domingo, 2 de janeiro de 2011

Vendi sua Kombi por uns litros de uísque

Ela tinha uma Kombi, um violão e muita vontade de viajar por aí. Ela tinha uma linda voz, um céu azul sem nuvens em seu peito e duas belas coxas que acabavam com todas as nossas discussões. Eu tinha um dente de ouro, alguns fios brancos e todas as minhas derrotas escancaradas na língua. Uma vez um troglodita me acertou na saída de um bar. Foi um baita golpe de barra de ferro na cara. Ela cuidou de tudo. Fiquei inchado, bem feio depois do bisturi, depois de colocar todo aquele titânio na fuça. Ela molhava uma toalha branca num pote com água gelada e ficava massageando as maçãs do meu rosto como uma diva. Ficávamos ouvindo Jerry LaCroix a tarde inteira. Depois ela chupava meu pau com sua fúria doce e molhada e me pedia uns tapas na cara. Vendi sua Kombi por uns litros de uísque do bom pra um carinha da praia. Soube que ele fez um rolo com um artista plástico e hoje a máquina tá quase irreconhecível, sem rodas, cheia de desenhos num desses picos meio new hippies. Nunca confiei muito em hippies. Tenho vontade de socá-los com esse papinho infanto-pederasta. Pior que os hippies, apenas os poetas. Uma vez sonhei que tinha que escolher entre deixar que matassem um ou fazê-lo servir gelo em meu uísque para sempre. Até hoje chamo o desgraçado pelo nome quando estou muito bêbado e meu copo está vazio. Malditas lembranças. Como quando ela dirigia a Kombi enquanto eu dormia de bruços, quase em coma, na parte de trás. A gostosa fazia questão de acelerar nos quebra molas. Pelo menos hoje, quando penso nisso, acho que ela gostaria de ver sua caranga longe de mim. Não queria aquele carro em minhas mãos, atropelando bichos de canto de estrada. O que eu podia fazer se os danados me procuravam? Deviam ser uns animais com tendências suicidas. Deviam passar o Natal sozinhos em algum bar, ouvindo blues, enquanto famílias felizes jantavam nas mesas ao lado. Com seus barulhos de risadas e talheres e crianças correndo. Como os sons dessa minha maldita depressão. Que fica me abraçando, acariciando meus pensamentos, aguando meu uísque. Ainda consigo lembrar dos seus seios e as vezes isso realmente anima o meu dia. Mas é verão e meu suor me deixa macambúzio, nostálgico. É tão quente aí fora e no meu peito esse buraco imenso deixa tudo tão frio. Ela tinha uma Kombi, um violão e muita vontade de viajar por aí. E sempre leva embora, desgraçada, minha alma, toda vez que penso nela entrando na frente daquele rifle.

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