quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

Black

Olhava sua mochila e ela só conseguia representar a vontade de ir pra outro lugar. Queria sair de casa. Ela já tinha saído há muito. Na verdade ela nunca morara ali. Viveram muitos momentos nesse espaço constituído de cama, som e sonhos perdidos. Sonhos que voavam pela janela a esmo.
Perguntava-se pra quê sonhar se ela não mais poderia compartilhar deles. Perguntava tantas coisas. Suas perguntas, que antes eram carregadas de respostas plausíveis, agora se perdiam entre as folhas secas de um vento de outono frio. Suas lágrimas desciam não como um choro forte, mas como um sopro de morte. Suas noites eram muito mais pretas. Sua tatuagem não brilhava mais e suas calças viviam sujas. Pra quê lavar os jeans? Pra quê sorrir?
Saber que ela não seria mais sua, confortava sua garganta seca em cada gole desumano num copo de ilusão sincera. Seus amigos significavam tanto que tinha medo de cair num abismo imensurável se apenas perdesse-os de vista. Tudo isso embalado dentro de uma caixa de presente fechada, lacrada, com um laço indefectível e vivo. Escondida dentro de um ambiente úmido com chão de tábuas de madeira corrida podre, no sótão de uma casa perdida numa cidade qualquer abandonada entre a serra e o mar. Com o cheiro da maresia das viagens que fizera com ela pra praia. Com o frescor gelado do clima das trips feitas pro mato e montanha. Apenas resquícios vivos de memória apagada. Antiguidades que acabavam de serem lançadas. Pedras cheias de limo. Duras, impenetráveis.
Até a porra da mochila o fazia lembrá-la. Mesmo multidões não o faziam esquecê-la. Sentar pra ouvir a música parecia ser o mesmo que jogar um jogo, sabendo-se e sentindo-se o perdedor desde o início. Era tudo assim. Tudo triste. Tudo cinza. Um leite sem açúcar. Um café aguado. Alguns carros virados numa calçada em plena contra-mão. Meia dúzia de beijos roubados com luzes piscando num teto vermelho. Uma dezena de noites mal dormidas com direito a olhadas pro espelho. Algum sexo sem amor, sem pudor, com direito a poesia feita sem dor.
Tudo sem vontade e trazendo umas empolgações magníficas, carregadas da obviedade de serem falsas. Flanelas em tecidos xadrez guardadas numa lembrança de infância. Até fatos vividos antes de conhecê-la permitiam inclusões apenas pra se sentir falta. Estava em todos os lugares e mesmo assim em lugar algum. Ela não representava a solidão. Representava o papo chato de início de relacionamento novo. Representava a falta de vontade de fazer cafuné nas outras. Representava a falta de coragem de perceber que dali em diante nada seria mais igual. Representava saber que seria feliz com outra pessoa, seja lá o que diabos ser feliz significasse aquela altura. Significava clichês mórbidos, rasteiros e baratos. Significava não ter ninguém para ir a lugar algum. Significava mirar lá no alto pra não acertar ninguém. Significava a falta de assunto. O breu soturno do lugarejo mais profundo. O nada. A certeza do futuro sem promessa de mudança. A certeza que a vida sem ela não valia de nada. Tudo preto. Tudo cinza. De mãos dadas e sorrindo. Num parque. Numa praia. Num verão. Num reveillon. Num céu azul. Pintado a mão. Como os quadros infantis dela. Como seu sorriso que o fez parar de sorrir. Como quarenta mil pessoas. E somente duas juntas em pensamento.

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