sábado, 19 de novembro de 2005

Dois corpos num sábado

Matar os próprios pais aquela altura não era mais tão importante quanto o fato de agora procurar uma maneira de sumir com os corpos. Durante todas as suas crises de raiva, onde especulava um dia matá-los, nunca imaginava que o ato em si seria concretizado tão facilmente e o pior mesmo só viria depois. Que matar uma pessoa não era algo corriqueiro ele tinha total noção. Era uma coisa até tão distante, carregando tamanha carga de impossibilidade, que ele nunca havia pensado seriamente em sobre como agir em relação aos corpos. Agora que estava em frente a dois cadáveres na cozinha de seu apartamento, não sabia se ligava pra polícia e se entregava, se esquartejava os corpos em pequenas partes e colocava-os no congelador, se partia eles em partes maiores e embrenhava-se numa alucinada viagem de desova bem longe dali ou se apenas fugia. Que dúvida insuportável. Nem o choque emocional de acabar com a existência de seus progenitores, fez sua cabeça sair do foco desse dilema.
Num gesto inusitado e repentino, pensou em alugar Pulp-Fiction de Tarantino. Sabia que no filme existia uma cena onde chamavam um cara pra ajudar a livrarem-se de um corpo indesejado. Disse calmamente um palavrão pra si mesmo. Ele não era da máfia ou de qualquer forma de organização ilícita pra ter um “cara” a chamar. Amaldiçoou os pais uma vez mais. Será que até na morte eles eram capazes de enlouquecê-lo e tornar sua vida mais difícil?
Como era sábado pela manhã e sua família possuía hábitos reclusos, acalmou-lhe o fato de achar que somente na alvorada de segunda-feira começariam a dar falta do Pai no trabalho. Sua mãe era dona de casa, talvez alguma amiga pudesse querer entrar em contato no final de semana, mas achou que o sumiço repentino dela não ia levantar tantas suspeitas como o não comparecimento do zeloso Pai no escritório de advocacia no início da semana.

Sua experiência com morte era tão nula e vazia, que não tinha sequer a noção de que horas o cheiro fétido dos corpos sem vida começaria a circular pelo ar. Calmamente resolveu abrir o armário, retirando a caixa de seu cereal predileto. Colocou-o sobre a mesa. Da geladeira trouxe o leite gelado. A cumbuca de vidro e a colher já estavam postas a mesa, sua mãe havia iniciado o protocolo do café da manhã momentos antes de ser atacada pelo filho único com o objeto cortante que agora repousava imóvel em seu pulmão esquerdo perfurado.
Desviou do corpo do Pai quase escorregando no líquido grosso, viscoso e vermelho que sua ferida expelia lentamente e sentou-se para saborear o gostoso e clássico preparo matinal. Ao levar a terceira colherada à boca, resolveu colocar mais açúcar de forma exagerada na cumbuca do cereal. Olhou pra mãe instintivamente como que esperando sua repreensão pelo ato nada saudável. Mas ali logo abaixo no chão de cerâmicas pretas e brancas, com nova tonalidade avermelhada recém-inclusa, fez que nem era com ela em toda indiferença de seu corpo morto e ainda nada rígido.

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