quinta-feira, 6 de julho de 2006

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Era verão. Era verão naquele peito. Havia calor na umidade daquela esquina. Tirava o chapéu com cuidado, amortecia o corpo na poltrona colonial ao mesmo tempo em que acenava para a garçonete. Queria uma cerveja. Uma premium bem gelada. Aquelas tipo long neck, de preferência com uma bela capa de mofo simbolizando um véu de gelo. Era verão. Por apenas um beijo tudo virou calor. Mais uma página a ser preenchida, num livro em branco que simbolizava suas ingratas histórias. Finado era o tempo de vacas magras, onde catar bitucas de cigarro em cinzeiros e vielas abandonadas fazia sentido. Agora podia vestir um belo terno. Mais. Podia mandar fazê-lo com o velho italiano do centro. Agora era um escritor de verdade. Havia sido publicado. Aquilo era como um beijo. Transformara tudo em sol. Brilharia como o cheque de adiantamento recebido. Já se via rico em algum hotel barato de Veneza, buscando inspiração para um novo romance. Já se via dando autógrafos em livros pulp de contos de sua fase ruim, resgatada por alguma editora junkie de Berlin. Via garotos correndo contra o vento em Havana. Podia até ver as rachaduras na tinta que se soltava das paredes burocráticas na ilha. Podia navegar e pescar marlins. Dava pra sentir sua barba já branca como a do velho Hem. Até o frio do cano duma virtual espingarda em seu potencial suicídio era sentido. Tudo era vivo demais. Era como conquistar a melhor garota pós-guerra. Comer a melhor feijoada preparada pela esposa de seu Pai. Era colorir o preto e o branco dos milhares de olhares blazé que recebera. Era rir sem precisar forçar o diafragma. Copos e mais copos sem descanço. Montanhas de livros numa aventura que nunca teria fim. Agora era um escritor de verdade. Com sorte até seria lido. Com sorte, escaparia da morte tola, pra morrer de forma épica. Bateria as botas numa bela briga de bar, numa guerra santa ou numa inquisição. Seria preso pela ditadura. Seria odiado pela mídia e copiado pelos mais pobres folhetins. Escreveria peças como um anjo pornográfico. Nunca mais faria mulher alguma chorar, mas arrancaria com as próprias mãos corações inteiros. Daria dor e frustração, olheiras de angústia profunda, muito amor. Deixaria seus ventres molhados e enxugaria seus corpos com o suor de seu calor. Madrugadas seriam oferecidas sem razão. Poesias seriam escritas como chuva. O chão faria todo sentido do mundo. Músicas seriam apenas as mais belas e legítimas. Agora era um escritor de verdade. Todas as experiencias do mundo borbulhavam nas agendas de seu dia. Compromissos com o descaso. Audiências com o desapego. Compraria flores pra todas as mulheres feias e beberia cerveja quente com os mais chatos papos. Tudo pra poder reescrever seu dia. Agora era um escritor de verdade.

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