terça-feira, 11 de outubro de 2005

Ensaio sobre a felicidade

Annie era uma das muitas belas garotas que chegaram em Los Angeles atraídas pela inocente vontade de fazer fama no cinema. Garçonete há oito anos num bar mal freqüentado anexo a um posto de gasolina, mesmo tendo desistido do seu sonho, ainda amava ver filmes. Nas suas folgas costumava alugar Dvd’s e ficar noites inteiras tentando adivinhar o final das histórias que começavam obedecendo ao play executado pelo seu dedo indicador. Era bonita apesar de já não ser uma garotinha. Suas feições haviam hipnotizado um barbudo meio ruivo de camisa quadriculada que sempre escolhia a mesma mesa próxima a janela, mas ela nem desconfiava disso.
Ed era como costumavam chamá-lo. Já tinha feito de tudo um pouco nessa vida. Hoje em dia, sua maior felicidade era ir pra aquele bar, pedir panquecas com molho e observar a chegada de Annie com seu prato, aproximando-se pra servi-lo. Fazia algum tempo que ele não bebia. Não tinha a menor noção de quem fora Bukowski, mas fatalmente poderia ter sido um de seus personagens no passado. Ex-alcoólatra e viciado em heroína, participava de um programa do governo para desintoxicação tomando doses de Metadona. Estava indo bem. O cara sabia ser disciplinado quando via função lógica na coisa. Naquele ambiente esfumaçado com mesas de sinuca mal iluminadas e um banheiro no sub-solo, daqueles que na ida, da porta se via uma escada descendo toda vida, Ed sentia-se bem.

Não lembrava de ter sido fisgado por um sentimento tão forte como aquele antes. Mas também era difícil vê-lo sóbrio pra poder construir as diversas nuances que um grande amor necessita pra se deixar estruturar por completo. Apesar de Annie não desconfiar do nobre sentimento daquele viciado em recuperação, conseguia enxergar por dentro de seus olhos azuis uma coisa que não sabia explicar. Uma pureza que só era capaz de ver no olhar de seu filho de cinco anos que morava com seus pais a um dia de viajem dali, fruto de um antigo romance tão errado que só poderia ter terminado errado também.
Já era madrugada de um meio de semana quando um dos vários freqüentadores beberrões do lugar passou a mão acintosamente nas coxas de Annie, aproveitando-se da entrega de um pedido. Ela costumava resignar-se quando isso acontecia. Só arrumava confusão quando a machucavam ou achava que a falta de respeito tinha chamado a atenção de muita gente. Se ninguém tivesse visto, não valia a pena armar um barraco por nada. Como tinha virado uma figura constante no bar desde que seu coração ordenara sua presença por lá, Ed assistia aquilo tudo com uma dor dentro do peito que se tivesse coloração certamente apresentaria um tingimento preto. Além do programa de desintoxicação, ele estava em condicional. Sabia que não podia meter-se em confusão se não ganharia uma passagem grátis de volta a cadeia estadual. Mas que era duríssimo perceber e presenciar aquilo, era. Na verdade tudo ali dentro era meio estranho. Ficar sóbrio num bar como aquele madrugada adentro era uma certeza de risos e choros internos intensos. Eram cenas e conversas bizarras, dramas, reuniões para negócios ilícitos, desrespeitos, demonstrações de amizade vazias, risadas sem nexo. Tudo isso com o agravante tempero de ser presenciado com aquela capacidade de observação aguçada em detalhes que só um corpo, agora saudável, conseguia acumular. Bom, nem tão limpo assim, pensaria Ed com seus botões e quadrados simétricos da camisa estilo country. Ainda fumava um maço por dia daquele cigarro de filtro amarelo com o cowboy que morreu de câncer impresso na caixa. E nem tão bizarro assim, concluiria fatalmente, por gostar daquele ambiente pesado apesar de tudo. Sua vida toda fora passada em lugares como aquele. O sujeito acabara conquistando certa afeição. Mas passando a vista pelo jornal despretensiosamente na sessão de turismo, concluia que certamente trocaria tudo aquilo por uma viagem até a Flórida com Annie. A Califórnia não era um lugar ruim e definitivamente tinha um clima até agradável, mas Miami era quente. Pelo menos era assim que as fotos mostrando aquela arquitetura Art Déco, com carrões conversíveis estacionados próximo a palmeiras e praias, o embutiam na cabeça.
Olhando pro relógio, viu que estava na sua hora e pagou com a generosa gorjeta de sempre. Annie, depois de equilibrar a louça na mão delicada, mas forte, direcionou o corpo pra perto de Ed numa atitude inédita e surpreendeu-o com um longo beijo no rosto seguido de um sorriso. Já no estacionamento manobrando o carro, a cara de bobo insistia em não abandonar a expressão do barbudo. Aquele foi o dia mais feliz de sua vida.

4 comentários:

Anônimo disse...

Como boa romântica, fiquei torcendo por um final feliz...

As vezes a vida é tão dura que basta um acontecimento pequeno e simples para tornar um dia inesquecível.

Monstrinha
www.contosoudelirios.blogger.com.br

Anônimo disse...

Belas palavras corridas. òtimos detalhes e um texto muito sensível!

Anônimo disse...

muito foda.
a gente sempre fica com cara de bobo mesmo...
rsrsrsrs...

abraço.

ah, tem coisa nova no habiscos.

Anônimo disse...

Bandini, o alter-ego de Fante, também era apaixonado por uma garçonete de LA em Pergunte ao Pó, mas a sua é mais simpática...

E o texto é Ernest. Puro.