviço. Quando o reggae voltou a tocar, não foi preciso regular os graves. Quando a música tocou, não foi preciso adivinhar a faixa. Quando ela telefonou, não foi difícil conter o sorriso. Quando a hora do almoço chegou, o dia já tinha em grande parte se desenvolvido. Quando o sol baixou, apenas histórias pra contar pros amigos. A praia, lá onde ficava a praia, deu uma esvaziada. O lixo da portaria, ali onde ficava a portaria, cresceu com o palito da boca do porteiro. Ele foi ostentado durante quase todo o dia. De manhã foi um e de tarde outro. Como já se encaminhava adiantada a noite, ele fora dispensado. Amanhã vai ter mais palito, mais sol e mais banho gelado. Mais volta de bicicleta e mergulho no mar. Mais coco no quiosque e concha perto da água. Mais cachorro na areia e rede de vôlei armada. Tudo normal.
Pra início de conversa

Resolvi assumir de vez minha neurose letrada. O fotolog ficou com os caracteres muito pequenos pra mim e seu conceito nunca foi o meu objetivo: as tais imagens. Nada contra elas, principalmente quando belas. Meu atual e folclórico prefeito carioca parafraseando o poetinha, já se desculpava da estética feia dizendo que a beleza seria fundamental não é mesmo...? Por essas e outras que vou prestigiar as imagens por aqui também, mas o conceito agora é assumidamente letrado. Paranóias, poesias, textos, rabiscos...tudo na linguagem das letrinhas e com espaço pra você continuar detonando, analisando, parabenizando, interagindo, propondo novos olhares, fazendo isso aqui valer à pena um pouco mais. Neuroses compartilhadas ficam mais interessantes e as clássicas mentiras sinceras me interessam.
Pra quem me acompanha há algum tempo no fotolog, sinta-se em casa, aqui você verá novos textos e a mesma falta de critério de sempre. Vou continuar postando o que estiver amarradão de postar, algumas vezes textos perecíveis com assuntos do dia que me instigaram a espancar o teclado, algumas vezes textos curtos com temas insólitos, algumas vezes poesias, algumas vezes apenas uma frase. Não espere receber desculpas se eu sumir por uns tempos também, fatalmente isso não irá acontecer e não pretendo fazer drama em cima, basta de vez em quando passar por aqui e ver se tá rolando letrinha nova na área. Ah...uma parada: observando anormalidades gramaticais e ortográficas, carta totalmente branca pra correções e até zoações. Pode cair dentro, só não bata muito pois sou publicitário e meu ego te engole fácil.
Pra quem tá chegando agora, sinta-se em casa também, já tenho até uma boa notícia pra você: vou republicar aqui aos poucos e entre textos novos, tudo o que já havia publicado no fotolog. Bom, por enquanto é isso.
Bem vindo ao mundo letrado de Bartoli. Carioca marrento, mas que adora levar banda da literatura.
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