quarta-feira, 12 de março de 2008

Notas do cotidiano nº36

O inferno deve estar cheio de restaurantes a quilo. Não existe lugar que represente mais o comodismo derrotista da individualidade humana. Velhas decrépitas sebosas carregadas por suas babás grosseiras bipolares chegam como crianças famintas em um fast food. Às vezes vêm de roupão, vindas da hidroginástica, às vezes com vestidos opacos cheios de manchas da sopa da janta do dia anterior. Atravancando a fila, vão deixando seus restos pelo caminho como quem divide uma herança que ninguém pediu para receber. São fios de cabelo em tonalidades de cinza variadas e pedaços de coisas indecifráveis grudadas em suas peles durante um tempo predeterminado o suficiente para cair nas bandejas seguintes. Além de cascas de feridas, um monte de cascas, cascas suficientes pra alimentar uma indústria de seitas de magia negra.
Com a irritante mania que a maturidade consumista criou, todos ali se vêem no direito de tocar, trocar, cheirar e até lamber a comida na fila de composição de seus pratos. Parece tudo liberado, bastando um pouco de imaginação, falta de senso e o fantasma de algum advogado de direitos do consumidor a tira colo. Do jeito que mexem na comida que não necessariamente vão levar, a impressão é que você está condenado a comer sempre alguma coisa que não passou pelo teste de qualidade da pessoa a sua frente.
Crianças parecem desenvolver centenas de dedos, já que não se contentam com seus irritantes sorrisos mesclados em choros, momentos de fúria e gozo quase sem limite de lógica no tempo e espaço. Elas estão ali como polvos descobrindo os prazeres do sentido do tato. Correm aonde não existe espaço e se mantém no limite de provocar um desastre. Às vezes sonho com uma cena dantesca: uma bandeja de feijão quente cai sobre minhas pernas e como uma espécie de ácido, segue derretendo meus jeans surrados. Acredite, não acho a mínima graça nisso. Meu analista diz que a falta de ferro que o feijão acaba me privando, fora de minha dieta desde que o sonho tornou-se recorrente, contribui pra minha aversão às traduções francesas dos obrigatórios russos de minha biblioteca. Eu acho isso pura frescura e continuo sem dizer que já voltei a comer feijão só para escutar esse tipo de observação tola e sem sentido que segue dragando meu dinheiro a cada nova sessão.
Têm as mulheres depressivas também, geralmente secretárias, bibliotecárias ou apenas mal comidas com sujeira de batom nos dentes. Entram na fila com suas grandes preocupações sempre alimentando a existência e seus manequins vazios: gordura, gordura e gordura. Acabo simpatizando mais com as gordinhas e suas misturas coloridas nonsense de carboidratos com proteínas. Uma vez uma dessas ancudas preparou uma verdadeira obra de arte, que culminava com um quilo de purê de batata, mais o grand finale: um imponente e grandioso morango em cima de tudo, num cume de uma aberração tão sem sentido que quase me forçou a pedi-la em casamento.

Mas confesso que nada até hoje superou um yuppie no final do verão passado. O cara surtou. Acho que trabalhava no mercado financeiro, mas comia ali de vez em quando por algum desses motivos que a gente nunca vai saber direito. Naquele dia de sol acachapante o bacana escondeu a própria pica no meio de dois rolinhos primavera e entregou o prato pra moça do peso. Antes de ser contido por meia dúzia de heróis do meio-dia, ainda conseguiu a proeza de arriar suas calças até os joelhos, terminando o tal número de circo sentado em uma travessa de pudim. Aquilo foi realmente estranho, mas deu mais sentido ao gosto de traseiro que a sobremesa daquele lugar sempre me lembrou.

Um comentário:

Anônimo disse...

Hahahahahahahaha! Também não sou lá muito fã de restaurantes a quilo... tenho um relógio interno que me diz que depois das 13h30 nenhum deles é frequentável. Depois desse horário, meu cerébro começa automaticamente a calcular quantas pessoas remexeram e respiraram em cima da comida. Mas esse aí que você frequenta é mais assustador que quentinha de presídio. Só não me diga que isso tudo foi inspirado no Salsalito ou no Japa a quilo, que vou ter embrulhos no estômago de efeito retardado! ;)
Bjs