quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

O banho

Trocava as pernas porque trocar de vida era algo que até lhe agradaria, mas não era lá muito fácil. Do alto de sua mente bêbada, enxergar a calçada era um exercício pra ser feito com calma até conseguir a precisão necessária pra chegar em casa sem cair de cara num chão úmido de uma madrugada molhada. Muitos poderiam achar que sua noite acabaria ali. Todos errados. Primeiro: O sol querendo nascer e transformando o azul em rosa já desbancava a noite. Segundo: Sua vida era um emaranhado de situações que encaixavam-se sem um fim especificado. Era um filme sem comercial, sem pausas. Suas horas de sono não eram momentos de hiato, mas fábrica de sonhos. Quando estava de pé, praticava lirismo em cada passo trôpego. Passos como esses dados até a porta de seu velho apartamento numa vila perdida em alguma metrópole tropical absurda.
O trajeto da sala até a banheiro foi rápido como a ação de abrir a torneira para a água quente descer pelo cano e inundar aquela bacia de louça branca onde em pouco tempo repousaria seu corpo inchado de bebida. A espera pelo banho inclinou-o a pegar mais uma garrafa de vinho, um saca rolhas, papel e caneta. Posicionou tudo perto do cesto de roupas sujas, enquanto preparava uma carreira com o pó achado no bolso de uma camisa onde faltavam alguns botões. Aspirar aquele amontoado de sol branco na despedida de uma noite preta fazia sua mente paranóica ficar mais acelerada, dando-lhe mais sede e certa disposição para andar até a área de serviço, buscando um vidro com sais de banho, provavelmente um antigo presente de alguma puta que lhe dera amor e posterior abandono.
Seu corpo flácido e nu submerso em água acalmava seu espírito bravio. Palavras saiam sem pedir permissão de sua mente inquieta, povoando pedaços de papel morto com a vida que cada risco preto de caneta sentenciava em cada espaço vazio de possibilidades literárias. Nada fazia mais sentido do que escrever. Qualquer coisa seria secundária em sua vida porque era preciso expressar seus temores mais escondidos, seus medos, seus delírios, era preciso fazer tudo aquilo aparecer. Não era algo que lhe desse orgulho ou que o tornasse um homem melhor, apenas era necessário. Muitas vezes causava-lhe certa vergonha observar o que fora capaz de fazer nascer num papel. Perguntava se poderia algum dia compartilhar aquilo sem ser considerado um maldito ou um deus, ambas possibilidades que lhe causavam enorme vertigem. Odiava tudo o que era demais e tudo o que era de menos, mas odiava ainda mais o equilíbrio. Amava a contradição. Costumava dizer para as mulheres quando queria assustá-las depois de uma bela transa ou naquele início de relacionamento onde as palavras ainda são de certa forma medidas, que chamaria seu primogênito homem de Contraditório. Muitas dessas mulheres, talvez por reflexo, acabavam perguntando como seria se a cria viesse ao mundo como uma fêmea. “Seria Contraditória”, dizia ele esboçando um meio sorriso capaz de encantar metade de um bar numa noite estrelada, “Contraditória”. Dizia inclusive jamais ter encontrado na terra um ser mais contraditório que a mulher, logo, seria a fiel ilustração de um signo fidedigno. Era o que pensava.
Amava as mulheres como amava o vinho. Amava o vinho como amava as palavras. Mas nem sequer seus poucos amores eram originais, visto que a Paris dos anos 20 e 30 já havia lido toda a sorte desses pensamentos bem antes dele provar do suco de uva, da paixão literária e da seiva que brota do sexo feminino. Seiva que nunca era capaz de matar sua sede e deixava-o sempre em busca de um novo livro ou de um amor pra ser seu para sempre. Utopias eram de forma fantástica merecedoras de sua atenção vazia e desconcentrada. Do olhar mirado num horizonte perdido que só os corajosos o bastante para assumir suas dúvidas têm.
Deixou aquele banheiro molhado com palavras escorrendo junto com gotas de água e sabão. Havia vinho, roupas sujas e poesia largada no chão. O barulho da porta fechando sem a menor intenção de silenciar a lógica era a chave pra entender que mais uma peregrinação pelo vazio estava pra acontecer. Algumas notas no bolso e milhares de pensamentos novos na cabeça denunciavam mais um capítulo de todo aquele lugar-comum que insistia em sempre abrir e fechar, abrir e fechar. Como belas pernas se abrindo para o novo, como belos livros se fechando numa última página, como belas garrafas esvaziando num balcão de madeira limpo. Pedro fora ao bar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Se conheço a proporção em que me encontro comigo e com o mundo externo, a isso eu chamo de verdade. E assim cada um pode ter sua própria verdade, e no entanto ela é sempre a mesma.