terça-feira, 7 de março de 2006

Nada poético

A real importância que damos aos nossos sonhos flutuava de forma crítica em sua cabeça e esse pensamento pra lá de subjetivo acompanhou sua entrada na loja de discos mais uma vez à procura de nada, mas vasculhando tudo. Passando o dedo por entre vinis e cd’s, escolhia mentalmente tudo que levaria agora, tudo o que levaria depois e tudo o que nunca cogitaria levar. Saiu mais uma vez sem levar nada, mas deu aquela habitual piscada para a atendente que ficava a quilômetros de distancia dele, seja pelo balcão de madeira que os separava ou pelo anel de noivado dela que o instigava.
Carregava a tira-colo um livro melancólico de uma história trágica de amor oriental. Uma canção dos Beatles batizava o rebento, que agradava aquele cara tão interessado por leitura quanto pelos hectolitros de chope que podia consumir em uma simples volta pelo quarteirão em sextas-feiras como aquela. Folhas secas no chão encarregavam-se de sussurrar o outono no ouvido de quem quer que desejasse despencar seco de um galho torto.
-Qual o livro da vez?
-Nada especial, apenas um japonês nada original, falando de amor juvenil, suicídios e neuroses.
-Bom. Parece contigo.
-...
-Que cara é essa? Pelo menos não tá lendo Neruda, quando você lê Neruda fica muito emocional.
A deixou falando sozinha. Não que ela tivesse notado sua deselegância indiscreta, pois nesse meio tempo um cliente repleto de espinhas na cara já aporrinhava sua paciência a procura do último livro de um jogo de estratégias aborrecente. Sônia era bem gostosa e aquela livraria era um belo refúgio, pena que não serviam chope. Beber em latinha era meio depressivo pra ele. Gostava de coisas vivas. No fim devia ser um problema de pressão e serpentina mesmo.
Resolveu prosseguir o passeio inútil puxando uma cadeira na birosca da esquina. Mal se ajeitou e Chico já lhe servira um chope. Isso o irritava, ficava pensando na possibilidade de não querer beber certo dia e a porra do chope já estar lá, olhando pra ele como cachorro sem dono. Mas no final acabava dando graças, pois a fama de mal-humorado do prestativo garçom nunca se aplicara a ele. Seguiu bebendo a tarde toda. A importância dos seus sonhos continuou a flutuar de forma crítica em sua cabeça. Lendo o livro, passava pela parte onde um dos personagens suicidara-se. Ficou imaginando a namorada deixada, descrita como muito bela pelo autor. Deixou-a só. No burburinho daquele ambiente popular onde um pernil descansava olhando fundo em seus olhos na vitrine de um balcão sujo, só conseguiu imaginar o cara como um otário. Pensamento nada poético.

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