sábado, 17 de dezembro de 2005

A covardia

Usava aquela mesa feita em jacarandá sempre que escrevia algo bonito pra ela. Nessas horas sentava-se na cadeira velha de madeira e deixava o sol entrar batendo em seu rosto. Abria bem a janela e a cortina de palha. Depois colocava a poesia presa junto à porta, para encontrá-la ao chegar.
Aquele clima da praia multiplicava em seu astral toda miríade de significados que traduziam o sentimento que emanava em seu ser. Sua caneta de estimação amaciava os dedos grossos e afiados, em cumplicidade, transcrevendo ao papel sentimentos tão livres que pareceria difícil imaginar um dia terem pertencido somente a ele ou que sequer houvessem tido dono. Seu tradicional suco de limão com rum descansava dentro de um copo suando de gelado, formando mais uma mancha quase redonda na tábua da mesa, que observava quietinha sua inspiração brotar em forma de palavras variadas. Mas de vez em quando aconteciam uns barulhinhos permitidos, liberados pelos rangidos oriundos do gelo de seu copo, que teimavam em voltar lentamente ao estado líquido, imersos na temperatura quente que só um recinto inundado de paixão como aquele poderia ter.
Sua mão amarelada de fumo lhe fazia bem. O mar e seu balanço, lhe faziam bem. A areia em seus pés santos, lhe faziam bem. Tudo ali parecia compactuar quase como um balé orquestrado para que cada novo dia fosse um capítulo feliz dentro de um sonho que quiçá algum poeta um dia pudesse ter escrito ao demonstrar tanta beleza utópica num pobre pedaço de papel branco.

Mas assim tão de repente, sem nexo, tão sem razão aparente. Ele morreu. Simplesmente morreu. Caiu e morreu. De uma forma que soaria estúpida, até mesmo banal. Seu coração, tão mal-acostumado, acabou traindo-o. Seu corpo cooperou com desgosto e deixou-se levar pela natureza física da matéria, derramando-se à frente da mesa que sempre gostou de sentar-se ao escrever coisas bonitas pra ela. Daria pra dizer que o suco de limão foi ficando azedo bem mais rápido que o normal a partir dali. Impossível seria não perceber que até a fruta ácida predileta sabia o que estava acontecendo.
A protagonista involuntária de toda aquela inspiração lírica, sua Maria, chegaria só no final de tarde. Já escuro seria. Nem a claridade traria conforto, faria companhia, incapaz de presenciar tamanha tristeza. Uma noite eterna e sem estrelas no céu estava pra começar naquela praia maldita . O dia em que até o sol tornar-se-ia um covarde.

2 comentários:

Anônimo disse...

definitivamente bem melhor do que suas poesias repentistas.. ahahha beijos!!

Anônimo disse...

uuuui...