terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

A caminhada

De baixo da sombra da folha aparecia um orvalho que condizia com todos aqueles pensamentos claros que só quando se quer enxergar as coisas certas a gente pode ver. Na madeira curtida que transformava-se em cama para cada gota lúdica que brilhava com raios de sol mágicos carregados de cor e vida própria, era possível entender combinações de cores incríveis. Um prisma que trazia a coragem de mesclar composições nunca antes imagináveis de porções de espetáculo convertidas em bênçãos da natureza. Acovardar-se a não cair na tentação de observar era digno de quem nunca pisara forte em um chão de terra batida.Como a mesa trabalhada em lenha estava a meia altura, era preciso curvar o corpo para invadir um novo ângulo de realidades para aquele vazio de possibilidades visuais.
Era pra ficar olhando assim a praia com suas ondas erradas caindo certas e lisas como um espelho no mar em dias de vento norte, abrindo caminho dentro de tubos que não se intimidavam em cuspir vapores de água cheios de promessas de um novo fôlego. A espuma indicava o caminho para a areia fofa, com tons de grãos carregados de sol. Tudo aquilo se apresentava num intervalo ridículo onde o espaço mínimo se engrandecia perante o inusitado. Era a possibilidade de grandiosidade dentro da adversidade se abrindo e jogando de forma rude no seu rosto a alegria que é saber o que se sabe que deva saber.
Encostada noutro canto da varanda, com toda a presença de quem não procura a atenção no meio do conjunto de infinitas linhas de errância, a prancha descansava de pé. Sabia que deveria estar no mar, mas aguardava pacientemente o desenrolar das atitudes alheias. Era quase um oásis de paciência no meio da nova obviedade de intensidade frenética que se apresenta no trajeto de qualquer um em dias como aquele, se vividos em concretos frustrantes levantados com vigas de medo no meio de alguma metrópole fria longe dali. Pelo caminho desenhado de sua rabeta passando pelas poucas mas existentes morsas até sua ponta apontando o infinito, parecia ali para observar aquela gota de orvalho também. Orvalho guardado pela sombra da folha do pé de fruta na varanda adornada em palha.
Mas assim. Bem assim. Num momento pequeno que ousou demonstrar a grandeza do coração de quem preza a liberdade, apagou a brasa da imensa fogueira da noite anterior, bebeu um gole da bebida feita de uva e desceu pela praia. Andando, dava pra se escutar três diferentes tipos de som. Nuances de perfumes sonoros vindos do mar, rasgadas de um reggae imaginário por sobre o coral e o ranger óbvio da areia que propõe o não tão óbvio caminhar. Ele apenas caminhou.

Rabisco de 12 dias antes do acidente que quase interrompeu meu caminhar. Maio 2005.®

Nenhum comentário: