quarta-feira, 19 de abril de 2006

Silêncio

Aquele barulho de TV fora do ar iluminando a sala na madrugada, de antemão resolveu avisar que algo estranho se desenrolava. Ficar fora da cidade por quatro dias com apenas um terno podia parecer o pior que teria acontecido até ali. Chegando próximo a porta do quarto, dava pra ouvir algumas risadas nada contidas e uma espécie de balbucio coletivo. Definitivamente havia alguém além de Linda. Uma garrafa de Prosecco vazia no final do corredor denunciou a antes silenciosa chegada com um esbarrão do bico de seu sapato preto minuciosamente engraxado no gargalo, fazendo-a completar um giro. Seria até engraçado percebê-la apontando para aquele casal marginal seminu deitado na grande cama. Os olhos arregalaram-se de surpresa. Narinas ainda meio esbranquiçadas nele. Nela, um cigarro em processo de elaboração entre suas belas mãos com dedos finos de pegada suave.
Cheiro de sexo no ar, papelotes abertos de cocaína pelo chão. Taças vazias e cinzeiros cheios espalhados ao redor. O embaraço crescia à medida que sua atitude defronte a porta mantinha-se fria como um imenso bloco de gelo. Um olhar apenas. Um simples olhar deflagrou o início das ações, provocando o recolhimento das peças do traje social amarrotado no chão de carpetes daquele recinto. Suspensórios, meias, cinto, um belo terno milanês. Após a rápida atitude, ainda passara ao seu lado, pelo corredor e finalmente pela porta da casa, incrédulo. A incômoda visita não entendia, não via explicação plausível para não ter sido atacada, baleada, por ter lhe sido poupada a vida. Chegou a procurar no corpo suado de nervoso, antes de ligar o carro já na calçada daquela fria noite, alguma ferida, algum buraco de bala que o choque do momento por ventura tivesse feito sua predisposição a dor negar.
Lá dentro, na cama, atitudes desencontradas, porém lentas e desengonçadamente pesadas, faziam Linda melancolicamente se vestir devagar, ancorada de perto pelo sangue quente daquele siciliano inflamado de traços retos. Antes de se retirar dali pra sempre, durante todo o processo, somente observou-a. Parado. Imóvel como uma rocha.
Havia passado alguns dias viajando a negócios, resolvendo uns assuntos para o Velho, o conhecido Tornado Big. Queria parar com aquilo no verão. Chegou a ver uma casa nos Barbados, pensava realmente em ir pra lá quando tudo isso acabasse. Tinha planos. Usaria blusões havaianos floridos e velejaria por dias inteiros. Pesquisava informações sobre como os ventos se comportavam naquela ilha. Sempre fora fiel ao Velho, compartilhar sua vontade de sair daquela vida e dedicar-se a Linda era certeza de não encontrar maiores dificuldades ou percalços por parte do grande Big.

Dizem que naquela noite nenhuma gota de sangue, nem de lágrima foi derramada. Mas o que mais impressiona e gera rebuliço na italianada que hoje em dia ainda comenta a frieza da ocasião comprando seus presuntos Parma no Mercado Municipal em manhãs nubladas de outono, é o silêncio. Não se ouviu uma única palavra, um único lamento aquela noite.

Um comentário:

Pobre Urbano disse...

O tal do silêncio pode dizer muita coisa mesmo...