sábado, 5 de novembro de 2005

Surdez

Ela é surda. Não, ela não sofre de surdez não. Mas é surda. Uma preferência, fazer o que? Se sente melhor assim. Na verdade ela não é surda, surdinha também não. Ela escuta as coisas que lhe são convenientes. Aliás, gosta é de transformar as mensagens. Isso, transformar. Não? Não entendeu? Bom, sabe aquele brinquedo lego, de criança? Então. Mal e porcamente pode servir de exemplo. Aqueles trecos não montam e desmontam ao bel prazer da gurizada? Pois é. É mais ou menos por aí. Isso que ela faz com as mensagens. Isso o que faz com o que falam pra ela. Ela gosta até muito mais de exercer essas mexidinhas nas mensagens do que se fazer de surda. Desvirtuar o mundo em que vive é um prato cheio. Um entretenimento. Como se colocasse um tijolinho de cada vez no castelo de fantasia murado que constrói ao seu redor. Saca aqueles tempos feudais? Castelinho com fosso em volta? Portões de madeira grossa pra caramba, isso quando não de ferro, que desciam sustentados por correntes largas de dar inveja em qualquer cantor de hip hop americano de hoje em dia? Pois é. Isso. Mas a diferença é que os portões dela não descem. Sabe como é né? Portão aberto significava trânsito. Trânsito, informações indo e vindo. Nesse sentido, já que ela é quem manda na linguagem, não importa muito a tal troca de idéias. Que nem criança que inventa seu próprio jogo e vira juiz, presidente e diretor geral, mudando as regras no meio da partida. Acho até que tô dando muitos exemplos infantis pra demonstrar seu estilo né? Mas infância lembra criança, que lembra pureza, que lembra...bingo!..lembra I-N-G-E-N-U-I-D-A-D-E. Ingenuidade. Isso. Aliás, não. Isso não. Ingenuidade é uma coisa que ela não tem. Seria o antônimo disso. Ou tipo, imagine um ícone ilustrando o rosto dela, desenhado ao lado daquele símbolo matemático que significa igual carregado com um riscadinho no meio. Diferente. Sabe qual é? Ah...cê sabe, você não é assim tão ruim em matemática como eu. Sim, porque eu sou péssimo em matemática. Sou mesmo. A prova disso é ela! Ela, poxa. A prova disso é ela. Ela e todas as vezes que insisto em subtrair de minha cabeça que me enlouqueceu, fingindo que nada aconteceu. Ela e essa surdez que me irrita de uma maneira tão grande, que acabo assistindo aqueles filmes de serial killer sem nem dormir. Sim, porque quando eu era normal, via esses filmes e dormia sempre antes do fim. Acho esse tipo de filme uma merda. Agora não durmo mais. Parei de fechar os olhinhos, babar, essas coisas. E sabe porquê? Porquê agora me identifico com a raiva dos sádicos. Identifico-me com psicopatas. Pois é, antes não me interessava por achar pura besteira de um roteirista sem nada na cabeça que escrevia cada cena pensando em dar susto na platéia. Agora não. Chego a entender a raiva e a frieza dos caras sabe? Às vezes torço até pra eles escaparem no final. Mas aí também que se dane. Eles se fodem sempre. Se não também não rola né? Quem vai querer pagar ingresso pra ver bandido vencer. A não ser que seja um filme B europeu. Um do Meireles ou daquela bicha do Almodóvar, por exemplo. Um pervertido. Cê já viu os filmes do cara? Só tem coisa bizarra. A merda é que a bichinha consegue prender pela trama. Os filmes do cara tem trama. Trama. Trama. Trama, trama, trama...mmmm...você deve estar me achando um neurótico ou no mínimo um sexista né? Pois é. Ah! Sim! Claro! Silogismo puro. Como não pude lembrar! Woody porra. Woody, Woody Allen. Aquele magrelo judeuzinho que comeu a enteada, sei lá. Porra, o Woody. Esse cara sim. Esse é mestre de neurose. No hall da fama dos neuróticos ele é “o cara”. Na calçada da fama dos neuróticos ele deve ter a primeira marca das mãos lá e no lugar mais destacado. O Oscar dos neuróticos deve se chamar Woody. Até consigo imaginar um figurão da indústria dizendo no púlpito “and the Woody goes to”. Neurose. E falando em classificações, significados e coisas do tipo, essa palavra podia facilmente ser traduzida no dicionário como algo do tipo “efeito que algumas mulheres impõe aos homens”. Mas eu comecei isso tudo falando em surdez né? Pois é. Nossa. Como a cabeça devaneia às vezes. Tô com fome. Acho que vou fazer um sanduíche. Será que dá tempo? Ela sempre demora mil anos pra se arrumar mesmo.
Jorge largou o boneco de plástico do Batman, de seu filho, que ouvia pacientemente o monólogo de seu esquizofrênico discurso ao sofá e adentrou a cozinha pra preparar seu lanche. Ao abrir o armário e buscar um prato onde pretendia repousar o sanduíche que acabara de fazer, ela apareceu. Nervosa e finalmente arrumada, não descansou enquanto Jorge não desistiu do pedaço de pão com queijo, assediando-o a deixá-lo na pia. Saíram pra noite da ópera. Jorge odiava ópera desde a faculdade. Helena sabia disso, mas não se importava. Apesar de escutar, ela era surda.

2 comentários:

Anônimo disse...

hahahahahahahahaha.....

esse é muito bom.

malditas surdas!!!!

abraço.

ah!! nosso velho amiguinho está no habiscos.

Anônimo disse...

As vezes eu também fico surda. Por preferência mesmo. Só assumi isso para mim mesma a pouco tempo.
Antigamente eu detestava quando as pessoas me chamavam de sonsa, achava uma ijustiça incrível!

Até que, há uns dois anos, eu descobri que sou sonsa mesmo! E isso facilita bastante a minha vida!
Ser sonsa é uma arte, um dom. E ao contrário do que a maioria pensa, não é um defeito, é uma tática de diplomacia e auto controle.