terça-feira, 25 de outubro de 2005

O pedido


Tinha uma vitrola em casa. Cuidadosamente pegou o vinil preferido de Chet. Tirou o plástico bem devagar repousando a bolacha preta no aparelho. Em seguida transportou a agulha pra faixa predileta. Ao virar-se e olhá-la, a música suave no alto de toda sua desorganização já invadira o ambiente. A garota nua era belíssima. De uma beleza estonteante que o fazia relembrar sua adorável teoria da baixa porcentagem das pessoas mais bonitas quando sem roupa. Na sua concepção ela era um exemplo desses pequenos casos. Sua pele era macia só de olhar. Seu olhar, denso. Sua voz rouca, porém levemente infantil. Fitava-a apoiada na mesa de madeira escura, segurando de forma provocativa uma taça de vinho suja com marcas de batom, parecendo reivindicar uma suposta cumplicidade natural com as notas do trompetista californiano que surgiam das caixas de som.
O pôr do sol entrava tímida e estrategicamente pela janela aberta. As cortinas claras faziam surgir uma espécie de filtro alaranjado no quarto. A literatura amontoada em seus livros observava tranqüila o ritual entre dois apaixonados fúteis perdidos em toda imensidão frívola conseqüente de momentos como aquele. Ele pedira e fora para seu deleite, de súbito atendido. Ela literalmente dançava. Em verdade o único fato impedindo a moça de pele bronzeada e cabelos negros lisos de estar completamente nua eram suas meias brancas de algodão, que sujavam-se a cada novo passo dado sem censura, a cada nova volta de seu corpo bambo naqueles tacos de madeira clara e reluzente.
De dentro de um cinzeiro de porcelana um cigarro muito bem enrolado fazia surgir no cenário uma fumaça que movimentava-se de modo trôpego sempre para o alto, exalando um cheiro de cânhamo que misturava-se com os suores desprendidos e com o odor acre, mas simples, que imperava no quarto. Era um ambiente limpo de forma honesta com produtos concentrados de baixo custo, de tempos em tempos, por um jovem sem a menor pretensão de deixar o local em perfeito estado de disciplina e harmonia higiênica. Mas a harmonia ali era notada em outras pequenas coisas. Entre o pequeno tapete, a prateleira com outros discos, a mesa de jantar, a escrivaninha de estilo colonial, o pequeno lustre. Uma harmonia que se somava a tudo que acontecia naquele instante de forma bastante coerente. Se fosse palpável, apresentar-se-ia de maneira aveludada. Na cama dois corpos doavam-se indecentemente de forma aplicada, sem pressa. Como se fossem capazes de repetir aquela mesma cena perfeita quantas vezes fosse necessário em qualquer outro momento seguinte.
A vitrola pulando denunciava o término de um dos lados do disco. Pedia pra ser trocada, pra ser virada em seu corpo circular de forma até bastante segura e óbvia. Queria tocar mais para o casal. Seria até um prazer, se naquele fim de tarde esse não tivesse sido o único pedido negado sem a menor cerimônia.


Imagem: Chet Baker em Nova York por Herman Leonrad, em 56.

Um comentário:

Anônimo disse...

caraca. muito foda.
me fez lembrar meu antigo ap.

bacana, léo. um dos melhores q já li.

tem coisa nova no habiscos.

abraço.